segunda-feira, 6 de abril de 2009

0953) Stanislaw Lem (6.4.2006)


(Stanislaw Lem)

Morreu Stanislaw Lem. Caso nunca tenha ouvido falar nele, caro leitor, eu compreendo. Lem foi um Mestre com M maiúsculo, mas nunca foi tão chegado aos holofotes e às câmeras como muitos de seus contemporâneos. Poucos livros seus foram publicados no Brasil. O mais conhecido deles, Solaris (Editora Relume-Dumará), só chegou ao grande público por ter sido filmado pelo russo Andrei Tarkovsky e pelo americano Steven Soderbergh. Para alguns críticos é seu melhor romance (e eu próprio já o incluí certa vez na minha lista dos “Dez Melhores Livros de Ficção Científica”). Mas a obra de Lem é numerosíssima e variada. Seu saite fica em: http://www.lem.pl/english/main.htm.

Nascido na Polônia, médico de profissão, Stanislaw Lem escreveu dezenas de livros onde se percebe erudição literária, uma inclinação para o humor e o trocadilho, uma percepção intuitiva e cética do absurdo da existência humana, uma grande capacidade de manipular elementos científicos e dar-lhes feição de conto folclórico. Alguns de seus livros mais curiosos são aqueles onde ele finge investigar ciências imaginárias. Imaginary Magnitude (1973) consta de uma série de prefácios para livros fictícios sobre temas que vão desde a criação de imagens pornográficas com o uso de Raios-X (“Necróbios”) até a arte de conversar por escrito com bactérias microscópicas (“Erúntica”). Em A Perfect Vacuum, em vez de prefaciar ele resenha livros imaginários, e diz: “Até agora, a literatura nos tem apresentado personagens fictícios. Devemos ir mais adiante, e descrever livros fictícios. É uma chance de recuperar a liberdade criativa, e de unir duas mentalidades que atuavam em campos opostos: a do escritor e a do crítico literário”.

Erudição e humor são duas constantes na obra de Lem, e estão presentes em outro livro seu já traduzido entre nós, e que pode ser achado nos sebos: O Incrível Congresso de Futurologia, a história de um congresso de cientistas cujo hotel sofre um atentado terrorista (LSD na água) que deixa todo mundo ligeiramente delirante. Ciência e absurdo fazem de Lem o escritor que criou os alienígenas mais verossímeis de toda a FC: distantes, enigmáticos, tão incompreensíveis para nós quanto nós o somos para eles.

Lem foi para a Polônia o que Jorge Luís Borges foi para a Argentina: aquela montanha solitária vista ao longe, que indica a existência de um continente, e que só quando nos aproximamos percebemos que a montanha não é tão isolada assim, é apenas o pico mais visível de uma longa cordilheira de tradição cultural e literária. A obra dos dois é um ótimo argumento contra a tese de que a literatura de ficção científica é algo tipicamente dos EUA, como o filme de faroeste. Não é. O que há é que nenhum polonês, argentino ou brasileiro poderá fazer FC americana tão bem quanto os americanos. Em contrapartida, coube a Lem mostrar como seria um FC polonesa, e a Borges como seria uma FC argentina.

0952) O Diabo: o homem que não sua (5.4.2006)




(O sheriff Cooley, em O Brother, Where Art Thou?)

Lembro de ter lido, não sei onde nem quando, uma menção ao Diabo como sendo “um homem que nunca sua”. Essa referência veio se somar a outras vindas da tradição popular, onde o Demônio é sempre um indivíduo que aparece de repente, que nunca ri, que atravessa paredes... 

No Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna, podemos encontrar no Folheto LVI: 

“Garanto ao senhor: eu tenho muito mais medo e muito mais horror ao Diabo das cidades, que tem cara de funcionário aposentado, que anda às vezes de bicicleta, vestido de preto, com chapéu-coco, com um ar esquerdo e maldoso, em pleno sol, sem suar nada, absolutamente nada, o que, como todo mundo sabe, é coisa do Danado!” 

Essa confirmação sempre me pareceu consequência do fato óbvio de que o Diabo não sua porque não está com calor. É claro! Muito mais calor faz no Inferno, e quando transita por aqui ele deve estar é batendo-o-queixo de frio.

Guimarães Rosa, que nunca me deixa mentir, também o atesta, por vias indiretas, quando faz Riobaldo afirmar, logo depois de fazer o pacto com o Demônio na encruzilhada das Veredas Mortas: 

“Meu corpo era que sentia um frio, de si, frior de dentro e de fora, no me rigir. Nunca em minha vida eu não tinha sentido a solidão duma friagem assim. E se aquele gelado inteiriço não me largasse mais.” (pag. 399 da 2a. edição). 

Ao se encarnar em corpo humano, o Diabo treme de frio.

Falando em pacto, lembro do bluesman Robert Johnson, de quem se diz que fez um tal acordo. E é curioso ver o depoimento de seu companheiro Johnny Shines, que viajou com ele por todo o delta do Mississipi: 

“Robert estava sempre limpo. Robert andava na estrada o dia inteiro, eu olhava para mim e estava sujo como um porco, e Robert estava sempre limpo – como, eu não sei”.

"Não suar" parece ser um atributo dos que têm ligação com o sobrenatural. Em seu livro sobre Tia Ciata e o samba carioca, Roberto Moura transcreve um depoimento sobre Hilário Jovino Ferreira, figura seminal do carnaval desde sua chegada ao Rio em 1872. Diz seu afilhado Bucy Moreira: 

“O Jovino era um espírito danado. Tinha o espírito de Don Juan, um sujeito bem apanhado. Olha, esses pretos que não suam, sabe como é? Preto enxuto, meu padrinho, tudo dessa turma, que os médicos dizem, aliás, que duram pouco. Todo negro dessa espécie tem transporte de cão, não sua, pode fazer o calor que fizer, ele tá sempre enxuto”.

Sem dúvida é uma característica étnica, de certas populações negras; mas sempre há quem faça a conexão sobrenatural. Relata Moura que Hilário Jovino “era temido como feiticeiro, considerado amigo poderoso e adversário dos mais temíveis e implacáveis, capaz de se valer dos seus diversos dotes e saberes num confronto”. 

A ausência de suor funciona (num contexto de pensamento mágico) como a ausência de reflexo no espelho ou de sombra (no caso dos vampiros). O suor é um detalhe, mas é atributo da humanidade. Quem não o tiver, não é humano.






0951) O astronauta brasileiro (4.4.2006)



Enquanto escrevo estas linhas, nosso astronauta Marcos Pontes já decolou para o espaço há duas horas, e em breve a nave que o conduz estará se acoplando à Estação Espacial. Momento histórico, sim, e acho que devemos comemorar o fato de um brasileiro ir ao espaço. (Alguns mais calejados me sussurram: “Calma, espera pra ver se ele volta inteiro”) Vi matérias eufóricas dizendo que finalmente entramos na maioridade científica, e matérias dizendo: “Nós quem, cara pálida?” Alguns cientistas parabenizaram o astronauta, mas lembraram que a viagem dele está custando o equivalente a um terço do orçamento total do programa espacial brasileiro. É como se o Treze pagasse 100 mil reais à CBF para que Beto jogasse uma partida pela Seleção Brasileira. Seria ótimo, principalmente para Beto, que entraria para a História, e para a CBF, que faturaria uns trocados.

Vendo essa festa, lembro uma canção de Lula Queiroga dos anos 1980, que ao que eu saiba nunca foi gravada, cujo refrão diz: “Eu tô com medo! Sou o primeiro astronauta brasileiro!” A letra de Lula fala das paranóias do astronauta tupiniquim imaginando a quantidade de equipamentos que podem dar defeito de um momento para o outro; mas só tem graça porque ele imagina que a nave é brasileira também. Não é o presente caso. A viagem de Marcos Pontes é toda feita como tecnologia lá de fora. Não representa uma conquista científica; no máximo, é (que ironia) uma conquista econômica, uma prova de que o país é rico e pode pagar para que ele faça uma viagem cara como esta.

Estou sendo cruel com o nosso Flash Gordon. Marcos Pontes é certamente um desses garotos que, como eu, leram aventuras espaciais na infância e sonharam em subir ao céu em foguetes, ver se a Terra é mesmo azul. Eu sonhei com isto aos dez anos, achava que lá por volta do ano 2000 já teríamos bases na Lua, ônibus espaciais indo e voltando, e quem sabe eu, já cinqüentão, faria uma dessas viagens na qualidade de jornalista. Não deu pra mim. Deu pra Marcos Pontes que, pelo menos, está indo realizar experiências científicas que podem ser de alguma utilidade futura.

O que importa é que com a ida dele, garotos brasileiros poderão perceber que nenhum sonho está vedado aos garotos brasileiros. Que não são somente os garotos russos ou norte-americanos que podem sonhar com isto, mas garotos do Brasil, da Bolívia, de Angola, da Tailândia ou do Uzbequistão. As barreiras econômicas existirão sempre, mas tudo que é definido como barreira pode, por definição, ser transposto, contornado ou derrubado. O que há de mais bonito nas conquistas da Ciência é o seu caráter universal. Tudo que a Ciência inventa ou descobre é para todos. A Ciência e o Saber unem; quem separa são a Política e o Poder. Todos têm direito de sonhar, de querer, de tentar conseguir também. Nada é tão democrático quanto a Ciência, e ver um brasileiro no espaço é mais uma maneira de lembrar desta verdade tão simples.

0950) Dolores Sierra (2.4.2006)



“Dolores Sierra”, de Wilson Batista e Jorge de Castro, foi gravada indelevelmente por Nelson Gonçalves em 1956. Para os mais gastronômicos é um bolero banal e sem beleza, mas para mim é uma letra digna de Jorge Luís Borges. 

A canção:  https://www.youtube.com/watch?v=wIZ793o-v2U

Surgiu no mesmo ano de “Conceição”, samba-canção de Dunga e Jair Amorim, que Cauby Peixoto tornou famosa: “Conceição, eu me lembro muito bem: vivia no morro a sonhar, com coisas que o morro não tem...” A velha história das mocinhas proletárias que, pensando em vestidos e palacetes, deixam-se seduzir pelos homens “do asfalto”.

A canção gravada por Nelson tem esse mesmo espírito, tão brasileiro, mas já começa com uma nota de exotismo: 

“Dolores Sierra 
vive em Barcelona à beira do cais. 
Não tem castanholas 
e faz companhia a quem lhe der mais.” 

(Lembro que, quando ouvia a música na infância, pensava ingenuamente que a moça fazia companhia a quem lhe desse mais companhia.) 

A biografia prossegue: 

“Nasceu em Salamanca, seu pai lavrador, 
veio à maioridade. 
Pois quem nasce na roça 
tem sempre a ilusão 
de morar na cidade”. 

Barcelona, Salamanca e castanholas são meros adereços, mero “traje típico” da personagem, tanto quanto a Babilônia e a Babel de Borges eram no fundo sua Buenos Aires natal. 

Aqui, a memória instintiva do poeta o leva a falar em “lavrador” e “roça”, traindo a presença do mundo social que o inspira.

E ele continua: 

“Sua mãe chorou no dia em que ela partiu 
pra conhecer Dom Pedrito 
que prometeu, não cumpriu... 
Com frio e sede, só, na sarjeta, 
sorriu para um homem 
e ganhou a primeira peseta”. 

Dom Pedrito e as pesetas são, mais uma vez, trajes típicos; os versos contam toda a história com uma bela economia de meios. 

É belo o arqueamento angustiado da melodia em “com frio e sede, só, na sarjeta”, e o contraste com as notas solertes de “sorriu para um homem”, onde quase visualizamos um personagem masculino surgindo na tela, enquadrado em contraluz.

E aí vem o primoroso desfecho: 

“O navio apitou. 
Paguei a despesa, a história se encerra. 
Adeus, Barcelona, adeus... Adeus, Dolores Sierra”. 

Duas vezes na minha vida tive esta experiência estética. A primeira foi nesta canção, quando, no meio de uma narrativa na terceira pessoa, surge como que do nada este “Eu” que não pertence ao autor, mas a um personagem, dizendo que “o navio apitou” e que não pode se estender mais. 

A segunda vez foi lendo “A Loteria de Babilônia” de Borges, quando, a certa altura de sua descrição desta cidade fantasmagórica, regida por uma Companhia invisível (que determina por sorteio a vida e a morte de todos os habitantes), li com espanto o narrador dizer: “Pouco tempo me resta; avisam-nos que o navio está por zarpar; mas tratarei de explicar tudo”. 

Recurso cediço e folhetinesco, decerto, que serve de álibi para as explicações truncadas e o final abrupto. Mas como um clichê banal se enriquece, ao ser transportado do folhetim para a canção, ou para o conto metafísico!





0949) O negão no ônibus (1.4.2006)



Aconteceu há alguns anos, aqui no Rio. Peguei um ônibus do circular Glória-Leblon. Quando estávamos à altura da Praia de Botafogo o ônibus parou no ponto e um negão entrou pela porta da frente. (Naquele tempo, nos ônibus cariocas, os pagantes entravam pela porta traseira e saíam pela dianteira; de uns dois anos para cá, isto se inverteu). No Rio é freqüente a presença de pessoas subindo no ônibus sem pagar para vender quinquilharias: drops, canetas, cartões postais, “buttons”, adesivos... Geralmente decoraram um discurso pedindo ajuda, mas o repetem de maneira tão mecânica e inconvincente que eu, pelo menos, não me comovo nem me coço para puxar a carteira.

Nesse dia foi diferente. O cara que subiu no ônibus parecia um atleta de basquete da NBA: falava ligeiramente curvado para que a cabeça não tocasse no teto do ônibus. Tinha cada rebolo de braço que facilmente poderia estar ganhando a vida como segurança de show de rock. Foi entrando e falando, naquele tom arrastado de malandro carioca, aquele tom meio condescendente, meio arredio, falsamente amistoso; cheio de polidez fingida, humildade fingida.

-- Boa tarde a todos. Eu vim aqui para solicitar dos senhores uma colaboração. Estou desempregado, tenho família para sustentar, não consigo trabalho, mas não quero fazer como tantos outros na minha situação, que estão entrando para a vida do crime. Eu não quero recorrer à violência. Quero conseguir as coisas na boa, na paz. Podem olhar: estou desarmado. (Aqui ele puxava para fora as fraldas da camisa, dava uma volta completa mostrando a cintura) Se eu puder conseguir um auxílio sem machucar ninguém, eu prefiro, tá certo? Agora, eu gostaria que os senhores e as senhoras me fizessem uma doação por livre e espontânea vontade.

Todos nós, eu inclusive, sentimo-nos invadidos por uma espontaneidade que não tinha mais tamanho. Acho que dei cinco reais, mas vi gente dando dez, e creio que alguém tenha dado até mais. O negão saiu recolhendo o dinheiro de banco em banco, e desceu do ônibus, na próxima esquina, com não menos de 150 ou 200 reais.

A questão técnica é: isto foi um assalto? Juridicamente não, porque não havia arma (se descontarmos o negão em si, que já era uma arma ambulante), e não houve ameaça. Se alguém gravasse a fala do negão, transcrevesse no papel, e apresentasse num tribunal, seria apenas o discurso politicamente correto e legalmente irrepreensível de um sujeito que afirma claramente estar pedindo, e que afirma ser contra a violência.

Paguei metade por medo, e metade por admiração. O nosso “pedinte” produziu um texto teatral impecável, onde o estrato verbal foi cuidadosamente pensado para servir-lhe de salvaguarda num eventual confronto com as autoridades, mas a presença cênica, o tom da voz, o corpanzil, tudo deixava bem clara a mensagem ameaçadora embutida na cena. Não é toda peça em cartaz no Rio que pode se gabar de um texto tão sutil e de um ator tão convincente.