sábado, 22 de agosto de 2009

1213) O filho e o carro (1.2.2007)



Recebo muitos trabalhos enviados por amigos ou desconhecidos: livros, poemas, CDs, crônicas, etc. Quando a gente tem com o autor um certo grau de intimidade, não há problema em dar nossa opinião, quando ele a pede. Mas quando é um desconhecido, e a gente nem sabe se é um principiante ou um artista já encaminhado, é difícil saber que o que dizer. Tenho o maior medo de dizer algo tipo “olhe, Fulano, escreva mais, amadureça mais, você tem muito talento em potencial, etc.” e o cara me responder que é mais velho do que eu e tem 20 livros publicados. Onde vou enfiar a cara?

Quem mostra um trabalho tem muitas vezes a atitude de quem mostra um filho. Uma vez encontrei na rua um conhecido que não via há alguns anos. Cumprimentamo-nos, trocamos um abraço, e ele me mostrou o garoto de uns cinco anos que o acompanhava: “Olha, este aqui é o meu filho”. Olhei pro guri e disse: “Parece muito contigo”. O guri me olhou de cima a baixo e disse: “Deus me livre, meu pai é muito feio”. Rimos muito, porque o que eu tinha dito era uma mentira social, e o guri dissera a verdade pura.

Minha pergunta é: se o guri fosse feio, teria eu o direito de dizer isto? Quem mostra um fiho não está pedindo uma avaliação crítica, está pedido um gesto de aprovação, a ratificação de um vínculo afetivo. Quem tem um filho orgulha-se dele, e ponto final. Um filho é uma extensão de nós mesmos, é prolongamento futuro de nossa passagem sobre a Terra, como uma árvore plantada ou um livro escrito. Quem mostra um filho está mostrando um fato consumado, ao qual nenum juízo crítico pode se aplicar.

Mas há casos em que alguém nos mostra um CD ou um poema com outra atitude. A atitude de quem leva um carro à oficina e diz ao mecânico: “Josias, dá uma olhada nesse carburador, que ele tá meio esquisito”. Às vezes o carburador não tem nada, mas a gente só confirma isto através de Josias, que entende de carburador mais do que nós. O que a pessoa pede nestes casos é uma opinião técnica, um diagnóstico entre colegas de ofício, mesmo que um seja um mestre e o outro um aprendiz. E nestes casos, quem pede deve estar preparado para ouvir o que precisa ser dito, e que nem sempre é agradável.

Não acho que devamos julgar com rigor excessivo o trabalho alheio, principalmente de um autor jovem. Conheço muitos casos de pessoas que desistiram de uma carreira porque a primeira crítica que receberam foi devastadora demais. E todos nós sabemos de autores que começaram medíocres, mas foram crescendo por esforço próprio, e depois de muitos anos produziram obras de alto nível. Devemos ter confiança no futuro. O primeiro CD da banda, os primeiros poemas da jovem universitária, o primeiro romance do rapaz meio prolixo... o talento talvez ainda não esteja ali, mas pode despontar um dia. Não devemos afagar demais sua vaidade, mas devemos dizer: “Pode ir pra casa, e fique tranqüilo. Seu carro não tem nenhum problema. Continue dirigindo que um dia você chega lá”.

1212) A crença de quem não crê (31.1.2007)




A Editora Record publicou em 1999 um debate, travado nas páginas da revista “Liberal”, entre intelectuais italianos sobre a questão da fé e da ética entre religiosos e leigos. O principal debate foi travado entre o escritor Umberto Eco e o Cardeal Carlo Maria Martini, sendo que na segunda parte do livro aparecem contribuições de filósofos, jornalistas e políticos. 

Tanto Eco quanto Martini defendem com erudição e clareza seus pontos de vista. Entre os demais, gostei dos argumentos do jornalista Eugenio Scalfari e do ex-secretário do Partido Socialista, Claudio Martelli. O livro tem como título Em que crêem os que não crêem?.

A principal diferença entre o pensamento religioso e o pensamento laico é que o primeiro exprime a necessidade de um Centro geométrico, e o segundo se contenta com um ambiente conceitual sem forma definida. 

As religiões monoteístas (cristianismo, Islã, judaísmo) exprimem esta concentração de valor num único ponto de referência dogmático, inquestionável, e neste sentido assemelham-se aos regimes políticos centralizadores, autocráticos (quando não são explicitamente autoritários e ditatoriais). 

As religiões politeístas parecem certas democracias parlamentares, onde a toda hora quem está mandando é um grupo diferente, de acordo com as flutuações de poder e de influência.

Passamos de um estado primitivo onde havia um grande número de deuses para a fase do Cristianismo em que tudo se concentrou num Deus uno (ou trino, nessas ambigüidades geométricas que fazem a alegria dos metafísicos). Com o Iluminismo, a Revolução Francesa, a separação entre igreja e Estado, e assim por diante, foi quebrado esse centralismo espiritual e retornamos a uma multiplicidade de valores que agora não mais se exprime por uma proliferação de divindades antropomórficas, mas por uma proliferação de crenças não-espirituais.

É esta proliferação que é questionada pelo Cardeal Martini em seu debate com Eco: essas pessoas que não crêem mais em Deus têm valores morais e éticos; mas de onde lhes vêm estes valores? Eles não podem ser totalmente relativos ao momento, senão teríamos que admitir que em tais e tais circunstâncias seria legítimo agredir, saquear, matar e fazer mal a outras pessoas. 

O debate entre os pensadores italianos retoma a frase crucial de Dostoiévski: “Se Deus não existe, então tudo é permitido”. Para os monoteístas, é preciso que haja um Centro, um Absoluto, um dedo que risca o limite entre o que podemos e o que não podemos fazer, ou, mais precisamente, uma escala de valores que vai desde o absolutamente obrigatório ao absolutamente proibido, com todos os estágios intermédios entre um e outro. E isto só pode vir de Deus.

A principal crítica feita pelos não-crentes é que, não existindo um Deus que “inspire” os Papas e outros líderes, as escolhas morais e éticas destes são subjetivas, historicamente condicionadas, politicamente interessadas – tanto quanto as dos cientistas ateus.