domingo, 7 de junho de 2009

1080) Cristovam Buarque (1.9.2006)



Leio a transcrição do debate de Cristovam Buarque com jornalistas do “Globo”. Em sua coluna, Artur Xexéo comenta: “O Cristovam de uma idéia única na televisão mostrou-se sereno, inteligente, bem-humorado e até criativo. Um hipotético governo sob seu comando seria muito mais do que a cantilena de educação que ele mostra na TV”. Cristovam sabe que não vai ganhar (reconhece que só ganha “se todos os outros morrerem”), e transformou sua campanha numa peregrinação cívica em que usa o tema da Educação para falar do futuro, de providências a longo prazo, e para abrir os olhos do presente com relação à catástrofe social que criamos, e que nos aguarda, de arma em punho, daqui a algumas décadas.

Talvez faltem a Cristovam aquelas qualidades pessoais que elegem tanta gente, seja o charme londrino-parisiense de FHC, seja a autenticidade migrante-proletária de Lula. Cristovam, na melhor das hipóteses, se parece com aquele professor boa-praça que põe as cadeiras em círculo para dar aula, e que é visto tomando cafezinho na cantina e discutindo idéias com os alunos. Falta-lhe o carisma olímpico de quem diz representar As Elites, e o carisma pé-descalço de quem diz representar o Povo.

Anos atrás, numa campanha presidencial norte-americana, li um artigo numa revista comentando os pré-candidatos. O jornalista dizia: “O melhor presidente para os EUA seria Fulano de Tal, que é honesto, bom administrador, tem idéias avançadas, etc. Mas jamais será eleito, porque não tem carisma, não aparece bem na TV, e não sabe discursar. Perdemos os melhores presidentes simplesmente porque, do jeito que é a democracia hoje, eles não são bons candidatos”. Creio que estamos sujeitos à mesma maldição.

Cristovam justifica com tranqüilidade o fato de ter 1% nas pesquisas: “Sou professor, e a minha profissão é mais convencer do que seduzir. E eleição é mais sedução do que convencimento”. Pense num sujeito destinado a um eterno um-por-cento! Deve ser esta a percentagem de eleitores brasileiros dispostos a discutir idéias, entender propostas, examinar plataformas, comparar ideologias. O resto vota com o Inconsciente Coletivo, vota no mesmo estado de semi-alucinação com que se apaixona por estrelas de cinema. A democracia eletrônica é uma espécie de telenovela permanente, onde os mesmos atores estão sempre em cartaz, mesmo que de vez em quando mudem de personagem. Geraldo Alkmin queixa-se de que é menos conhecido do que Lula, porque “Lula já disputou seis eleições presidenciais”. E tem razão. Ninguém liga para o Mensalão; os atuais 40-e-tantos por cento de Lula se devem ao efeito residual e cumulativo destes anos todos na telinha. Mais conhecido do que ele, só mesmo Renato Aragão ou Tarcísio Meira.

Cristovam é uma ilha de lucidez no meio do delírio e da falsa liberdade que é a democracia eletrônica. Uma ilha pequena demais para comportar os não-sei-quantos milhões de votos de que precisaria para ser eleito.

1079) Dirac e Forster (31.8.2006)




(Paul Dirac, E. M. Forster)

O físico Paul Dirac foi um sujeito meio caladão, o tipo do cientista distraído e ensimesmado. Uma vez foi à União Soviética para dar uma palestra sobre “A Filosofia da Física”. Ele foi ao quadro-negro e escreveu: “As leis físicas devem ter beleza matemática e simplicidade”. E nada mais disse nem lhe foi perguntado. Não precisava, né? 

Dizem que é dele também uma definição famosa sobre a diferença entre Ciência e Poesia: “Ciência consiste em dizer às pessoas, de modo a ser entendido por todas elas, alguma coisa que ninguém tinha pensado antes. Poesia consiste em fazer o contrário disto”. E por mim está uma definição de bom tamanho.

A Ciência procura a beleza, a simplicidade, a clareza. As definições científicas parecem difíceis para leigos como nós porque são uma linguagem, e qualquer linguagem precisa ser aprendida para que se consiga perceber o que tem de novo ou de belo. Expor leis científicas é dizer algo que ninguém tinha sabido ainda, e dizê-lo de uma maneira clara, simples, inteligível. 

Já a Poesia consiste em revelar sentimentos e idéias que fazem parte do enorme tumulto semi-consciente em que qualquer ser humano medianamente lúcido vive mergulhado, e fazer essa revelação de uma maneira simultaneamente clara e obscura, cheia de revelações mas ao mesmo tempo cheia de mistérios, dizendo alguma coisa que nos parece inestimavelmente valiosa mas ao mesmo tempo mostrando que nem tudo ainda foi dito, e que a cada vez que retornarmos àquele texto talvez haja uma revelação nova à nossa espera.

Diz-se que certa vez amigos da Universidade de Cambridge viram no escritório de Dirac um exemplar do romance de E. M. Forster Passagem Para a Índia, e patrocinaram o encontro entre o físico e o escritor, que era 23 anos mais velho. 

Os dois puseram-se a tomar chá, sem dizer nada, até que a certa altura Dirac perguntou; “Afinal o que aconteceu na caverna?”, ao que Forster respondeu: “Não sei”. E a conversa terminou aí. 

Dito assim, a seco, o episódio parece um desencontro, mas eu não acho. Todos dois sabiam que estavam lidando com categorias semelhantes de fenômenos. A pergunta de Dirac se refere ao episódio central do romance, quando uma jovem inglesa, em passeio pela Índia, é acompanhada por um guia local até o interior de uma caverna. Algum tempo depois ela foge dali, meio histérica, dizendo que ele tentou violentá-la. O indiano se defende, dizendo que não tentou nada, e acaba indo a julgamento.

Para Forster, mais importante do que dizer se a tentativa de estupro acontecera ou não era deixar o episódio envolto numa zona de mistério, para que o livro admitisse sempre duas leituras contraditórias, mutuamente excludentes. 

É mais ou menos o que faz a Física Quântica, de que Dirac foi um dos criadores. Existem aspectos da Natureza que nunca sabemos se são assim ou assado, e o modo que escolhemos para examiná-los determina a resposta que vamos obter. O que há dentro da caverna? Aquilo que fomos procurar.






1078) Meditações sobre o infinito (30.8.2006)


("gyre" de W. B. Yeats)

Minha primeira noção pessoal sobre o Infinito veio com doze ou treze anos. A leitura de alguns livros de pulp fiction (principalmente O Homem Eterno de F. Richard-Bessière e O Universo Vivo de Jimmy Guieu) me chamaram a atenção para a semelhança visual e estrutural entre um átomo e um sistema solar. Uma esfera de energia no centro, em volta da qual giram velozmente alguns fragmentozinhos de matéria. Pensei de imediato: “Isto talvez signifique que o nosso Sistema Solar não passa de um átomo dentro de uma molécula de uma substância qualquer que forma um objeto material, talvez um grão de areia ou uma gota dágua, num universo infinitamente maior do que o nosso. E, ao mesmo tempo dentro de qualquer grão de areia ou gota dágua daqui, existem milhões de sistemas, etc. etc.”

Não, coleguinhas, não estou me gabando ou posando de intelectual. Qualquer adolescente que lê ficção científica se acostuma a conceituar três vezes o Infinito antes do café da manhã. Faz parte da revolução mental produzida pelo gênero, que, idealmente, começa a ser lido numa idade em que a mente tem elasticidade suficiente para comportar a vastidão desses conceitos. Porque dos quinze anos em diante a mente do indivíduo se contrai, ele passa a pensar apenas em futebol, dinheiro e mulher; e o Infinito fica desse tamanhinho.

Outro conceito que desenvolvi por conta própria foi: “O Universo é um cone, cuja ponta é a base de outro cone infinitamente menor, e cuja base é a ponta de outro cone infinitamente maior”. Muitos anos depois encontrei num livro de W. B. Yeats uma menção a um símbolo místico chamado de “gyre”, que consiste em dois cones invertidos, um dentro do outro, sendo que a base de um é a ponta do outro, e vice- versa; e à medida que uma se expande a outra se contrai, e vice- versa (a menção de Yeats está no poema “The Second Coming”). Aqui, não temos propriamente o Infinito, mas um exemplo de Ciclo fechado mas em incessante dinâmica.

Também naquela idade citada acima li um livro de Giovanni Guareschi, O Pequeno Mundo de Don Camilo, historietas sobre um vilarejo italiano e as discussões entre Don Camilo, o padre local, e o prefeito Peppone, que é comunista. O padre tem o hábito de conversar com o Jesus do altar, que lhe responde em voz alta e demonstra ser um excelente papo (creio que é o Jesus mais verossímil que encontrei até hoje na literatura). Na primeira página do livro Don Camilo pergunta: “Jesus, se eu começar a contar, 1, 2, 3, 4, 5.... chegarei um dia ao fim?” E Cristo, lá do alto da cruz, responde: “Ora, Don Camilo, é a mesma coisa de traçares um círculo no chão, começares a andar ao longo da circunferência, e quereres chegar ao fim”. Temos que distinguir entre “fim” e “limite”. O nosso Universo físico, como o círculo, é finito, mas é ilimitado. Ele não se expande indefinidamente, mas em compensação não tem um ponto específico onde você possa parar e dizer: “Acaba aqui”.

1077) Jornalismo e boca-livre (29.8.2006)



Comentei aqui nesta coluna o artigo de Eric D. Snider, “Eu me prostituí por mordomias”, sobre o derrame de dinheiro que as produtoras de Hollywood promovem para, teoricamente, “divulgar” o lançamento de um filme. A Paramount gastou mais de mil dólares só com Snider para que ele viajasse de Portland a Seattle e tivesse um total de uma hora de entrevistas (?) coletivas com atores e com o diretor do filme. Snider critica seus colegas jornalistas (nenhum dos quais ele conhecia antes) que participam da empreitada. Trata-os respeitosamente, mas sua crítica é feroz. Diz ele:

“Se o objetivo do estúdio é obter lucro com o filme, então é absurdo gastar tanto dinheiro com coisas que, no final das contas, na verdade não vão aumentar muito a venda de ingressos. Comerciais de TV, propaganda on-line, cartazes, trilhas sonoras – quanto a isto, tudo bem. Tudo isto faz sentido. Estas coisas têm influência direta sobre os consumidores. Mas essas materiazinhas fúteis que saem na imprensa como conseqüência dessas sessões de mordomias... isto pode levar às salas alguns poucos espectadores a mais, mas nada que justifique tamanha extravagância”. Snider foi banido pela Paramount de todas as “mordomias” da empresa, pelo resto da vida; diz ele que a produtora pressionou as outras para fazerem o mesmo (sem sucesso).

O capitalismo de entretenimento, ou a cultura-de-massas, submete-se a uma variante específica da Lei dos Rendimentos Decrescentes. Esta lei diz, mais ou menos: se dez pedreiros constroem um muro em duas horas, usar mil pedreiros não vai fazer o muro brotar em alguns segundos. Chega um ponto em que o aumento de um fator deixa de influenciar positivamente o resultado final. No caso de Hollywood ou da indústria fonográfica, criou-se ao longo das décadas um Aparato gigantesco para produzir, divulgar e distribuir um disco ou um filme, e a coisa chegou a um tal ponto que não é mais o Aparato que serve ao filme, mas o filme que serve ao Aparato. É uma indústria gigantesca de comerciais, bugigangas de divulgação, brindes, brinquedos, toneladas de papel impresso, entrevistas, matérias pagas, viagens, coquetéis, jantares, merchandising, etc. e tal

Acontece que não há como aferir (corrijam-me se eu estiver errado) se todo esse Aparato resulta ou não em mais ingressos vendidos. O filme é lançado, e os responsáveis alardeiam: “Divulgação não faltou”. Se o filme estoura na bilheteria (Piratas do Caribe 2), o pessoal do Aparato comemora, cobre-se a si mesmo de elogios. Se o filme é um fracasso (Alexandre), a culpa é do filme, porque “divulgação não faltou”. E na semana que vem o Aparato continuará funcionando a todo vapor, sugando dinheiro de outro filme, e de outro, e de outro. Como dizia Franz Kafka: “Os leopardos invadem o templo, e bebem o conteúdo dos vasos sagrados. Com o tempo, a invasão torna-se habitual, e acaba sendo incorporada à cerimônia”.