quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

0795) O relato alucinatório (5.10.2005)




(Edgar Allan Poe)

É um dos gêneros mais inquietantes da literatura fantástica, e embora tenha sido criado e cristalizado por grande parte dos autores românticos do século 18, eu diria que foi Edgar Allan Poe quem de fato o transformou numa obra de arte. 

O relato alucinatório explora até as últimas conseqüências a técnica expressionista de nos mostrar o mundo através dos olhos de um personagem: vemos o que ele vê, sentimos o que ele sente. Só que, no presente caso, o personagem está vivendo um estado alterado de consciência; e nós com ele.

Poe foi o mestre dos contos de dedução e raciocínio, mas foi também o mestre da alucinação. Releiam-se obras arrepiantes como “O Gato Preto” ou “O Coração Revelador”. Estamos na mente de um desequilibrado, e a medida do talento de Poe é como consegue nos transmitir essa sensação de desequilíbrio em dois personagens tão diferentes quanto os narradores destes dois contos.

Outros mestres do gênero foram o alemão Hoffmann e o francês Maupassant – este último com o agravante de que estava de fato enlouquecendo, e muitos de seus contos refletem esse lento processo de deterioração mental. 

No Brasil temos obras como a Noite na Taverna de Álvares de Azevedo, uma seqüência de episódios arrepiantes que, no entanto, se focalizam mais na crueldade do que propriamente na alucinação. 

Temos Noite de Érico Veríssimo, a história de um homem amnésico vagueando pela madrugada insone de Porto Alegre. Temos os romances de Campos de Carvalho, especialmente A Chuva Imóvel e Vaca de Nariz Sutil, narrativas na primeira pessoa que nos deixam perceber apenas alguns vislumbres do mundo do lado de fora da mente do narrador.

O relato alucinatório tem um ritmo narrativo próprio, em que o que nos é dito parece fazer sentido mas logo em seguida cai do céu um episódio surrealista ou uma situação absurda. Quando imaginamos perceber o que está acontecendo, o tapete é mais uma vez puxado de sob nossos pés, e mergulhamos novamente no caos mental do protagonista. 

Grande parte dessas histórias recorre à primeira pessoa narrativa como uma maneira mais eficaz e mais direta de aprisionar o leitor dentro da gaiola mental do personagem que narra.

No cinema temos também exemplos da mesma técnica, como nos filmes de David Lynch (Veludo Azul, Cidade dos Sonhos), filmes que exigem muito do espectador, não no sentido banal de “dar uma explicação” para o que está acontecendo, mas no sentido de aceitar as regras do jogo, fazer o investimento de atenção e de energia emocional necessários à absorção da história, mesmo sabendo que de tantos em tantos minutos tudo aquilo irá se negado pelo narrador. 

O cinema é particularmente propício a esse tipo de relato, por não exigir o esforço de concentração que a leitura exige. No cinema, que não passa de uma alucinação controlada por imagens e sons, o relato alucinatório encontra sua melhor expressão.




0794) Ronald Golias contra o Agente 86 (4.10.2005)




Com poucos dias de diferença, faleceram estes dois atores que arrancaram muitas risadas dos sujeitos da minha geração. O riso é um fenômeno curioso. Por mais que nele exista um componente sádico, um componente de crueldade de quem se diverte com a tragédia alheia, ele é no fundo um laço de afetividade que aproxima dois indivíduos, o sujeito que na tela esbarra e tropeça em tudo que lhe surge pela frente, e o sujeito que na escuridão do cinema ri e se diverte. 

Somos gratos aos grandes cômicos, uma gratidão que não é a mesma que devemos aos grandes atores trágicos. Um grande ator trágico é como um pai; um cômico é como um irmão mais novo. 

Pois é, um desses irmãos mais novos morreu com mais de 70 anos: o careteiro, estridente, exagerado e grotesco Ronald Golias. A imagem que guardo dele será sempre em preto-e-branco, cheia dos chuviscos e das “interferências” que perturbavam as emissões de TV nos anos 1960. Como “Bronco”, com aquele boné revirado, ele fez a alegria de muitas noitadas entre grupos de “televizinhos”. Quando George W. Bush assumiu a presidência dos EUA, nunca o levei a sério. Ele é a cara de Golias quando era mais novo. 

O outro falecido foi Don Adams, que interpretava o impagável Maxwell Smart, da série “Agente 86”. Um James Bond às avessas, um trapalhão num papel onde só cabiam super-homens. Adams mantinha o estilo Buster Keaton de nunca sorrir, de parecer estar sempre levando tremendamente a sério todas as situações “pastelão” em que se envolvia, e de estar sempre prestando uma atenção danada. Nunca se dava por achado, por mais catastróficas que fossem suas intervenções. 

Vou arriscar uma teoria. Existem comediantes semânticos e comediantes sintáticos (os dois tipos podem também vir combinados). 

Os comediantes semânticos são aqueles que são engraçados em si mesmos: porque têm a cara ou a voz engraçada, porque fazem caretas e mungangas, porque dizem coisas divertidas. As histórias em que se metem nem são essas coisas todas, mas tornam-se engraçadas através das suas intervenções. Quem é engraçado são eles próprios, é tudo que eles fazem. Golias era um comediante semântico. 

Os comediantes sintáticos são aqueles que, vistos isoladamente, não têm graça nenhuma, pelo contrário, são uns caras muito sérios. A graça decorre das situações em que eles se metem. É seu relacionamento com essas situações, personagens e ambientes que desperta o riso na platéia. Don Adams era assim. 

Daí que os roteiros em que atuava eram inevitavelmente superiores aos roteiros de Golias. Era a história e as situações que, em choque com ele, provocavam o riso. Já Golias despertava o riso pelos seus trejeitos e improvisos – a história poderia ser qualquer uma. É a escola intuitiva, histriônica, de comediantes como Renato Aragão, Cantinflas, Oscarito. 

São duas escolas diferentes de humor, e os grandes comediantes são aqueles (Chaplin, os irmãos Marx, Keaton, Jerry Lewis, etc.) que conseguem reunir o melhor de cada uma.





0793) Governo e Oposição (2.10.2005)




(Gustave Doré: "Lúcifer")

Um anarquista espanhol, daqueles que jogam granada em carro de general, viajava num navio, que naufragou, e ele acabou indo parar numa ilha desconhecida. Ao ser recolhido na praia pelos habitantes locais, perguntou: “Hay gobierno acá?” Disseram que sim. E ele: “Entonces, soy contra”. Ser contra o governo é em certos casos uma atitude mais biológica do que ideológica. Não tem nada a ver com política: é algo que está no sangue, no DNA de um sujeito. Tem gente que só sabe ser oposição, e ponto final. São criaturas inquietas, personalistas, que não se dobram facilmente, desconfiam de autoridades, querem ser donas do próprio nariz e decidir o próprio destino. Pessoas com temperamento assim só têm dois caminhos: ser contra o Governo, ou virar Governo. Ou seja: seu destino é a política (mesmo que seja a mera política literária).

Num ambiente social em que existe um conceito hegemônico, um conceito dominante, muita gente vai para o lado oposto por “default”, por uma opção assumida antes mesmo do exame do problema. Acho que somente isto explica o fato de que os jovens, por exemplo, tenham tanta fascinação pela imagem do Diabo. Quando eu tinha vinte anos, vivia lendo as “Litanias de Satã” de Baudelaire ao som de “Sympathy for the Devil” dos Rolling Stones. Quereria eu ser satanista, realizar missas negras, fazer sacrifícios humanos? Deus me livre, companheiros! Mas numa sociedade onde manda Deus e ponto final, tem horas em que um jovem se cansa e pensa, “sim, tudo bem, mas por que será que ninguém quer que eu escute o que o outro lado diz?” E vai em busca da Oposição.

Existe um movimento parecido nas pessoas que se cansam de literatura realista e vão em busca de literatura fantástica. O Realismo é o estilo literário eleito pela burguesia ascendente do século 18 em diante. É o retrato da mentalidade pragmática, objetiva, pão-pão queijo-queijo, que vê na linguagem um instrumento de exame, catalogação, apropriação e controle. Tudo que não seja voltado para o controle do mundo real é supérfluo, é fuga, é perda de tempo. Com um governo assim ditatorial e sufocante, muitos escritores e leitores se esgueiram para algum recanto escondido e vão ler histórias de vampiros e extraterrestres. Porque acreditam neles? Nem tanto. É só porque “são do contra”.

Na música também. Nos anos 1960, a MPB (de smoking e gravatinha borboleta) era o governo, e ser roqueiro era ser oposição. Hoje, o rock, inchado e balofo pelos silicones e esteróides do capital multinacional, é um governo arrogante e perdulário, e ser MPB é ser uma espécie de Resistência Francesa, que trabalha na moita, devagar e sempre, esperando que o dragão fique bêbado o bastante para permitir um ataque frontal. Sempre que um grupo chega ao topo, todas as suas energias se voltam para uma única tarefa: permanecer ali. E essa concentração de forças empurra para o extremo oposto todos os que, por biologia e fatalidade, são contra e acabou-se.


0792) Borges e Asimov (1.10.2005)




Se eu chegasse em qualquer ambiente acadêmico ocidental (Sorbonne, Oxford, Yale, Milão) e tentasse dizer o quanto os dois escritores acima são parecidos, seria provavelmente olhado com desdém e irritação. E de fato, para quem quer que conheça a obra de Jorge Luís Borges e a de Isaac Asimov parece não haver uma dupla mais dissímile. 

Borges é hoje em dia o deus-pequenino da Academia, o santo padroeiro do Pós-Modernismo, o ícone da desconstrução e da intertextualidade. Aos olhos dos seus seguidores, o coitado do Asimov é um escritor medíocre, pobre em estilo, que passou a vida escrevendo romances de ficção científica e contos policiais, e só se redimiu parcialmente diante da “intelligentzia” pelo fato de ter produzido algumas centenas de livros de divulgação científica que, se não deixaram marca alguma na história da Literatura, pelo menos despertaram em muitos jovens o interesse pela Ciência.

Como sou meio fã dos dois, contudo, já li muito sobre a vida de ambos, e vejo que apesar dessas diferenças todas, eles me parecem quase que clones um do outro. 

Em primeiro lugar, ambos são homens que viveram quase que exclusivamente dos livros e para os livros. Ambos eram leitores intensos e onívoros; liam de tudo, interessavam-se por tudo. Nunca foram de viajar, de ter atividades ao ar livre, de fazer farra, de meter-se em aventuras físicas. Era livro atrás de livro. 

Ambos viveram cercados por grupos de admiradores e discípulos. Asimov era expansivo e falastrão; Borges, tímido e discreto; mas ambos foram grandes conversadores. Cada um casou por duas vezes, mas ouso supor que fora desses casamentos sua vida amorosa foi quase nula. Suas obras têm personagens femininos mais baseados na fantasia e na memória literária do que no conhecimento de mulheres de carne e osso.

Borges foi grande conhecedor da filosofia do século 19; Asimov, um grande conhecedor da ciência do século 20. Estas áreas do conhecimento moldaram a visão-do-mundo de cada um, e o perfil de suas literaturas. 

Ainda assim, tinham gostos semelhantes. Muita gente não sabe, mas Borges foi um leitor devoto dos contos policiais e de FC que eram o ganha-pão de Asimov. Tenho imensa curiosidade de saber se cada um deles leu alguma obra do outro, e o que achava dela. Não é impossível, porque eram de gerações próximas (o argentino era 21 anos mais velho) e viveram a partir dos anos 1960 o auge de sua celebridade.

Borges era um estilista fino, dono de uma prosa aguda como navalha, que ele foi depurando ao longo da vida até dominar com perfeição por volta dos 40 anos. Asimov torcia o nariz para estilo, e defendeu em ensaios famosos uma “prosa translúcida”, que não chamasse a atenção sobre si própria. 

Cada qual ao seu modo, defendiam o ideal clássico de uma escrita nítida e de uma literatura fantástica paradoxalmente racional, baseada no intelecto, na ordem, na clareza. Buscaram-na por caminhos divergentes e às vezes antagônicos. O que acharam foi muito diverso, mas o que buscavam era o mesmo.


(O texto acima foi publicado no livro 78 Rotações, Editora Jovens Escribas, Natal, 2015.)




0791) O robô e o tesouro enterrado (30.9.2005)


(Arturito)

Parece título de romance de aventuras, não é mesmo? Pois não é, é uma notícia divulgada esta semana. Se eu tivesse um espaço maior aí em cima teria colocado um título melhor ainda: “Robô descobre o tesouro da ilha de Robinson Crusoe”. Uma companhia chilena vinha usando há tempos um robô submarino chamado “Arturito” para examinar o fundo do mar nos arredores da ilha chamada de “Robinson Crusoe”, a 660 km da costa chilena, e que tem este nome porque foi lá que naufragou em 1704 o marinheiro Alexander Selkirk, cuja história acabou inspirando a Daniel Defoe o romance Robinson Crusoe (1729), um dos livros mais conhecidos do mundo.

Ao que parece, ainda no século 19 um corsário espanhol enterrou perto da ilha um tesouro fabuloso, produto de anos de saques e pilhagens marítimas. O tesouro foi achado por outro marinheiro, o inglês Cornelius Webb, que acabou enterrando-o em outro ponto da mesma ilha. E desde então os indícios se perderam, e restava somente o relato destes fatos, dizendo que o tesouro consistia em 800 barris cheios de lingotes de ouro, moedas de ouro e prata, e jóias.

A empresa chilena Wagner Technologies desenvolveu “Arturito”, um robô construído para esse tipo de pesquisa submarina. O robô usa uma técnica chamada GPR, muito semelhante ao radar. Ele projeta na direção do solo um feixe de radiação eletromagnética, recebe o “eco” quando esse feixe se choca com objetos sólidos, e registra o tamanho, a massa, o formato, a profundidade, etc. E com isto vai detectando a presença de objetos anômalos, que não são propriamente o tipo de coisa (rochedos, etc.) que se espera encontrar naquele tipo de terreno. Existem várias sub-técnicas que podem ser aplicadas a este princípio básico, refinando o resultado da pesquisa.

A Wagner Technologies anunciou (talvez um tanto prematuramente) a descoberta, e diz que vai iniciar em breve as escavações. Como o tesouro (a julgar pelas descrições que constam dos documentos históricos) é avaliado hoje em dia em cerca de 10 bilhões de dólares (eu disse bilhões, com B de Bush), já começou uma briga para saber quem tem direito a ele. O governo do Chile já saiu na frente, invocando uma lei semelhante à que temos aqui no Brasil (pelo que me consta): o que está no subsolo pertence à União.

“Arturito” decerto não se parece com o robôzinho de Perdidos no Espaço. Não vi fotos, mas ele deve ser algo como um cofre-forte cheio de escotilhas, pendurado por uma corrente. Não importa. Meu coração adolescente de leitor de Julio Verne e Conan Doyle se comove com a idéia de que o ouro roubado no século 18 (com entrechoque de espadas, troar de canhões, carnificinas no convés) ficou quase 300 anos adormecido embaixo de 15 metros de rochas e plancto marítimo, aparentemente perdido para sempre, mas a ciência descobriu um jeito de encontrá-lo. Que outros briguem pelos dez bilhões. O contato imediato entre “Arturito” e o ouro dos piratas vale muito mais do que isto.