domingo, 30 de agosto de 2009

1233) A vida é sonho (24.2.2007)




A trilogia Matrix dos irmãos Warchovsky, no cinema, e a trilogia Neuromancer de William Gibson, na literatura, são narrativas futuristas sobre um mundo socialmente fraturado e de alta tecnologia. 

Apontam na direção de um futuro em que a realidade de carne e osso dos nossos corpos biológicos servirá apenas como infra-estrutura para uma realidade virtual, onde poderemos projetar nossa mente e criar ali todo um novo universo de ambientes, criaturas e interações. 

Viveremos plugados em alguma coisa, e através desse plug compartilharemos mentalmente uma realidade a que nossos corpos não terão acesso.

Elas me lembram um conceito criado por Brian Aldiss para descrever certas narrativas de ficção científica: o Barroco Cinemascope (“widescreen baroque”). Curiosamente essa concepção vem ao encontro de uma das mais notórias idéias do teatro barroco espanhol, aquela que Calderón de la Barca expressou melhor que todos em sua peça A Vida é Sonho (1635), quando diz: 

(...) estamos 
em mundo tão singular 
que o viver é só sonhar 
e a vida ao fim nos imponha 
que o homem que vive, sonha 
o que é, até despertar. 

Os poetas barrocos viviam numa época de fervorosa religiosidade, e procuravam exprimir das maneiras mais variadas esse contraste entre um mundo material cuja existência seus corpos não podiam deixar de reconhecer, e um mundo espiritual que lhes obcecava a mente por completo. O conflito entre a matéria e o espírito, duas realidades irrecusáveis, foi um dos temas mais obsessivos desses poetas.

O que Calderón dizia de seu mundo pode ser estendido à Matrix, o mundo ilusório criado pelas supermáquinas do futuro: 

Sonha o rico sua riqueza 
que trabalhos lhe oferece; 
sonha o pobre que padece 
sua miséria e pobreza; 
sonha o que o triunfo preza, 
sonha o que luta e pretende, 
sonha o que agrava e ofende 
e no mundo, em conclusão, 
todos sonham o que são, 
no entanto ninguém entende. 

No mundo da Matrix, os seres humanos vivem acorrentados no interior de casulos, dormindo um sono hipnótico, tendo sua energia sugada por máquinas incompreensíveis enquanto sua mente sonha sonhos artificiais em que imaginam estar em grandes cidades, andando de carro, trabalhando em escritórios, amando, casando, vivendo, divertindo-se.


No primeiro filme dos Warchovsky, essa vida aparentemente banal e satisfatória é rompida quando um indivíduo (no caso o personagem Neo, de Keanu Reeves) aceita tomar uma pílula que servirá para estilhaçar a ilusão em que vive. 

A sua primeira sensação é de sair do mundo real e penetrar num pesadelo fantástico em que o mundo não é nada do que parecia. Ele poderia dizer, como o personagem de Calderón: 

Eu sonho que estou aqui 
de correntes carregado 
e sonhei que em outro estado 
mais lisonjeiro me vi. 

Se fazemos a equação “a vida é sonho”, dizemos em conseqüência que “o sonho é vida”; rompida a primeira ilusão, nunca mais saberemos distinguir de que lado nos achamos.









1232) O avião está pegando fogo (23.2.2007)




Nacionalismo ou universalismo? Este é um dilema interessante para um escritor de ficção científica, porque o movimento instintivo de sua mente é de fora para dentro. 

Ele vê primeiro o planeta Terra e a humanidade por inteiro, e só depois leva em consideração as divisões políticas e geográficas, que ele sabe serem passageiras, mesmo que durem séculos.

Diferentemente da maioria das pessoas, o aficionado da FC pensa primeiro no Universo e depois em si próprio. A disciplina mental imposta pelo estudo científico e pelas leituras de aventuras que não têm limite no Espaço e no Tempo ensinaram-lhe que ele pode até se considerar o Centro do Universo, mas só pode entender a si mesmo se vier matando a charada, ao mesmo tempo, da periferia rumo ao centro e do centro rumo à periferia. 

Enxergar a si mesmo e ao Universo, ao mesmo tempo, requer uma profundidade de foco que para algumas pessoas é fácil, para outras não é. O escritor argentino Ernesto Sábato tem uma frase magnífica sobre isto, embora algumas das minhas amigas a achem preconceituosa e machista. Disse Sábato: 

“Enquanto o mundo for mundo, vai existir um homem que se preocupa com o Universo enquanto sua casa pega fogo, e uma mulher que se preocupa com sua casa enquanto o Universo pega fogo”.

Deixemos de lado essa diferenciação entre homens e mulheres, e convenhamos: existem de fato pessoas onde esse conflito de prioridades é muito visível. A prova mais óbvia disto é o recente relatório científico sobre o Aquecimento Global. Dezenas de governos nacionais, centenas de milhares de empresas e bilhões de indivíduos estão se lixando para o que vai acontecer ao mundo daqui a 50 ou 100 anos. 

Tudo que eles querem é alcançar seus objetivos, suprir suas necessidades a curto prazo. Preocupam-se com sua casa enquanto o Universo pega fogo. 

Agem como aquele português da piada, que viajava de avião com um amigo que lhe disse: “Ó Manuel, parece que o avião está caindo”. E ele retrucou: “Ora, Joaquim – não é meu, não é teu, então deixa cair!”

Igualmente absurda é a atitude inversa, dos que não se preocupam com o que acontece em sua casa, desde que o Universo esteja passando bem. É o que ocorre com os governos, empresas e indivíduos que fazem o possível para (no jargão de hoje) “se inserir no Processo de Globalização”. O tal Processo provoca surtos eventuais de prosperidade neste ou naquele continente, neste ou naquele país, de acordo com sua conveniência (embora o país ou o continente achem que aquilo está sendo feito para o seu bem). 

Já vi gente dizer: “Se o Brasil quebrar, do jeito que a Argentina quebrou há alguns anos, pra mim tanto faz – vou morar na Europa”. Quem pensa assim não está muito diferente dos portugueses da piada anterior. 

Poderíamos imaginar uma variante. Dois portugueses estão viajando em seu jatinho Legacy particular. O jatinho começa a pegar fogo, um deles se assusta e o outro diz: “Ora, deixa cair. Somos ricos. Amanhã a gente compra outro”.






1231) Choque cultural da prisão (22.2.2007)


(Oldboy)

Li um depoimento de um cara chamado Bob Bunker, que trabalha, nos EUA, com presidiários que precisam ser ressocializados após 20, 30 ou até 50 anos de prisão. Não é fácil lidar com esse pessoal. Eles passam décadas presos, sonhando com o mundo lá fora. E quando finalmente conseguem sair, descobrem que o mundo lá fora não existe mais. O mundo que conheciam, e para o qual esperavam voltar, desapareceu, e foi substituído por um mundo incompreensível. Muitos desses presos tinham apenas ouvido falar em telefones celulares (estou falando de prisões norte-americanas, claro) e na maioria das engenhocas eletrônicas que temos hoje. Quando saem à rua, estranham tudo: as marcas dos carros, a forma das roupas, a comida. Bunker declara que já viu prisioneiros voltarem a cometer crimes apenas para serem mandados de volta para a cadeia, e se sentirem de novo no interior de uma cultura que lhes é familiar.

Esta experiência é semelhante à que médicos já apontaram a respeito de cegos que recuperam a visão. Há casos de pessoas cegas desde a infância que recuperam a visão já na meia-idade, mas têm dificuldade em se adaptar. Um deles disse certa vez: “Quando eu era cego, atravessar uma avenida movimentada era muito fácil. Eu vinha andando até a esquina, parava no lugar certo, e esperava o sinal abrir. Quando as pessoas em volta começavam a atravessar, eu ia junto. Agora, que posso ver, eu percebo todos aqueles carros, com o motor ligado, impacientes, doidos para que o sinal abra e eles arranquem. Fico morrendo de medo, aí fecho os olhos, e atravesso”.

Há um livro de ficção científica de Stanislaw Lem, Retorno das Estrelas, que conta o regresso de um astronauta à Terra. Como viajou próximo à velocidade da luz, no interior de sua nave passaram-se apenas alguns meses, mas na Terra passaram-se séculos. O astronauta tem um choque cultural tremendo, diante de uma Terra incompreensível, na qual não consegue reconhecer o seu próprio mundo.

São três exemplos muito diferentes entre si, mas todos com o mesmo paradoxo. Um sujeito passa de uma situação pior para uma melhor, não se adapta a ela, e prefere em seguida voltar para a situação menos desejável, mas na qual se sente mais à vontade, pois já se acostumou. (Não sei se ocorre isto no livro de Lem, que não li.) São exemplos radicais pela sua nitidez e pelo seu aparente contra-senso, mas revelam uma dinâmica natural da nossa mente. Largamos um emprego aparentemente melhor por um emprego mais tranqüilo, largamos uma casa mais rica por uma casa mais confortável, encaixotamos os troços em Londres e vamos morar em Guarabira. Por que? Para alguns, por batida-de-pino, ou seja, por medo dos desafios, por incapacidade de enfrentar situações desconfortáveis. Para outros, pelo desejo instintivo de viver numa situação que possamos preencher por completo, compreender por completo, viver em plenitude.

1230) Crime e Castigo de Kafka (21.2.2007)


(Alexeieff) 

Guillermo Sánchez Trujillo, um professor de literatura da Colômbia, vem há alguns anos tirando o sono do mundo acadêmico com uma teoria extraordinária, mas muito bem argumentada, sobre a origem da obra literária de Franz Kafka. 

Para resumir, o que diz Trujillo é que Kafka usou obras de Dostoiévski para montar a estrutura de suas histórias. Como se sabe, vários livros de Kafka ficaram incompletos. O Processo era uma porção de capítulos sem numeração, guardados em numerosos envelopes grandes. Quem deu a primeira ordenação de capítulos para publicação foi Max Brod, o amigo a quem Kafka, antes de morrer, pediu que queimasse tudo (claro que ele desobedeceu). 

Os críticos sempre se intrigaram com a aparente desordem em que os capítulos tinham sido envelopados, mas Trujillo explica: eles foram arquivados por Kafka por um critério de proximidade. Os capítulos que provinham de cada trecho de Crime e Castigo foram guardados juntos, independentemente de sua posição na nova versão. 

Nas próximas férias comprarei o livro de Kafka e o de Dostoiévski (já tive os dois, mas sumiram nas voltas da estrada) e vou fazer a comparação. 

Trujillo afirma que o primeiro capítulo de O Processo é uma reescritura do capítulo 3 da segunda parte de Crime e Castigo. Aliás, os três primeiros capítulos do livro de Kafka são os capítulos em ordem inversa desta segunda parte do livro de Dostoiévski (3, 2 e 1). 

É disto que Kafka extrai o clima alucinatório e de pesadelo em seu livro. Porque na segunda parte do livro de Dostoiévski o crime já foi cometido, e nada mais previsível do que a visita de agentes da lei, interrogatórios, etc. Como Kafka pulou a primeira parte, o que vemos é um indivíduo sendo acossado pela Lei, mas sem motivo aparente. 

O arrazoado de Trujillo está resumido em: http://www.kafka.org/index.php?id=184,198,0,0,1,0

E ele vai mais longe, comparando trechos de Dostoiévski com trechos de A Metamorfose, indo ao extremo de apontar diálogos idênticos. O despertar de Gregor Samsa, segundo ele, é todo baseado em três diferentes cenas em que Raskólnikov desperta. Ele faz um cotejo frase a frase que dá o que pensar. 

Uma outra descoberta sua diz respeito à cena da catedral em O Processo, que não tem equivalente em Dostoiévski, mas que ele, guiado por uma referência de Kafka numa carta a sua irmã Otta, localizou num episódio da Viagem a Itália de Goethe. Siga o link acima, leitor, ou encomende o livro (Crimen y castigo de Franz Kafka, Universidad Autónoma Latinoamericana, Medellín, 2002). 

Kafka seria um plagiário? Eu acho que não, porque embora haja essa semelhança de ambiente, de estrutura e até de frases, as duas obras são tão diferentes que não se pode falar em imitação ou em apropriação indébita. Seria mais ou menos como Joyce usando a Odisséia como base para seu Ulisses: há uma semelhança ponto a ponto, mas cada obra tem luz própria.




1229) Poder Total a Custo Zero (20.2.2007)




Todas as vezes que compareço pessoalmente a um set de filmagem ou a um ensaio teatral eu saio de lá arrasado moralmente. Levo dias para me recuperar, e é por isto que freqüento tão pouco estas atividades. 

Não existe forma de criação artística mais difícil do que as que envolvem dezenas de pessoas, centenas de técnicos, onde surgem a toda hora problemas que não podem ser resolvidos, chuva quando era para fazer sol, sol na hora em que se precisava de chuva. Sem contar com equipamento que quebra, material que acaba, ator que adoece ou dá pití, verba que não é depositada, e assim por diante. 

Ainda hoje tenho uma certa vontade (típica de ex-cineclubista) de dirigir um filme, mas basta lembrar de A Noite Americana de Truffaut para rever meus parâmetros. Meu negócio é computador. Se alguém viesse me oferecer dez milhões para dirigir um longa, eu me esconderia atrás do “no-break”.

É por estas e outras que celebro hoje duas formas baratas e megalomaníacas de criação artística: a Literatura e o Rádio. Temos ali duas coisas que nunca passam pela cabeça de diretores de cinema, teatro, TV, ópera, o escambau: Poder Total e Custo Zero. Os limites são apenas os limites da nossa imaginação; e os custos, bem, não são zero mas são irrisórios. 

Podemos simbolizar a Literatura e o Rádio na forma de uma fração ordinária cujo numerador, o poder de criação, aproxima-se de Mais Infinito, e cujo denominador, o fator custos, tende a Zero.

James Cameron gastou centenas de milhões de dólares para filmar o naufrágio do Titanic. Eu faria o mesmo pelo rádio, usando apenas arquivos de sonoplastia: motor de navio, buzina de navio, choque, colisão, sirenes, multidões histéricas, glub-glubs generalizado, e uma dúzia de atores fazendo 150 papéis. 

Quando eu era pequeno, nos anos 1950, ouvia alguns seriados de ficção científica (cujo nome infelizmente não lembro mais) em que gigantescas naves cortavam o espaço, batalhas ferozes destruíam esquadras inteiras, seres alienígenas horrorosos surgiam arfando junto do nosso ouvido – e tudo aquilo, sei hoje, eram meras esculturas sonoras feitas em estúdio com um sortimento variado de panelas, torneiras, ventarolas, apitos, e outros artigos de camelô.

Na Literatura é o mesmo, só que mais barato ainda. 

“Do alto da colina, o imperador Napoleão contemplava os milhares de corpos ensangüentados de cavaleiros franceses, cujas cargas se estilhaçavam de encontro aos quadrados da infantaria comandada pelo general Wellington...” 

Por mais que o cinema tenha procurado reconstituir a batalha de Waterloo, nenhum filme pode se comparar às dimensões épicas do que Victor Hugo fez com pena e tinteiro durante Os Miseráveis

Literatura e rádio são imbatíveis porque dependem principalmente da palavra (e no segundo caso, de efeitos de áudio) para fazer com que a imaginação do público levante vôo junto com a imaginação do autor, numa “folie-à-deux” benigna onde o céu é o limite.