quarta-feira, 10 de junho de 2009

1086) A linha evolutiva (8.9.2006)



Numa entrevista famosa à Revista Civilização Brasileira, por volta de 1966 ou 67, Caetano Veloso (então um jovem compositor que surgira em festivais mas não tinha gravado nenhum disco) afirmou: “O que precisamos é retomar a linha evolutiva da Música Popular Brasileira”. Esta expressão tornou-se slogan, abre-te sésamo, abracadabra, pedra-de-toque, palavra-de-ordem para intermináveis discussões nas quatro décadas seguintes. Prova de sua importância é o fato de que aqui estou, exumando-a mais uma vez e constatando que seu motorzinho ainda funciona.

Caetano queria dizer, acho, que a MPB precisava de novas sonoridades e estruturas de composição, uma nova poética nas letras, uma nova concepção cênica, enfim, todas essas coisas que o Tropicalismo acabou trazendo. A MPB da época parecia fechada no esquema voz-e-violão, ou regional-de-choro, ou trio-de-samba-jazz, e assim por diante; e Caetano via na música pop internacional um enorme florescimento de formas musicais que aos nossos músicos era vedado utilizar “porque não eram brasileiras”, ou algo assim.

Da frase de Caetano eu só questiono, hoje, a expressão “evolutiva”, que dá a idéia de que qualquer mudança que acabou ocorrendo foi para melhor. Esta termo darwiniano é muito perigoso porque justifica retrospectivamente tudo que de fato acontece. Houve evolução, então houve melhora, houve progresso. Ora, nem sempre é assim. A MPB mudou por conseqüência quase inevitável do que aconteceu no mundo naquele tempo. Se não existissem Caetano, Gil e o Tropicalismo, aconteceria outra coisa. Raul Seixas talvez suplantasse Chico Buarque junto aos críticos e Roberto Carlos junto ao público. Como vamos saber?

Talvez fosse melhor dizermos que era precisar retomar a “linha adaptativa” da MPB. Porque mesmo no conceito darwiniano de Evolução, esta não é senão uma série de adaptações a que uma espécie é submetida pelo meio ambiente, sendo que umas desaparecem e outras sobrevivem. Das que sobrevivem, dizemos que evoluíram em relação aos seus antepassados.

A MPB não evolui, ela se adapta. Adaptou-se ao jazz dos anos 1950, ao rock dos anos 1960, ao pop dos anos 1970, ao reggae dos anos 1980, ao hip-hop dos anos 1990 e assim por diante, para não falar em outros modismos. Adaptou-se porque ela própria floresce num mercado invadido. Invadido de fora pela produção estrangeira, e invadido por dentro pela música caça-níquel que os próprios brasileiros inventam, maravilhados com os enormes lucros que a prática do gangsterismo musical proporciona.

Dizer que uma música evolui é dizer que existe uma única direção certa, e que ela está se encaminhando para lá. Mas um processo como este não tem a forma de uma seta apontando o futuro. Tem a forma de uma ameba, algo que pode se expandir e alongar em qualquer direção que lhe convenha no momento, de acordo com os estímulos e pressões que recebe. A MPB adapta-se, sobrevive, e muda. “Evoluir” é uma utopia que só vale para pequenos grupos.

1085) O Nosso Líder (7.9.2006)



A maior parte dos milhões de votos que elegem um Presidente é dada por pessoas que não têm uma idéia muito clara do que este Presidente se propõe a fazer. Não digo que as pessoas sejam necessariamente burras (embora muitas sejam), ou de baixa escolaridade (idem) ou desinteressadas da política (idem). O que há é que, em tese, o leitor deveria examinar durante meses o que cada candidato considera de maior importância (em saúde, segurança, educação, política externa, transportes, etc.) e votar naquele que parece ter as melhores propostas. Quantos brasileiros fazem isto? Eu, pelo menos, nunca fiz.

O brasileiro vota por obrigação. Eu só vou votar este ano porque sou obrigado. Na vez passada, votei em Lula, cheio de preocupação porque imaginava que a partir de janeiro de 2003 uma república socialista começaria a ser implantada no Brasil, o que iria acarretar um bloqueio econômico internacional, câmbio e inflação galopantes, etc. O que demonstra o quanto eu, que faço pose de intelectual, não tinha uma idéia muito clara do que o Presidente se propunha a fazer (nem eu nem a torcida do Flamengo).

Votamos com a intuição, com o Inconsciente, com uma esperança meio irracional de que desta vez dê certo. Votamos como jogamos na Mega-Sena ou cravamos “2x0” no bolo do jogo de domingo. Votamos, principalmente, influenciados pelas imagens que os candidatos construíram ao longo dos anos. Esse horário gratuito do TRE não influencia muito. Só influencia se trouxer revelações bombásticas e indiscutíveis. No mais, qualquer eleitor já se acostumou à maledicência, aos brados de dedo em riste, às promessas, às denúncias, à manipulação de estatísticas, às imagens de crianças sorridentes agitando bandeiras e operários de capacete erguendo o polegar. Todo ano os programas são os mesmos, as imagens são as mesmas, as denúncias são as mesmas. Entra por um ouvido, sai pelo outro, e na hora do voto o eleitor vota num rosto.

Não, não vota no rosto mais bonito. Vota no rosto que lhe infunde mais confiança. Por que, por exemplo, o brasileiro votou em Collor, um político sem passado, de um partido sem expressão? Porque o carisma de Collor se manifestava numa fé ilimitada em si próprio, numa pose imperial e napoleônica que infundia uma enorme tranquilidade naquelas vastas populações ansiosas para delegar poderes. Depois de cinco anos de um titubeante Sarney, Collor parecia uma promessa de firmeza, parecia capaz de resolver todos os problemas com um só tiro. Essa altivez olímpica foi sendo sabotada aos poucos por um comportamento errático, atabalhoado, suicida. O estilo Collor de governar parecia o estilo de jogar de Fernando, atual zagueiro do Flamengo. Fosse ele um político hábil, teria enchido os bolsos da mesma forma, e terminado o seu mandato em paz. Não há nenhum Collor nesta eleição, e o eleitor parece estar dizendo que Lula é dos males o menor.

1084) Évariste Galois (6.9.2006)




“Genialidade e Estupidez”: é o título do capítulo que Eric Temple Bell, em seu clássico “Men of Mathematics”, dedicou a Évariste Galois (1811-1832). Há pessoas que nascem com o cérebro formatado para entender a mais abstrusa Matemática. Bell comenta que com doze ou treze anos o jovem Évariste leu o curso de Geometria de Legendre da primeira à última página, com a facilidade com que os demais garotos liam romances de piratas. Daí ele pulou direto para a álgebra de Lagrange. Suas notas no colégio, contudo, eram pífias, porque as tediosas e banais demonstrações dos professores eram-lhe insuportáveis. Galois absorvia o “estado da arte” do pensamento matemático, mas quando chegavam as provas, ele passava “pelo pau do canto”.

Foi um aluno problemático, porque, dizia-se, estava “possuído pelo demônio da Matemática”. Um dos maiores golpes que sofreu foi a reprovação nos exames para a Escola Politécnica, talvez pela incapacidade dos examinadores de entender seus raciocínios. Nessa época, tinha conseguido (equivocadamente, como se comprovou depois) resolver a equação geral de quinto grau, cometendo um erro que já tinha sido cometido no passado por Niels Henrik Abel. “Por um curto período de tempo,” diz Bell, “ele acreditou ter conseguido o que todos sabiam ser impossível”. Aos 17 anos, estava fazendo descobertas na teoria das equações, “descobertas cujas implicações, cem anos depois, ainda não foram esgotadas”.

Galois parece ter sido perseguido por uma curiosa falta de sorte; há pelo menos dois episódios em que manuscritos com ousadas teorias suas foram extraviados nas mãos de examinadores acadêmicos. Ele voltou-se para a agitação política, do lado dos republicanos, metendo-se numa complicação depois da outra, até acabar na prisão no final de 1831, saindo dela em maio de 1832.

Em 29 de maio ocorreu algo que até hoje está envolto em mistério. Ao que parece, Galois foi insultado por anti-republicanos e desafiado para um duelo. Passou acordado aquela noite, sabendo que ia morrer, e anotando por escrito todas as idéias matemáticas a que ainda não havia dado forma. Diz Bell que as folhas manuscritas destas últimas horas estão cheias de anotações desesperadas, à margem, dizendo: “Não tenho tempo, não tenho tempo”. Fez um testamento deixando tudo nas mãos de seu amigo Auguste Chevalier, pedindo-lhe que encaminhasse aos grandes matemáticos da época suas descobertas. Diz Bell: “O que ele escreveu durante aquelas horas de desespero até o raiar do dia deverá manter gerações de matemáticos ocupados durante os próximos séculos”.

Na manhã de 30 de maio de 1832, Évariste Galois saiu para enfrentar seu adversário, cuja identidade até hoje se desconhece. O duelo era de pistolas, e ele foi encontrado, horas depois, com os intestinos perfurados por um tiro. Levaram-no a um hospital, onde morreu na manhã seguinte. Tinha vinte anos, e deixou para o mundo sessenta páginas de manuscritos matemáticos.

1083) Alkmin, o Cafu do PSDB (5.9.2006)




Coitado de Geraldo Alkmin, meu Deus. Sua situação nas pesquisas é tão constrangedora que, para ajudá-lo, resolvi escrever um artigo dizendo que sua derrota eleitoral é líquida e certa. Toda vez que eu profetizo alguma coisa o Destino se mobiliza todo para me desmentir, portanto espero que estas linhas propiciem ao bravo político de Pindamonhangaba uma arremetida espetacular na reta final da campanha, transformando este morníssimo pleito numa febril disputa urna a urna, voto a voto.

O chega-pra-lá que Alkmin deu em José Serra, desbancando-o da condição de candidato do PSDB à Presidência, foi a última coisa emocionante desta campanha. A gente não sabia o que ia acontecer, e qualquer um dos resultados era possível; foi o último momento quântico do pleito. O resto está sendo de uma previsibilidade francamente newtoniana. Alkmin foi aquele cara que vem lá de trás, empurrando todo mundo, “sai, sai, deixa comigo, deixa que eu assumo, deixa que eu resolvo”, e quando todo mundo arreda para deixá-lo passar, ele tomba exausto. A luta pela candidatura esgotou todo o gás que tinha.

Agora, os cardeais do PSDB não sabem o que fazer com ele mas não podem mais substituí-lo. Vivem uma angústia semelhante à de Carlos Alberto Parreira, quando viu Cafu, sentado ao seu lado, escalar-se a si próprio durante uma entrevista coletiva na véspera do jogo contra Gana, e percebeu naquela hora que quem manda na Seleção Brasileira não é o técnico, são Os Contratantes e por tabela seus Contratados. Hoje, Alkmin é o Cafu do PSDB, ao qual não resta alternativa senão acompanhar até o fim o próprio esquife.

Alkmin protagonizou dias atrás um episódio engraçado no Rio. Entrou no Vermelhinho (bar da Cinelândia, junto ao Amarelinho), pediu em vez de um chope um cafezinho, e botou sal pensando que era açúcar. Isso pra mim foi mais simbólico e definidor do que um hexagrama do I-Ching. Fez parelha com um episódio semelhante vivido anos atrás pelo nosso bravo prefeito César Maia, que num corpo-a-corpo eleitoral no centro da cidade entrou num estabelecimento, encostou-se no balcão e pediu um cafezinho. O balconista respondeu: “Doutor, isto aqui é um açougue”.

Deve servir de consolo a Alkmin o fato de que César Maia foi eleito, e é hoje uma espécie de prefeito vitalício do Rio, podendo eleger-se quantas vezes quiser e a legislação permitir. A falta de carisma (se Alkmin é um picolé de chuchu, César é uma jujuba de soja) não o impediu de passar-no-rodo os oponentes, talvez porque um prefeito e suas obras sempre têm presença mais palpável do que um Presidente, que é votado pelo que tem de simbólico e emblemático. Alkmin fala na TV com uma concentração e intensidade admiráveis. Nunca olha para a câmara, o que lhe dá a aparência de um patrão que está demitindo um empregado sem cruzar o olho com o dele. Pode estar iniciando uma promissora carreira em escala nacional – agora, se não se cuidar, perde o segundo lugar para a Maria Bonita das Alagoas.

1082) Húbris (3.9.2006)


(Aristóteles)

Volta e meia a gente encontra por aí a palavra “húbris” (substantivo masculino, mesma forma no singular e no plural), principalmente em análises de tragédias teatrais, ou de acontecimentos políticos. O sentido moderno de “húbris” é arrogância, excesso de auto-confiança, desprezo pelos demais, que leva o indivíduo a auto-glorificar-se e a humilhar os derrotados. Nas tragédias clássicas, húbris é aquela pose de superioridade orgulhosa que alguém ostenta quando está “por cima”, e que, por obra e graça do dramaturgo, será devidamente castigada com as tragédias e catástrofes do terceiro ato.

Pessoas cujo sucesso lhes sobe à cabeça e passam a achar-se acima do Bem e do Mal estão acometidas de húbris. Países que ganham uma guerra e impõem castigos humilhantes aos povos vencidos estão indo pelo mesmo caminho. Políticos que se deslumbram com uma posição de Poder e acham que o Poder lhes pertence passam muitas vezes a ser exemplos vivos de húbris, perseguindo adversários, metendo a mão na grana de forma acintosa, adotando uma pose imperial e tratando todo mundo a pontapés.

Aristóteles assim definiu o conceito de húbris: “Húbris consiste em dizeres ou fazeres coisas que causam vergonha à tua vítima, não porque algo possa vir a te acontecer, nem porque algo te aconteceu, mas apenas para tua própria satisfação. Húbris não é um acerto de contas por injúrias passadas: a isto chama-se vingança. Quanto ao prazer envolvido na prática de húbris, sua razão é esta: os indivíduos pensam que tratar mal os demais aumenta a sua própria superioridade”.

Pois é, eu gostaria de ver Aristóteles, vestido naquele lençol branco que parece ter sido sua indumentária oficial, sentando-se de binóculo em punho na Tribuna de Honra do Estádio (por exemplo) Santiago Bernabeu, para assistir à exibição do Real Madrid com seu elenco de galácticos. Jogadores que já ganharam todos os títulos coletivos e todas as honrarias individuais que o futebol pode proporcionar, jogadores de gênio que têm consciência da própria genialidade, que sabem o que fizeram e do que são (ou já foram) capazes, adulados por uma multidão de assessores e empresários, seduzidos pelas beldades da moda. Tudo conspira para que, nessas circunstâncias, eles se reclinem na languidez dos domesticados, e percam a agressividade criativa indispensável para jogar, para pintar, para escrever, para atuar. Uns conseguem. Outros não. C’est la vie.

Aqui no Brasil criamos um conceito tropical e festivo de húbris. Não basta ganhar: é preciso golear, e depois tripudiar sobre o adversário vencido. Vitórias de 1x0 ou 2x1 nos parecem insuficientes para “o melhor futebol do mundo”; só gostamos de 4 pra cima. E depois do placar garantido, é a hora de pedalar, de dar chapéu, de passar a bola por entre as pernas, de trocar 25 ou 30 passes diante do adversário exausto, de fazer embaixadinhas dentro da área. Cuidado. Os deuses do futebol, sentados ao lado de Aristóteles, tudo vêem, e nada esquecem.

1081) Pinto do Monteiro (2.9.2006)



Encerra-se hoje a programação do Projeto “Paraíba com Memória” em homenagem ao repentista Pinto do Monteiro, em sua cidade natal. Desde 22 de agosto foram realizadas palestras, apresentações musicais, cantorias, oficinas. Esta noite terá lugar o XXV Festival de Violeiros do Cariri Paraibano, e bem que eu gostaria de poder estar presente para ouvir os belos versos de Moacir Laurentino e João Paraibano, as tiradas imprevisíveis de Louro Branco e as mentiras de João Furiba.

Furiba é o que tem mais histórias sobre Pinto, com quem cantou durante anos. Num meio competitivo e cheio de vaidades como o da Cantoria de Viola, é impressionante a unanimidade construída em torno da figura do cantador de Monteiro. Pergunte-se quem foi o maior repentista de todos os tempos e ele sempre terá maioria absoluta de votos. Qualquer grupo de cantadores é capaz de relembrar sextilhas de Pinto durante horas a fio. Pinto tinha a inteligência rapidíssima necessária à composição do verso capaz de desarmar, peça por peça, o verso que o companheiro acabou de cantar, como se tivesse tido tempo para analisá-lo, neutralizar seus pontos fortes e bombardear seus pontos fracos.

Algum tempo atrás me disseram que o edifício mais alto que tem hoje na cidade de Monteiro é a sede da banda Os Magníficos. Desejo sucesso à banda, como desejo a todo mundo que trabalha duro e honestamente; mas confesso que não é o tipo de música que mais me agrada. Deve ser um sinal dos tempos o fato de que a cidade de Pinto é hoje conhecida como a cidade dos Magníficos.

Vi-o cantar umas três ou quatro vezes, mas não considero. Pinto já estava com mais de 80 anos, o pulmão cansado, a voz quase ininteligível. Quem o viu no auge, lá pelas décadas de 1940-1960, não esquece sua verve irônica e sarcástica, sua poderosa observação da Natureza (inclusive a “natureza humana”, nossos pequenos defeitos, nossos cacoetes imperceptíveis), seu vocabulário simples mas rico, e implacavelmente preciso. E principalmente sua fluência. Uma característica dos grandes versos de Pinto é a sua aparente espontaneidade, o modo como aquilo que ele está dizendo se distribui ao longo das linhas, e das rimas obrigatórias. Todo cantador dá uma ajeitada aqui e ali, inverte uma frase de posição para encaixar na rima, dá uma engolida num termo para acomodar na métrica... O verso de Pinto, em geral, corre manso do começo ao fim, sem solavancos, perfeitamente encaixado na fôrma. Era como se ele viesse de um planeta onde só se pensa e só se fala em forma de sextilha.

Era ranheta, ranzinza, “baixinho invocado”. Uma espécie de Seu Mandury de viola em punho, sempre de bote armado, sempre pronto para dar-um-toco no primeiro sujeito que dissesse alguma coisa fora do tom. Pelas histórias que ouço a seu respeito, todos o temiam, e todos o adoravam. Impôs-se pelo caráter e pelo talento, e não conheço uma maneira mais duradoura para um sujeito se impor em seu próprio tempo e nos tempos que virão.