quinta-feira, 5 de março de 2009

0866) Canções de filho (25.12.2005)


(Bob e Jesse Dylan)

O leitor deve estar acompanhando minha pesquisa incansável pelos gêneros fundamentais da canção popular do ponto de vista dos letristas (porque do ponto de vista dos músicos são os clichês de sempre: o baião, o maracatu, o samba, o rap...) Eis que agora lhes proponho outro cuja nitidez me parece indiscutível: “canções de filho”. São aquelas em que um pai ou uma mãe descreve seu filho, ou dirige-se a ele, ou conta sua história. Poucos gêneros serão tão emocionalmente delicados e difíceis quanto este, porque podem facilmente descambar para o sentimentalismo água-com-açúcar.

Não é isto, contudo, o que acontece com “Meu Guri”, de Chico Buarque, uma pequena obra-prima narrada do ponto de vista de uma mãe favelada. Ela nos diz tudo sobre o filho, e Chico emprega a difícil técnica ficcional do narrador que conta os fatos sem compreendê-los totalmente (algo que Jorge Luís Borges diz ter aprendido com Kipling e com as sagas da Islândia). Igualmente comovente, para mim, é a beleza de canção de John Lennon “Beautiful Boy”, primor de letra, melodia e arranjo, onde ele diz uma das frases involuntariamente mais cruéis de sua obra: “A vida é aquilo que lhe acontece enquanto você está ocupado fazendo outros planos”. Lennon, cheio de planos para o futuro, seria assassinado semanas depois desse disco ir às lojas.

Bob Dylan, hoje mais conhecido como o pai do vocalista dos Wallflowers, tem também uma pequenina jóia, “Lord, protect my child”, que apareceu apenas na caixa The Bootleg Series, vol. 1-3: “Ele é jovem e ardente, cheio de esperanças e de desejos num mundo que foi estuprado e corrompido... Se eu tombar ao longo do caminho, e não vir a luz do amanhã... Senhor, protegei meu filho”. É uma prece angustiada, rasgada do fundo da garganta, acompanhada pelas guitarras de Mick Taylor e Mark Knopfler.

Vinicius de Morais também tem uma bela parceria com Toquinho, onde fala do filho que queria ter. A letra acompanha a vida do filho, vendo-o crescer, desde o nascimento até a vida adulta, quando ele fecha os olhos do pai num derradeiro gesto de carinho: “Dorme, meu pai, sem cuidado / dorme, que ao entardecer / teu filho sonha acordado / com o filho que ele quer ter”. A música foi gravada por Chico Buarque no disco Sinal Fechado, o que para mim fortaleceu um “link” paterno-filial entre os dois grandes poetas. Chico, que só teve filhas mulheres, tem outra canção tocante, “As minhas meninas”, em que mostra um outro lado dos cuidados paternos: “As meninas são minhas / só minhas -- na minha ilusão; / na canção cristalina da mina da imaginação. / Pode o tempo marcar seus caminhos / nas faces com as linhas das noites de não / e a solidão maltratar as meninas... As minhas, não!”

Depois que os filhos nascem, ninguém dorme mais. A vida vira uma vigília de olhos eternamente abertos e coração eternamente em sobressalto. A gente nunca dá valor à própria vida, mas, com as vidas que a gente cria... pense nuns cuidados!

0865) Meus relógios digitais (24.12.2005)



A ciência nos ensina que a passagem do Tempo é aferida quando podemos distinguir entre um estado A e um estado B ligeiramente diferente do outro. Se A e B são idênticos, podem ser chamados de A, são a mesma coisa, e o tempo não passou. Um relógio parado, por exemplo, é um relógio que encalhou no estado A. Nada ali se modifica, e se dependêssemos apenas dele poderíamos pensar que o Tempo se deteve. Felizmente ele está rodeado de objetos que estão passando normalmente para B, C, D e assim por diante, e esses objetos nos valem como “relógios”, indicam a sucessão de estados que caracteriza o Tempo.

Um leitor desta coluna me perguntou, certa vez, qual a utilidade de algumas crônicas nostálgicas que aparecem aqui, nas quais me refiro com saudade a aspectos de Campina Grande (ou do mundo em geral) que não mais existem, cantores desaparecidos, escritores do tempo em que Adão era cadete. Expliquei que não é propriamente nostalgia, embora haja saudade. Saudade é quando você sente falta de uma coisa que não existe mais; nostalgia é quando você acha que o tempo passado era melhor que o tempo presente. Eu não acho. Se tenho saudade de algum dia da minha juventude, esse dia foi bom porque naquele tempo eu pensava exatamente assim: “Não troco o dia de hoje por nenhum outro da minha vida”. E sei que quando tiver 70 anos lembrarei com saudade deste dia de hoje, em que redijo estas linhas: um final de manhã ensolarado, em São Paulo, em que escrevo enquanto me preparo para ir dar uma entrevista a uma rádio online e depois rodar pelos sebos do Centro velho. Mas não trocaria, não daria um só instante do meu presente em troca de um do passado. Não há câmbio que compense. Passado é meia pataca, Presente é libra de ouro.

O que ocorre, caros colegas, é que o passado me serve de relógio; Campina Grande é meu relógio digital. Olho para o relógio aqui do lado: são 11:58. Sei que daqui a pouco olharei de novo e verei 11:59. A troca deste singelo algarismo me confirma a passagem do tempo, confirmação importantíssima para uma mente como a minha, mergulhada num Eterno Presente como o dos contos de Osman Lins, onde todas as coisas coexistem, sem fluxo, sem transcurso, sem esse incessante passar.

Quando passo nas ruas de Campina, vejo o Tempo a trocar seus numerais. Cada residência que vira boutique, cada armazém de ferragens que vira prédio de apartamentos, cada loja de sapatos que vira agência de banco, cada livraria sagrada que vira loja de roupas profanas, cada cinema que vira uma ruína largada a si mesma para servir de pretexto a uma demolição na calada da noite – cada um destes signos é um algarismo de relógio digital cuja substituição me lembra que o Tempo é como o Vento: algo em movimento, algo que passa, mas só existe pelo fato de estar passando. Não é nostalgia, amigos. É a aceitação desta brisa que refresca o Presente, e minha despedida a tantas coisas que se vão, blowin’ in the wind.

0864) O fim e o princípio (23.12.2005)



Um dos filmes que me tocaram mais de perto em 2005 foi o documentário O fim e o princípio de Eduardo Coutinho, feito no sertão do Rio do Peixe, na Paraíba. Comporia um excelente programa duplo com A pessoa é para o que nasce de Roberto Berliner, o documentário sobre as ceguinhas de Campina Grande. Ou com um filme que vi há muitos anos, e de cujo título não lembro mais, onde eram entrevistadas vítimas sobreviventes do Holocausto judeu, que exibiam as cicatrizes, as deformidades, os números tatuados no antebraço.

Coutinho pegou uma equipe e danou-se para os confins da Paraíba, sem roteiro, sem projeto, sem plano. O filme que surgiu dessa aventura é uma amostra de que o cinema tem o poder de alçar a grandezas míticas a vidinha sem-importância de uma “cidadezinha qualquer”, de gente que “não é ninguém”. É refrescante como um colírio poder ver a imagem e o som fazerem isso com gente que em princípio não é bonita, não é rica, não é famosa, não fez nada de excepcional na vida. Exceto sobreviver.

Coutinho acabou fazendo um filme sobre gente velha cujo grande triunfo e cuja grande surpresa é ter conseguido ficar viva durante 70, 80 anos. São anciãos com rostos recortados como xilogravuras, com dentes entramelados, vozes roucas, peito encatarrado, corpos devastados por uma vida de privações, de trabalho, trabalho, e mais trabalho. São pobres, mas não miseráveis. Vemos suas salas ajeitadinhas, uns moveizinhos modestos, quadros nas paredes, mesas com cadeiras, a onipresente TV.

O melhor deles são os olhos. Esta aqui tem um olhar sereno, pacificado, de quem pagou cada centavo das muitas dívidas com o mundo, e cujo maior prazer é ver uma novelazinha pra se distrair, e depois cochilar no chão. Outra tem olhos angustiados, queixa-se de que não consegue dormir, passa a noite sentada na rede, “fumando e tomando café”. Outro mal consegue olhar alguém de frente, mas mostra o troféu que ganhou num concurso de poesia, e recita sílaba por sílaba o soneto premiado. Outro tem olhos alucinados de intelectual semi-letrado que soletrou a Bíblia em demasia. Outro tem olhos ariscos, inquietos, que riem, ficam sérios, não param, o tempo todo tentando se esquivar das ciladas que o “doutor” que o entrevista certamente deve estar lhe armando.

São os sobreviventes do Holocausto nordestino, onde se continua a morrer “de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia”. Todos dão a impressão de que foram ao Inferno e voltaram para contar a história, embora prefiram esquecê-la. Não são ressentidos, não temem a morte, não se queixam dos Governos, repartem a refeição, oferecem hospitalidade. Do pouco que têm, metade está sempre à disposição de quem precisar. Eduardo Coutinho entrevista essas pessoas com a compassividade e a empatia de um correspondente de guerra que testemunha horrores e heroísmos, praticados em nome de um conflito sangrento cuja razão ninguém consegue lhe informar.

0863) Sherlockiana (22.12.2005)



A palavra “Sherlockiana” designa o universo dos textos que têm como centro as histórias de Sherlock Holmes escritas por Sir Arthur Conan Doyle. O detetive londrino é certamente um dos personagens literários mais conhecidos no mundo inteiro. Paulo Francis conta um ótimo episódio sobre um inglês que se perdeu no Saara e foi parar numa obscura tribo de tuaregues que não falavam nenhum dos dialetos árabes em que ele tentou comunicar-se. Com muito esforço, ele conseguiu explicar que era inglês. Os olhos de um dos tuaregues brilharam imediatamente: “English!...” disse ele. “Sherlock Holmes!” E Francis conclui: “Ser famoso é isto, e o resto é bobagem”.

Hoje, os quatro romances e os 56 contos que compõem o “Cânone Sherlockiano” (ou “As Escrituras Sagradas”, como alguns os chamam) são uma gota no oceano, talvez menos de um por cento de todas as aventuras de Holmes e do Dr. Watson. Viraram folclore; caíram no domínio público. A quantidade de aventuras póstumas do detetive é incalculável – até Jô Soares arriscou o seu Xangô de Baker Street. Mais interessantes dos que as aventuras, contudo, são os livros de estudos históricos que tratam Holmes e Watson como personagens reais e Doyle como um mero biógrafo dos dois. É um passatempo antigo de cavalheiros ingleses cultos e desocupados, que ao longo do Século 20 veio a constituir uma pequena indústria cultural à parte. W. S. Baring-Gould é o mais famoso desses eruditos, e Leslie Klinger não lhe fica atrás.

São de Klinger as copiosas anotações que enriquecem a nova edição das obras de Holmes, que estão a sair pela Jorge Zahar Editor em enormes e acariciáveis volumes; o primeiro, As aventuras de Sherlock Holmes, tem 495 páginas. Serão cinco ao todo, com novas traduções, e, principalmente, as notas de Klinger. Estas não apenas nos dão um background de informações úteis (o preço das coisas, o significado de expressões de época, descrição dos lugares e personagens londrinos mencionados no texto, modelos de armas, etc.) como estabelecem um divertido diálogo com os contos. As deduções ou afirmativas de Holmes são alternadamente louvadas ou criticadas; os numerosos “pontos cegos” das histórias são indicados, mostrando que Conan Doyle, mesmo sendo um autor escrupuloso e atento, não mantinha anotações detalhadas sobre o universo que estava criando, e contradizia-se com freqüência.

O leitor que só conhece meia-dúzia de contos sherlockianos pode encará-los todos agora, seguindo sua ordem original de publicação, guiado por notas esclarecedoras, e tendo à vista as ilustrações originais de Sidney Paget para a Strand Magazine. Só não aconselho que tal livro seja colocado nas mãos de um garoto de dez anos, porque lá pelo ano 2050 ele certamente estará escrevendo algo parecido com este artigo em algo parecido com este jornal, na vã tentativa de proporcionar a alguém um pouco do êxtase que é descobrir, dentro do mundo real, um outro mundo maior e mais real do que este.

0862) “Nossa música” (21.12.2005)



Crítico de cinema adora fazer lista dos “10 melhores do ano”, mas como não sou propriamente um crítico não farei propriamente uma lista. Quero aproveitar para comentar aqui alguns filmes de 2005 que por variados motivos não comentei na época em que foram lançados. Um deles é Nossa música (cujo ano de lançamento é 2004), mais um desses belos e inquietantes filmes que Jean-Luc Godard tem realizado nos últimos anos, tão semelhantes e ao mesmo tempo tão distintos dos filmes que lhe deram fama nos anos 1960.

Ume menina disse ter visto a Virgem Maria. Mostraram-lhe dezenas de quadros e imagens para ver se ela reconhecia a Virgem, e ela olhava e dizia, não, não. Por fim mostraram-lhe um ícone medieval, uma pintura sem profundidade, sem perspectiva, sem “arte”. A menina ajoelhou-se e gritou: “É ela!”. Um homem mostra a foto de uma cidade devastada pela guerra e pergunta que cidade é. Hiroshima? Estalingrado? Sarajevo? Não, diz ele: é Richmond, capital da Virginia, e aquela guerra foi travada entre americanos e americanos. Um homem afirma que o último grande triunfo do socialismo foi quando o Honved da Hungria derrotou um time inglês por 6x3 em 1953, porque os húngaros jogaram coletivamente e os ingleses individualmente.

Godard ama essas pequenas parábolas, esses pequenos “koans” cuja moralidade política ou estética não esgota o seu significado. Seus filmes são repletos destes micro- episódios, fábulas da História cotidiana que contêm em si uma inesgotável virtualidade simbólica. Seus filmes raramente contam uma única e longa história, são colares de contas todas diferentes umas das outras, e todas, de alguma forma obscura, relacionando-se com o tema central.

Eu nunca aconselho um filme de Godard a ninguém. Se me perguntam: “É bom?”, minha resposta invariável é: “Olhe, eu achei legal, mas acho que a maioria das pessoas não gosta”. Sei por experiência própria que a maioria das pessoas não vai ao cinema para pensar, mas para pedir a um filme que pense por elas. Mesmo quem vai a um cinema-de-arte vai disposto a esse mesmo ritual de rendição: ou vai para absorver as idéias do filme, ou vai como um censor, para checar se o filme corresponde ou não a um ideário exterior à tela e ao público.

Uma gigantesca sala de um prédio devastado pela guerra, paredes descascadas, perfuradas por balas de grosso calibre. Enormes latas negras queimam lixo para atenuar o frio, enquanto um homem escreve, sentado a uma mesinha no meio do imenso saguão vazio. Uma ponte destruída pelas bombas, cujas pedras a população tenta catalogar e colocar de volta na mesma posição de antes. Prédios dos quais só sobrou o esqueleto de vigas, como se uma explosão atômica tivesse varrido deles tudo que não fosse concreto e aço. É Sarajevo, a capital de Bósnia-Herzegovina, onde Godard rodou este filme. Que poderia intitular-se Guerra e Paz, Orgulho e Preconceito, Em Busca do Tempo Perdido, Recordação da Casa dos Mortos.

0861) O tri do São Paulo (20.12.2005)


(Mineiro, do São Paulo)

Fiquei com pena do Liverpool. Em primeiro lugar, por causa de Ringo e Paul, que devem ter acordado mais cedo, como eu, para ver a final do Mundial de Clubes, em Yokohama. Em segundo lugar, porque embora a vitória do São Paulo tenha tido méritos, foi o time inglês quem perseguiu o gol com mais tenacidade, mais dedicação, e um volume de jogo muito maior. O São Paulo tem um bom time com alguns jogadores de alto nível, mas o nível médio do time inglês é superior. Mas aí entrou em cena a mania européia de superioridade. O capitão inglês, o excelente Gerrard, disse na véspera que considerava o time deles “praticamente imbatível”. Pode até mesmo um capitão do Treze dizer isso, eu começo logo a torcer contra.

O jogo teve três tempos. O primeiro durou até o gol do São Paulo aos vinte e poucos minutos, e foi de uma pressão total do Liverpool, que abafava o time brasileiro e não permitia dois passes consecutivos. O São Paulo fez um gol rápido, com uma penetração arisca do volante Mineiro pela única brecha da defesa. Daí em diante, começou um segundo tempo em que o Liverpool afrouxou a marcação porque teve que “sair pro jogo”, o São Paulo ganhou gás, o jogo ficou parelho. O terceiro tempo foi a etapa complementar inteira: o Liverpool pressionando e o São Paulo se defendendo como podia. O time inglês teve três gols anulados (corretamente, eu acho, mas gostaria de rever o lance do terceiro); escrevo estas linhas ao meio-dia de domingo e ainda não fui no saite da ESPN para ver a choradeira. O nível do rio Mersey vai subir hoje uns dois ou três palmos.

No fim do jogo a TV mostrou uma estatística impressionante: 17 escanteios para o Liverpool, nenhum para o São Paulo. Isso mostra duas coisas. Primeiro, a pressão incessante dos ingleses em busca do gol. Segundo, a enorme competência da defesa brasileira em não levar o gol de cabeça, jogada que (por alguma razão freudiana) leva os ingleses a verdadeiros orgasmos futebolísticos. O São Paulo só deu dois chutes a gol no jogo inteiro, ambos na primeira etapa. Mereceu ganhar? Olha, eu acho que sim. O Liverpool finaliza pessimamente. Embora Rogério Ceni tenha feito três defesas brilhantes, a maior parte dos gols perdidos pelos ingleses foi por incompetência própria.

O lance-símbolo do jogo foi a falta que Gerrard cobrou no ângulo esquerdo e que Rogério espalmou para escanteio: de capitão para capitão, um duelo de talentos onde o sãopaulino ganhou por um tantinho assim. Foi um resultado mais que frustrante para o time inglês, que não perdia nem levava gol há onze jogos, que encurralou o adversário quase o jogo inteiro, mas não conseguiu marcar. O São Paulo teve uma vitória mais à moda italiana, digamos, do que à brasileira: fez um golzinho e suportou o bombardeio com galhardia até o fim. Mereceu ganhar: pela bravura, pela frieza, por não ter cometido erros fatais, por não fraquejar um instante sequer. Paciência, ingleses! Let it be.

0860) A técnica e o sentimento (18.12.2005)



Numa oficina literária, quando o orientador propôs aos alunos um exercício para desenvolver uma técnica qualquer, um deles repondeu: “Eu não quero fazer exercícios técnicos. O excesso de técnica está matando a poesia. Poesia não é técnica, é sentimento. Pode-se fazer poesia sem técnica, mas não se faz poesia sem emoção”.

Temos aí um ótimo exemplo de verdades e equívocos tão misturados quanto uma xícara de café com leite. Vamos tentar separá-los de volta. Peguemos a primeira frase, para mim a mais sincera de todas: “Eu não quero fazer exercícios técnicos”. Isto, sim, é uma verdade límpida e indiscutível. Um neófito geralmente não gosta desse tipo de coisa. Garotos em geral detestam exercícios de matemática, exercícios físicos, qualquer coisa que exija ao mesmo tempo esforço e disciplina.

“O excesso de técnica está matando a poesia”. Concordo. Folheando antologias poéticas a gente se depara muitas vezes com poemas e mais poemas numa técnica impecável e que não dizem absolutamente nada, pelo menos a este leitor que vos fala. Um dos problemas da técnica é que quando pensamos tê-la dominado acabamos sendo dominados por ela. Ela toma conta de nossa mente, invade tudo que queremos escrever. Viramos uma máquina repetitiva, como aqueles guitarristas que improvisam super bem mas são incapazes de acompanhar uma música (e incapazes de deixar que os companheiros também improvisem).

“Poesia não é técnica, é sentimento”. Errado. Poesia (qualquer arte) é um máximo de tensão possível entre sentimento e técnica. A técnica serve para compactar o sentimento, torná-lo útil, dar-lhe sentido. Pense num automóvel. O automóvel tem dois sistemas: um de propulsão (motor) e um de deslocamento (pneus). Poeta que acha que poesia é só emoção é como um motorista que acha que um automóvel é apenas um motor acelerando e quatro pneus rodando. Mas a propulsão é controlada pela caixa-de-marchas, e os pneus são controlados pelo volante e a transmissão. A técnica não serve para matar a emoção, mas para recebê-la, comprimi-la, multiplicar sua força propulsora, projetá-la numa direção em que ela se desperdice o menos possível e chegue aonde quer chegar. Emoção com técnica é ar comprimido: tem poder. Emoção sem técnica é ar boiando no ar.

“Pode-se fazer poesia sem técnica, mas não sem emoção”. Discordo da primeira parte, concordo com a segunda. Ninguém faz poesia sem técnica. Juntar um B com um A para dizer BA é técnica, assim como todo o resto que daí decorre. Poeta que não gosta de técnica é como jogador de futebol que não gosta de lidar com a bola, quer apenas entrar em campo e ser visto pela torcida. Quanto à emoção, acho que quem quer ser poeta parte de uma emoção inicial: amor pela poesia, amor pela palavra, amor pela frase, amor pelas infinitas possibilidades da fala e da escrita. Se você não ama essas coisas, caro colega, vá ser cineasta, pintor, artista plástico, qualquer coisa cuja técnica lhe emocione.