quinta-feira, 2 de julho de 2009

1143) A escola da paranóia (11.11.2006)



Os EUA são uma sociedade muito doente, tão doente quanto a nossa, embora talvez sejamos meio saudáveis onde eles são doentes e vice-versa. Aqui, em nossas escolas, temos a invasão de traficantes, e as brigas de gangues que acabam se transportando para o interior dos colégios. A guerra social dos morros e das periferias, alimentada pelo tráfico, expande-se para dentro das escolas. Nos EUA, a guerra não tem nada a ver com drogas ou tráfico. As periódicas matanças que acontecem nas escolas americanas são produto apenas da neurose da própria sociedade. As gangues de lá não são produto da pobreza e da droga. Quem realiza massacres como os de Columbine e esses mais recentes são filhos de uma classe média sem problemas financeiros mas invadida pela violência e pelo culto às armas, através do cinema, da TV, dos jogos eletrônicos... E da falta de propósito na vida, a mais insidiosa das doenças mentais.

E a cura não está à vista. Pouco tempo atrás, no Estado de Oklahoma, um candidato ao cargo de superintendente escolar sugeriu um plano fantástico para prevenir as matanças escolares. Bill Crozier, do Partido Republicano, afirmou que se for eleito fará com que cada estudante tenha embaixo de sua mesa escolar um livro-texto usado, bem volumoso, para se defender das balas no caso de eventuais tiroteios. Diz Crozier que examinou os casos anteriores e percebeu que alguns alunos tinham sido atingidos por tiros mas as balas foram amortecidas por livros que levavam na mochila. Ele fez alguns testes com armas de diferentes calibres e livros de diferentes espessuras, e acredita ter chegado a uma fórmula adequada. Balas de pistola, diz ele, podem ser paradas por um único livro.

“Podem achar que é maluquice”, diz Crozier, “mas é uma questão de ordem prática, é algo que dá para fazer. Pode ser uma maneira de desviar as balas até que a polícia chegue”. Eu tenho calafrios de incredulidade ao visualizar a cena de um sujeito dando tiros de revólver num garoto e este usando um livro de matemática como escudo.

O que eu mais admiro nos americanos é essa inesgotável capacidade de crer na solução de problemas. Não, não estou sendo irônico. Existem coisas na vida que nós, brasileiros, abaixamos a cabeça, cruzamos os braços e entregamos a Deus. O americano não. Ele pensa, analisa, ataca o problema por todos os lados, com uma fé absoluta na racionalidade, na praticidade, no pragmatismo, e no final feliz. “Para qualquer problema existe uma solução”. Esta frase está escrita na Constituição dos EUA? Se não está, convoquem o Congresso imediatamente para corrigir a falha.

Não importa que as soluções sejam absurdas, ridículas, despropositadas, cruéis, inadequadas. Não importa que os problemas tenham sido (como anda ocorrendo na política internacional) criados por eles mesmos. Os americanos acreditam que tudo na vida tem solução. Jamais se darão por vencidos, e temos que tirar o chapéu em sua homenagem.

1142) A arte acadêmica (10.11.2006)




("Crepúsculo" de Winston Churchill)

Pittigrilli era um escritor italiano muito popular nos anos 1950. Suas obras foram publicadas no Brasil pela antiga Editora Vecchi. Humorista ferino, contista malicioso, e um grande fazedor de frases.

Ele dizia não entender por que motivo as pessoas, diante de um belo por-do-sol, exclamavam: “Que coisa linda! Parece uma pintura!” e diante da pintura de um por-do-sol diziam: “Que coisa linda! Parece de verdade!”.

Nosso condicionamento visual (hábito de olhar quadros) e intelectual (assimilação semi-consciente de regras estéticas sobre o que é bonito e o que não é) cria um estilo que podemos chamar de Beleza Confortável. É um tipo de arte que não incomoda, não assusta, não desconcerta, não nos faz parar para pensar duas vezes, não nos pergunta o que achamos.

Vemos uma pintura acadêmica mostrando um por-do-sol, um grupo de ninfas saltitando no bosque, uma bandeja com maçãs junto a um vaso de flores... e basta dizermos: “Que bonito!”

A Beleza Confortável é a média aritmética entre o por-do-sol que parece uma pintura e a pintura que parece um por-do-sol. É um modelo estético que se ajusta sem esforço às nossas expectativas – desde que elas sejam, é claro, intuitivas, pouco pensadas e pouco dispostas a se aprofundar no assunto.

A Beleza Confortável é uma das grandes conquistas do Academicismo, aqui entendido como a arte de bordar repetições em torno do que já foi descoberto, eximindo-se ao mesmo tempo da obrigação de descobrir uma novidade, por mínima que seja.

Pittigrilli não era um semiótico, mas um conterrâneo seu que é, chamado Umberto Eco, pôs em circulação um termo muito útil, num ensaio onde ele comparava a arte nazista e o Realismo Socialista soviético, que eram iguaizinhos.

Eco fala do “Academismo Especulativo”, aquele grande número “de pintores falidos, de especialistas de oleografia, de pincéis voltados à decoração de caixas de pó-de-arroz e de bombons, que encontram inesperadamente um mercado político: os hierarcas que se deliciam com os nus de fundo mitológico”.

Chama-se de realismo a este tipo de arte porque as coisas pintadas não contradizem a imagem visual que temos das coisas reais – se bem que uma pessoa que conhecesse apenas as coisas, e não tivesse noções de pintura acadêmica, talvez visse nelas uma variante do jogo-dos-7-erros.

São, diz Eco, os “miseráveis pintores de fim de semana que, cientes do fato de que o Regime gosta de barcaças, serrarias, minas, colocam seus pobres e inábeis pincéis a serviço de uma deprimente e monótona paisagística”.

Estes artistas se esmeram em representar “senhoras louras no banho, trabalhadores musculosos e suados, soldados com o maxilar quadrado, velhos camponeses amorosamente absortos no cultivo de alimentos, paisagens agrestes sulcadas por estradas e pontes com muitos arcos, maquetes de cidades do futuro retangulares e imponentes”. 

É o apogeu das formas facilmente reconhecíveis, aquelas que as ditaduras costumam convocar para conduzir suas mensagens.





1141) A Deusa Película (9.11.2006)




O Canal Multishow da Net tem um programa chamado “Inside the Actor’s Studio”, em que James Lipton entrevista atores, diante dos estudantes daquela famosa escola de interpretação de Nova York. 

O programa já rola há alguns anos, e nele vi entrevistas notáveis. É sempre uma discussão de atores para atores, dissecando os bastidores da interpretação, o modo de fazer filmes, os recursos de criação de personagem, etc. Claro que cada entrevista tem o perfil do entrevistado. Michael Caine reavalia sua vida e carreira com fleuma britânica. Robin Williams faz palhaçadas e improvisa diálogos imaginários o tempo todo.

Vi há pouco Tom Hanks nesse programa. Perguntaram-lhe sobre algum aspecto da arte da interpretação e ele disse: 

“Tudo isto está nas mãos de Película. Sabem quem é Película? É a deusa do cinema e dos cineastas, a deusa da Sétima Arte. É Película quem faz o trânsito se abrir para que você chegue ao estúdio na hora combinada. Película faz com que você esteja num café quando entra aquele produtor que está precisando justamente de um ator de cabelo castanho, parecido com você. É ela quem faz com que o ator principal de um filme brigue com o diretor, seja demitido, e você ganhe o papel. E é ela a responsável pela magia do cinema, que faz com que a gente veja o rosto enorme de Ingrid Bergman em Casablanca, simplesmente escutando um cara tocar piano, e aquilo seja uma obra de arte. Vamos render nosso culto a Película, porque ela nos conhece tão bem quanto nós mesmos”.

Note-se que em inglês a palavra “película” não é uma palavra de uso corrente como é em português. E mesmo em nossa língua é uma palavra que perdeu terreno na nomenclatura cinematográfica. Quando eu tinha dez anos, a gente lia no jornal: “Psicose é o nome da nova película dirigida por Alfred Hitchcock...” Hoje em dia, ninguém diz mais isto, assim como no futebol ninguém chama gol de “tento”. 

Em vez de película, dizemos “filme”, ou seja, consagramos a palavra inglesa que designa uma camada muito fina de alguma coisa (de celulóide translúcido, no caso).

Também vi na TV, num programa dedicado a Sigmund Freud, um psicanalista definindo assim a consciência humana: “A consciência é uma película separando algo que a organiza e algo que a tumultua”. 

É uma imagem verbal poderosa, e que pode se aplicar também ao cinema. De um lado do filme virgem, no interior da câmara, está o diretor que escolhe para onde a câmara deve ser apontada; do outro lado, estão as imagens cuja luz refletida irá incidir sobre os sais de prata, fazendo-os ferver quimicamente, guardando a impressão indelével daquelas luzes e sombras. 

A Deusa Película preside este processo que ocorre (de forma tão semelhante) no negativo de celulóide, nas retinas do espectador e na consciência de quem assiste cinema, faz cinema ou passa a madrugada em claro perguntando a si próprio o que diabo, afinal, é o cinema.







1140) “Fretana” (8.11.2006)



Visitando os sótãos empoeirados da literatura paraibana, achei este romance de Carlos Dias Fernandes, escritor cuja fama fugaz se evaporou na Modernidade. O livro, de 1936, teve uma reedição recente pela Secretaria de Educação do Estado e Edigraf. Fretana é o apelido de Frederico Pestana, poeta e charadista cuja vida é uma cópia da biografia do autor: o nascimento e a infância em Mamanguape, a adolescência no Recife, os estudos de farmácia, a breve passagem pelo Exército, e depois as longas décadas de atividade no jornalismo, na literatura e na política. O romance semi-autobiográfico é o mais cômodo dos gêneros literários. Possibilita ao autor recorrer à memória quando a imaginação está com pouco gás, e recorrer à imaginação quando a memória lhe falha, ou (o que é mais freqüente) quando ele não resiste à tentação borgiana de modificar o Passado.

Carlos Dias Fernandes foi um dos poetas, hoje esquecidos, que marcaram minha infância. Meu pai costuma recitar nas noitadas boêmias seu poema “Miriam”, a história de uma escrava cristã que tem um caso de amor com Pôncio Pilatos. Quando Pilatos avisa que vai casar, por conveniência política, com uma dama, ela se desespera: “Pilatos, meu amor, por onde quer que os destinos / te levem, seguir-te-ão meus olhos peregrinos / como dois cães fiéis... Toda minh’alma é tua. / Todo este coração, que em ânsias tumultua / é teu, vive por ti, por ti se despedaça...” Pilatos explica para ela, na maior cara de pau, que vai ter que deixá-la porque não pode perder aquela chance de ascensão profissional. Miriam, humilde, pergunta-lhe: “E essa mulher, que te despreza – é linda?” E ele: “Linda? Que dizes tu? Divinamente bela! / Tão pulcra, Miriam, que te desprezo por ela, / por minha Cláudia, a flor das patrícias romanas...” Miriam retruca: “Basta! Por Jeová! Que palavras tiranas! / Mas sofrendo-as por ti, deleita-me sofrê-las...”

Perdoem-me os possíveis erros de transcrição; nunca li o livro, e estou citando de memória. Carlos Dias Fernandes era um escritor preciosista, à moda de Coelho Neto. Cada frase sua era ornada com a exuberância de um capitel coríntio. Foi amigo de Cruz e Souza (episódio reconstituído em Fretana). Redigiu epigramas e poemas satíricos, as cantigas-de-escárnio-e-maldizer tão cultivadas pelos poetas de cem anos atrás, quando os literatos viviam com um pé na política. O capítulo XX do livro é um pequeno “roman à clef”, previsivelmente partidário, sobre a Revolução de 1930 na Paraíba (chamada de “Microlândia”), onde “Protásio e Jayme Villoa” são respectivamente Epitácio e João Pessoa, o “Coronel Júlio Cerejeira” é José Pereira, “Sotero Veiga” é João Dantas, e assim por diante. Fretana, ainda legível sem esforço, é um livro em que o preciosismo do estilo não dilui a observação vívida do ambiente social, nem o retrato de pequenos personagens secundários que, extraídos da memória, têm ao mesmo tempo o colorido da imaginação e o cheiro da verdade.

1139) Tragam-me a cabeça de Saddam (7.11.2006)



Saiu no jornal há anos. Um executivo carioca estava numa disputa feroz por um contrato internacional. Coisa de milhões de dólares. Um competidor estava usando meios pouco legítimos para botá-lo para escanteio. A briga de bastidores foi se acirrando durante meses, aí ele contratou um pistoleiro para, numa manhã de trânsito intenso, emparelhar sua moto com o carro do outro sujeito, e dar-lhe meia dúzia de tiros na cara. O que foi feito. A polícia, claro, não fez mais do que ficar parando motoqueiros de forma aleatória e pedindo os documentos.

A imprensa falou muito sobre o caso, e o mandante do crime, sobre o qual, claro, pairavam suspeitas, começou a ser assediado pelo pistoleiro. Queria mais grana. Tinha pensado que o crime “era por causa de mulher”, se soubesse que havia tanta grana envolvida teria cobrado mais. O cara pagou-lhe um bônus, mas um mês depois ele voltou à carga. O que fez o executivo? Resignado, contratou um segundo matador para dar cabo do primeiro. O que foi feito. Escolado, trouxe um pistoleiro lá do Centro Oeste, que para lá voltou depois da tarefa cumprida.

Mas, não é que a história se repetiu? O segundo matador lia a “Veja” e viu uma matéria sobre o mandante. Pediu dinheiro para não ir à imprensa. E o sujeito, já atolado de compromissos até o pescoço (todo mês tinha que ir a Nova York discutir os contratos) deu um suspiro fundo e contratou um terceiro matador para dar cabo do segundo. Desta vez, para não correr riscos com profissionais espertos, providenciou um vagabundo para assaltar o chantagista e matá-lo. O que foi feito. Mas de uma maneira tão labrojeira (=grosseira, incompetente) que a polícia local prendeu o cara e em menos de um mês reconstituiu, do fim para o começo, toda a história aqui resumida. O executivo foi pêgo, e pelo que sei ainda está cumprindo pena, numa cela com TV e frigobar.

Hoje, ligo a TV e vejo Saddam Hussein sendo condenado à morte. Saddam é um jogador velho e calejado, entrou no jogo sabendo a regra. Os EUA o usaram para fustigar o Irã numa guerra que matou um milhão de pessoas e onde até armas químicas foram empregadas. Depois, ficou fazendo barreira à expansão dos aiatolás. Quando começou a engrossar o cangote e a ter ambições próprias, sabia que estava chantageando um executivo poderoso, que tinha meios de executá-lo. Entrou numa briga desigual movido pelo espírito de Tânatos, aquela ambição cega que leva os homens para a armadilha. A mesma que está levando os EUA, muito maiores, para uma armadilha muito maior. Saddam, como Osama Bin Laden, não passa de um matador profissional que resolveu se voltar contra o contratante. Por que? Por dinheiro, por vaidade, por delírio de grandeza – pelas mesmas coisas que fizeram o contratante contratá-lo. Os EUA são como o deus Saturno, que devorava os próprios filhos. Saddam é a bola da vez, e o próximo na fila é Osama Bin Laden.