segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

0810) A capa da Rolling Stone (22.10.2005)



A “American Society of Magazine Editors” escolheu recentemente as 40 melhores capas de revistas norte-americanas dos últimos 40 anos. Uma tarefa de maluco, por certo, quando se pensa na gigantesca quantidade de material que esses caras tiveram de examinar para fazer um julgamento minimamente justo. Os resultados estão no respectivo saite, em: http://www.magazine.org/Press_Room/MPA_Press_Releases/13732.cfm.

A capa que ficou em primeiro lugar tem um gosto doce-amargo para os fãs dos Beatles. É a famosa capa da revista Rolling Stone de janeiro de 1981, logo após a morte de John Lennon, e mostra a comovente imagem de Yoko Ono toda vestida de preto, niponicamente impassível, deitada na cama, e Lennon totalmente nu (embora com o corpo numa posição discreta), deitado sobre ela, abraçando-a e beijando-a no rosto. A foto foi feita no apartamento dos dois no Edifício Dakota, para a matéria de capa da Rolling Stone, e está entre as últimas de John, porque poucos dias depois, em 8 de dezembro de 1980, ele foi assassinado.

É uma foto impressionante porque dá uma idéia muito clara de quem era John Lennon. Quantos indivíduos hoje, um quarto de século depois, e num show-business como o de hoje (muito mais narcisista, permissivo e marqueteiro do que o de então) teriam coragem de aparecer nus na capa de uma revista, abraçados à esposa totalmente vestida, numa pose de total abandono, vulnerabilidade e entrega? Aparecer nu em fotos fica bem para gatões bronzeados e trabalhados em academia, não para um senhor de quarenta anos, branquelo, sem muito músculo para mostrar. E a posição, senhoras e senhores! Quantos feministas-de-entrevista de hoje ousariam enfrentar as imensas possibilidades de ridículo contidas naquela atitude, de se mostrar como um bebezinho nu e indefeso nas mãos de uma mulher?

Lennon tinha numerosos defeitos. Era vaidoso, muitas vezes arrogante, gostava de ditar regras (quase que uso outro verbo), tinha pavio curto, e muitas vezes era de uma ingenuidade espantosa, como só os indivíduos extremamente emotivos e intuitivos podem ser, pelo simples fato de que não param para pensar, e vivem totalmente de improviso, deixando-se arrastar por impulsos e intuições simplesmente porque acham que é melhor fazer uma besteira com espontaneidade do que refletir por cinco minutos e fazer uma coisa certa. Buscar a verdade espontânea da vida foi sempre um sonho de Lennon, sonho inatingível porque não existe tal coisa como “a verdade espontânea da vida”. Mas ele entrou em todas as situações e saiu de todas, nunca teve medo de ser ridículo ou de pagar-um-mico, nunca teve medo de bater de frente com os poderosos. A capa da Rolling Stone mostra um indivíduo magro, branco, nu, numa posição de extrema fragilidade. E é justamente a coragem de se expor assim, de se confessar assim publicamente para o mundo inteiro, que dá a medida de quem era Lennon. Pense num macho corajoso!

0809) Mr. and Mrs. Jetlag (21.10.2005)



Mr. e Mrs. Jetlag desembarcam cheios de excitação no aeroporto de Singapura e, depois de passar pela alfândega, pegam um táxi para o Hotel Sheraton. Aconchegam-se ali durante sete dias, andando num táxi exclusivo fretado pela agência de turismo, fazendo refeições em restaurantes conveniados pelo pacote turístico, e adquirindo souvenirs nos shopping centers das proximidades. Dali eles pegam o avião para Nova Delhi, hospedam-se no Sheraton, comem nos restaurantes indicados no pacote, e fazem compras nos shoppings das proximidades. Em seguida voam para Báli, para Sidney, para Tóquio, para Hong-Kong. Sempre no Sheraton.

É mais ou menos assim que vive uma grande parcela da elite cosmopolita de hoje. São pessoas endinheiradas e de certa idade que querem conhecer o mundo, e dedicam-se então a conhecer todos os hotéis Sheraton do mundo (não importa a cadeia – pode ser Hilton, Hyatt, Ibis, qualquer coisa). Precisam desses hotéis como um peixe precisa da água de um aquário, ou melhor, como um mergulhador precisa de escafandro. São viajantes que precisam levar em volta de si uma carapaça protetora feita de elementos de seu universo, para que tenham o mínimo de contato possível com o universo estranho à sua volta.

Daí a existência dessa enorme indústria dos pacotes turísticos onde os viajantes vão em grupo. É um ônibus com 40 senhores e senhoras, mesma idade, mesma classe social, mesmo perfil cultural, todos viajando juntos através do Camboja ou do Peru. Só se relacionam entre si: fazem amizades e inimizades, jogam bridge e pôquer, compram souvenirs, batem fotografias. Às vezes matam-se uns aos outros, como naqueles romances de Agatha Christie onde em todo grupo de ingleses entediados há sempre um personagem baixo-astral que todo mundo na excursão teria motivos para assassinar.

“Globalização” significa, pelo ponto de vista destas pessoas, a criação de um sistema econômico onde o sujeito possa desfrutar em paz de sua aposentadoria, sabendo que o “capuccino” que ele toma no Méridien de Paris poderá ser reencontrado sem perda de qualidade no Méridien de Yokohama; que a geografia interna dos aeroportos obedecerá a um único padrão, para não desorientá-lo; que seu cartão de crédito será aceito de Aberdeen a Zurique. Se tudo correr bem, estes indivíduos sabem que poderão levar sua vida inteira num espaço topologicamente recursivo (êpa!): corredores, escritórios, apartamentos, limusines, agências bancárias e restaurantes – todos idênticos, cada um parecendo ser um prolongamento do anterior, só que distribuídos em volta de todo o globo terrestre.

Mr. e Mrs. Jetlag realizam, no mundo globalizado, a fantasia daquele conto de Julio Cortázar, onde um sujeito entra numa galeria de um prédio em Buenos Aires e na extremidade oposta sai numa rua em Paris, e vice-versa. O que eles querem é passear “longe daqui, aqui mesmo”; precisam que o mundo vá se formatando à imagem e semelhança de seu suburbiozinho físico e mental.

0808) Literatura e enigmas (20.10.2005)




James Joyce gabou-se certa vez de que os críticos literários iriam passar cem ou duzentos anos tentando decifrar o seu Ulisses. O mesmo poderia ser dito de Guimarães Rosa, ele também um notório preparador de armadilhas. 

Os livros de Rosa estão cheios de pequenas coisas incompreensíveis que fazem a gente se deter na leitura: “Mas o que diabo será isto?” A coisa funciona como aqueles alçapões de pegar aves ou bichos: se a gente pisa e passa adiante escapa, mas, se parar, o alçapão se abre e nos engole. 

Com o texto de Rosa é a mesma coisa. Vemos algo indecifrável, paramos, pensamos... e o alçapão que se abre é o do entendimento, quando “matamos a charada” e por trás da resposta vemos o sorriso largo e maroto do autor, satisfeito como um menino.

Rosa era mais enigmático do que Joyce, no sentido do emprego de símbolos propositais, códigos encobertos, alusões semi-aparentes à flor do texto. Perceber uma dessas referências cifradas (e mais ainda, constatar que o autor, em carta ou entrevista, confirma nossa descoberta) é experimentar a irresistível vertigem de supor que naqueles textos de dimensões colossais tudo é enigma, código, charada pronta com resposta à nossa espera.

Um livro como Recado do Nome de Ana Maria Machado, analisando as alusões veladas nos nomes dos personagens de Rosa nos dá uma medida dessa intencionalidade ferrenha. Saímos da leitura envoltos numa paranóia semântica, na idéia fixa de ver duplo sentido no termo mais casual. Tudo é armadilha, tudo “está ali por algum motivo”. 

Há um episódio em que Rosa comentava com João Cabral um trecho (se não me engano do Corpo de Baile) em que alguém corta a jugular de um animal, e no fim da frase ele usa assim a pontuação: “.!.”, ou seja, ponto, exclamação e ponto. Como Cabral parecesse não entender, Rosa piscou o olho e disse: “É para a exclamação ficar parecendo o jato de sangue... Gostou?!” 

Esse espírito lúdico, travesso, de meninão de óculos brincando com a linguagem, é uma das características mais simpáticas da obra de Rosa.

Em “O Recado do Morro”, por exemplo, existe uma complexa associação de nomes próprios entre os sete arruaceiros que ameaçam Pedro Orósio, as sete fazendas percorridas por ele em sua viagem, e sete “planetas” (Sol, Lua, Vênus, Marte, etc.) 

Duvido que algum crítico conseguisse deslindar esse paralelo se o próprio Rosa não o tivesse explicado tintim por tintim numa carta ao seu tradutor italiano, Edoardo Bizarri. A correspondência de Rosa com Bizarri e com o tradutor alemão, Curt Meyer-Clason, nos fornece uma avalanche de revelações sobre o que está oculto sob seus textos. 

Escritor em igual medida metódico e intuitivo, catalografista e improvisador, Rosa é um caso fascinante de uso permanente da chamada “intertextualidade” e da escrita que permite múltiplas leituras. Nem toda literatura é charada e enigma, mas a dele sem dúvida o é, e me arrisco a dizer que é um poço inesgotável.






0807) A ética de Dom Quixote (19.10.2005)



(desenho de Picasso)

Dom Quixote é doido. Quanto a isto, parece haver consenso na aldeia da Mancha. Ele acredita em dragões, em gigantes, em feiticeiros tenebrosos capazes de transformar num passe de mágica um exército de guerreiros num rebanho de ovelhas, e vice-versa. Ora, todo mundo sabe que tais coisas não existem. O mundo não é assim, nunca foi assim; e o próprio Dom Quixote nunca viu tais coisas acontecerem em carne-e-osso à sua frente. Ele só encheu a cabeça com essas idéias malucas por causa das novelas de cavalaria que vivia lendo. Neste aspecto, um leitor de agora se identifica plenamente com o pragmatismo dos habitantes da aldeia e de Sancho Pança.

Tem um outro lado do fidalgo, no entanto, que nos deixa incomodados quando começamos a mangar dele. Apesar de visivelmente “de cabeça feita” pelos romances de cavalaria, Dom Quixote expressa uma porção de valores éticos que, em princípio, não têm nada de malucos. Pelo contrário. O seu nível ético é infinitamente superior ao dos indivíduos que o cercam. Ele acredita na Beleza, na Verdade, na Liberdade, na Honra. Ele acha que a função de um homem rico e poderoso (como acredita ser) é proteger a virtude da donzelas, socorrer pessoas em perigo, evitar que os mais fortes pilhem e espoliem os mais fracos, defender os honestos contra os desonestos e os pacíficos contra os violentos.

O choque-de-realidade que Dom Quixote sofre o tempo todo ao longo de suas aventuras não é apenas o de constatar que não existem gigantes, é o de constatar que não existem moças virtuosas ou homens honestos. O mundo inteiro parece mergulhado numa teia de falcatruas, de negócios escusos, de egoísmos. O fidalgo não é apenas um sujeito que quer implantar o mundo da fantasia sobre o mundo da realidade: ele quer implantar o mundo da honra sobre o mundo da lei-de-Gérson, das maracutaias, dos interesses mesquinhos com que se depara a toda hora.

Daí o uso moderno do termo “quixotesco”, que mostra o quanto nossos tempos modernos entendem a essência ética do Dom Quixote. Nunca chamamos “quixotesco” a um sujeito que julga estar contactando magos, avistando elfos ou sendo abduzido por extraterrestres. Quando vemos um cara no meio da rua brigando contra adversários invisíveis, chamamo-lo de maluco, e o remetemos de imediato pra João Ribeiro. Mas chamamos de “quixotesco” um sujeito que tenta viver de acordo com um plano ético elevado demais para caber a maioria das pessoas que vemos aparecendo na TV. Ser quixotesco é enfrentar inimigos poderosos e reais, é travar batalhas perdidas contra conglomerados financeiros ou megacorporações multinacionais, é achar que é possível travar uma guerra-de-um-homem-só contra a mistura de cinismo niilista, resignação apática e cumplicidade esperta que mantém de pé essa Coisa aí. Que Coisa é esta? Ora, meu caro leitor, eu posso estar ficando doido, mas não acho que seja um gigante. Visto daqui, parece mais com um Moinho de Moer Gente.