quinta-feira, 11 de junho de 2009

1090) Exterminador de Dragões (13.9.2006)




Fui ver o show do “Slayer” na Fundição Progresso. Não, amigos, não sou um apreciador do heavy-metal; fui por solidariedade familiar para com a nova geração. E fui para ver se é verdade que os shows dessas bandas são rituais satânicos de gente drogada e bêbada. 

Confesso que não vi nada disso. Foi um dos shows mais tranqüilos que assisti na última década, e a única violência foi a cometida contra meus tímpanos, que estão zoando até hoje. Na hora que o bicho pega, a turma do gargarejo entrega-se a uma dança selvática na base do mete-o-cotovelo, mas vou ser sincero: coisa muito mais braba eu já passei na Rua do Amparo, seguindo o Homem da Meia Noite.

O vocalista da banda é um Hagrid (de “Harry Potter”) coloquial na fala e estentórico no canto. 

O guitarrista, um marcos-valério de cavanhaque mongol, é mais ligeiro-de-dedo do que Jacob do Bandolim. 

Há outro guitarrista cujo rosto ficou oculto sob uma cascata fulva, e também não vi o baterista, soterrado sob uma cordilheira de tambores e fumaça multicor, mas abrindo caminho valentemente, tendo numa mão o martelo de Thor e na outra o machado de Xangô.

É uma música brutal, que parece consistir apenas de blasfêmias, cabeçadas, bíceps e decibéis. Curiosamente, a banda baiana Ungodly, que fez o show de abertura, é mais caricata, teatral e posuda do que a banda norte-americana (que já tinha tocado no Brasil há doze anos). Era como ver uma luta de tele-catch e depois ver uma luta de verdade. 

A platéia de cinco mil pessoas (segundo “O Globo”) era majoritariamente na faixa dos 20-30 anos, mas havia uma galera adolescente, e um respeitável contingente de sujeitos já meio gordos, com cabelos grisalhos batendo na cintura. Por mais de vinte vezes julguei ter avistado Alex Madureira ou Paulinho Rafael. E todo mundo de camisa preta.

São satanistas, são adoradores de Belzebu? Não acredito. São jovens que flertam com o lado escuro da Força, mas quando viram adultos não se transformam em Darth Vaders. Perdem a ingenuidade infantil e se tornam Han Solo. 

Cultivam uma energia agressiva, mas é uma energia sem maldade, de natureza hormonal e de descarga centrífuga. Sai tudo no suor e no berro. E no ritual bizarro em que surram as próprias costas com os cabelos, o que me lembra o fanatismo dos xiitas que se chicoteiam ritmicamente durante as peregrinações.

Dizem que de vez em quando um deles comete um crime, mas, francamente, mais violentos do que eles são as torcidas organizadas do futebol brasileiro. A música que fazem tem peso bastante para garantir a combustão de toda a testosterona e megalomania produzida ali, num resultado de soma-zero que leva todo mundo para casa, após o show, pacificado e purgado pela catarse coletiva. 

E agora descobri porque as bandas de rock exigem 120 toalhas no camarim. É porque se faltar toalha eles têm que enxugar o cabelo no palco, balançando assim, assim, assim, assim...





1089) Sou feliz por um triz (12.9.2006)



Pesquisa do Datafolha divulgada recentemente pelo “Jornal Nacional” mostra que 76% dos mais de 7 mil entrevistados se consideram felizes. Outros 22% se acham “mais ou menos felizes”, o que apesar da ressalva me parece de bom tamanho para auto-diagnóstico existencial. Em seu blog, o jornalista Ricardo Noblat pergunta: “Se eles se sentem assim por que embarcarão no discurso da mudança? E da mudança para quê? (...) E depois digam por que um eleitorado que se declara tão feliz vai querer mudar muita coisa”.

Noblat faz este comentário, evidentemente, com um olho na pesquisa e o outro na campanha eleitoral. Eu não sei em que contexto foi feita a pesquisa. Talvez ela fizesse apenas a pergunta, a seco: “Você se considera feliz?” Talvez a pergunta fosse: “Dentro do atual contexto político-eleitoral brasileiro, você se considera feliz?” Talvez houvesse uma série de perguntas sobre eleições e política partidária, e no fim a pergunta sobre felicidade, que inevitavelmente viria contaminada pelas anteriores. Não sei, não vi.

Serei um excêntrico? Se um pesquisador de prancheta em punho toca à minha campainha e me pergunta se eu me considero feliz, nem por um instante me passa pela cabeça que minha felicidade esteja condicionada pelo fato do Partido tal ou tal ou do indivíduo Fulano ou Sicrano estar ocupando a Presidência da República. Minha felicidade é assunto meu, e o Governo está lá longe, fazendo seus discursos. Ele que passe bem e me deixe em paz. E eu acho que a maioria dos brasileiros também pensa assim. Minha felicidade pessoal depende do momento que estou vivendo junto às pessoas que me são caras, à minha família, meus amigos. Depende do meu trabalho: como estou me saindo, se estou fazendo coisas que considero importantes, se além de importantes elas são agradáveis, se estou sendo bem pago. Depende do meu cotidiano: se minha saúde está em ordem, se minha casa tem um espaço adequado e equipamentos satisfatórios. Depende de minha capacidade de estar fazendo planos para o futuro.

Nem todas estas coisas precisam estar 100%. Às vezes basta um problema mais sério (saúde, por exemplo) para empanar o brilho de todo o resto. Mas o conceito de felicidade pessoal do brasileiro não está muito ligado a quem ocupa a Presidência da República. Alguém pode objetar que as condições que enumerei acima dependem, sim, da política: salário, habitação, saúde, transporte... Claro. Mas a maioria delas depende mais do prefeito do que do presidente. E não é nenhum dos dois que vai me dizer se devo ser feliz ou não.

Eu me acho um sujeito cético, desconfiado, calejado pelas desilusões da vida pessoal e da vida pública. Na pesquisa, estaria na turma do “mais ou menos feliz”, mas por mera cautela, para não despertar as Parcas. Quando um brasileiro afirma que é feliz, é por um ato de coragem e de fé, um ato cuja essência é moral e pessoal, e não tem nada a ver com o rodízio nos escalões de cima do Funcionalismo Público.


1088) Mario Quintana (10.9.2006)




Nas comemorações do centenário do poeta gaúcho, a Nova Aguilar lançou sua Poesia Completa num só volume, coordenado por Tânia Franco Carvalhal. Comprei-o numa promoção pela pechincha de R$ 105,00. Como são quinze livros num só, saiu cada um por R$ 7,00, com a vantagem adicional da portabilidade, e da circunstância de que eu não tinha nenhum livro de Quintana, grave omissão da qual me penitencio em público.

Quintana é um poeta múltiplo e simples, capaz de sonetos impecáveis, divertidos epigramas em prosa, versos líricos de grande intensidade emotiva (através da contenção, e não do derramamento), tiradas filosóficas cheias de originalidade e profundeza. A onda do poeminha curto, tão cultivada pelos autores jovens nos anos 1970-80, foi em grande parte atribuída à influência de Oswald de Andrade, Paulo Leminski, etc. Não acho que se deveria omitir Quintana desse panteão. 

Sua poesia era menos polêmica, era discreta; mas era onipresente. Todo mundo lia e entendia Quintana, todo mundo percebia por trás de sua aparente ingenuidade infantil e do seu humorismo de ocasião uma mente complexa e sutil. Quintana tinha a perigosa ironia dos delicados, dos que se sabem incapazes de dar um soco em quem quer que seja e precisam cultivar outros métodos. Era incapaz de matar uma mosca, mas se uma mosca o importunasse ele certamente saberia afugentá-la com um simples adjetivo.

Ah, quem me dera, ante o espetáculo do mundo, 
sem mais hesitações e sem maior fadiga, 
esse instantâneo olhar, incisivo e profundo, 
com que julga a mulher as ‘toilettes’ da amiga! 

Pois era exatamente isto que ele tinha. Tinha o olho ingênuo e sábio de um Marc Chagall. Ou, mais brasileiramente, o olho e a mão de cartunistas como Appe ou Borjalo. A mesma economia de meios, a mesma precisão cirúrgica no traço, a mesma percepção instintiva dos pequenos absurdos poéticos do cotidiano.

Seus livros eram recolhas heterogêneas de versos, poemas em prosa, anotações fugidias, piadas, memórias. Não tinham jeito de livro de poemas; pareciam ser a transcrição “ipsis litteris” de seus cadernos de anotações (e um deles, justamente, chama-se “Caderno H”). 

Quintana era um desses ensimesmados que não têm medo da obviedade, porque mesmo quando escrevem um lugar-comum dão-nos a impressão de que chegaram a ele por esforço próprio, por uma lenta encadeação de idéias, como um sujeito que inventasse uma nova maneira de demonstrar que dois mais dois são quatro. “Se alguém acha que estás escrevendo muito bem”, diz ele, “desconfia. O crime perfeito não deixa vestígios”.

Há uma pequena fábula de Quintana em que um mendigo acha no lixo a lâmpada de Aladim, mas acaba preferindo levar consigo uma chaleira sem tampa, que lhe parece mais útil. Há um poema em que ele homenageia Ray Bradbury dizendo ser ele “a nossa segunda vovozinha velha / que nos vai desfiando suas histórias à beira do abismo”. Tudo que ele escreve parece um auto-retrato dele e um retrato nosso.






1087) Spam subliminar (9.9.2006)


(R. J. Matson)

Circulam na Rede mensagens onde está sendo usado um novo tipo de spam, por enquanto ainda meio rudimentar (pelo exemplo que eu vi), mas com um grande futuro pela frente. O exemplo que me indicaram está neste endereço: http://www.jgc.org/blog/2006/09/subliminal-advertising-in-spam.html?rf=23m. São quatro imagens tipo .GIF, sendo que uma delas, contendo a mensagem de propaganda, dura 17 segundos na tela, e as outras três são projetadas em frações de segundo, mostrando a palavra “BUY” (“compre!”) em diferentes posições.

Mensagens subliminares são aquelas que estão “abaixo do limiar da atenção”, mensagens rápidas demais para serem decodificadas pela mente consciente, e que por assim dizer “passam direto”, alojando-se no inconsciente das pessoas. Experiências com propaganda subliminar existem desde que eu era garoto, e já foram empregadas no cinema e na TV. Esta é a primeira vez que ouço falar no seu uso ligado à Internet.

Teoricamente, estas mensagens seriam capazes de implantar em nós alguns comandos mentais cuja existência nos passaria despercebida. De um momento para outro, estaríamos sentindo uma inexplicável necessidade de tomar Fanta Uva, de comprar a revista “Casa & Jardim” ou de usar pasta Colgate. Observem que as mensagens subliminares não escolhem suas “vítimas”, e fico daqui imaginando a situação de respeitáveis senhores de meia-idade comprando enormes quantidades de esmalte de unhas ou absorventes íntimos, sem saber por quê nem para quê.

Imagens GIF são as que fazem aquelas animaçõezinhas tão divertidas que vemos na maioria dos saites. São arquivos com múltiplas imagens em seqüência, que, ao chegar na última, recomeçam a seqüência a partir da primeira, em “loop”. Teoricamente, seus recursos são limitados, mas para efeito de propaganda subliminar basta estabelecer uma velocidade lenta o bastante para que a imagem seja captada pelas retinas, mas rápida demais para que ela seja registrada pela nossa atarefadíssima mente consciente. As possibilidades, como sempre, são infinitas, e neste caso são preocupantes.

A mensagem de spam contida no link acima faz parte de uma série que venho recebendo muito, ultimamente: spams com propaganda de ações da Bolsa de Valores, dando alguns dados básicos, cotação imediata, previsão de cotação futura, e aconselhando-nos a comprar. Os spams que recebo têm lançado mão de um recurso hábil para fugir à varredura dos sistemas anti-spam. O Spam propriamente dito vem numa imagem, e o resto da mensagem é um texto aleatório, que, uma vez lido pelo anti-spam, revela-se inofensivo. São fragmentos de romances em inglês, ao que parece, cortados e colados aleatoriamente. Como os anti-spams (ou pelo menos alguns deles) não “lêem” o que está escrito na imagem, a propaganda acaba passando. O uso de mensagens subliminares, que pode estar apenas começando, é o degrau seguinte nessa escalada. Fiquem de olho aberto! (Ou melhor – um aberto e o outro fechado).