sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

1436) A invenção do silêncio (20.10.2007)




O grande Robert Bresson dizia que o cinema sonoro inventou o silêncio. Este aparente paradoxo tem a ver com o seu oposto simétrico: o fato de que o cinema mudo era obrigado a inventar (pelo uso criativo da imagem) algo de que não dispunha: o som. 

Vemos um homem aproximar-se da porta de uma casa e bater. Corta para uma sala onde uma mulher está costurando, de cabeça baixa, e de repente se vira, olhando para a porta. O som ouvido por ela e não ouvido por nós brota da simples justaposição dessas imagens. 

Um homem armado persegue outro numa floresta. O fugitivo tropeça e cai. O perseguidor leva o fuzil ao ombro e aponta. Corta para uma árvore cheia de pássaros pousados: de repente, os pássaros levantam vôo, todos ao mesmo tempo.

O cinema mudo era cheio desses truquezinhos charmosos para sugerir sons que tinham função na narrativa mas era impossível mostrar, pela limitação técnica do período. Notem este detalhe: “tinham função”. Os sons banais, sem função narrativa ou dramática, não precisavam ser sugeridos. 

Há um teórico do cinema, o grande Rudolf Arnheim, para quem o Cinema é uma grande arte devido justamente às suas limitações. A imagem é retangular, não pode mostrar tudo; é em preto-e-branco, não pode mostrar as cores; vê apenas o que a lente capta, não pode ver além ou aquém. 

Não podendo mostrar certas coisas, o filme é forçado a sugeri-las, o que estimulou a imaginação tanto dos diretores quanto da platéia, e gerou uma nova linguagem.

Quando Bresson diz que o cinema sonoro inventou o silêncio é porque o silêncio, que até 1928-1930 era uma fatalidade técnica, passou a ser uma opção criativa. 

O surgimento do cinema sonoro trouxe uma barulheira insuportável para dentro dos filmes, contra a qual grandes cineastas (como Chaplin) se revoltaram. Algo parecido ocorre hoje, com a sofisticação do Dolby Stereo, das técnicas de gravação e de edição sonora. As possibilidades de elaboração do som são tantas que os diretores se esquecem de elaborar o silêncio. 

Luís Buñuel queixava-se que na maioria dos filmes ninguém podia pedir uma xícara de café sem que uma orquestra ressoasse: “tchan-tchan-tchan-tchaaaan!...” Surdo, foi um dos cineastas que melhor usaram o som como linguagem.

Nos anos 1970, em Salvador, vi no bairro do Canela um muro branco, onde alguém acabou pichando com spray: “Branco pra mim, silêncio pro músico”. O silêncio deve ser o fundo branco contra o qual, num filme, os sons necessários podem ser ouvidos. 

Existe uma concepção arrevesada de realismo que nos obriga a ver uma cena de rua em que o diretor se esmerou em amontoar todos os sons ouvidos naquela rua real. Na vida, filtramos esses sons automaticamente. Num filme não podemos fazer a mesma coisa, e o resultado é uma balbúrdia que nos atordoa e nos impede de ver direito a imagem. 

O cinema de hoje precisa reinventar o silêncio, para poder dizer alguma coisa.






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