terça-feira, 1 de dezembro de 2009

1391) O julgamento de Salomão (29.8.2007)





("O Julgamento de Salomão", por Gustave Doré)

Philip K. Dick dizia que uma máquina é alguém incapaz de agir como um ser humano, mesmo que seja um ser humano biológico. 

Não é um paradoxo gratuito, porque muitas pessoas só têm de humano o corpo em carne e osso, mas sua mente se comporta como a mente de um robô ou (como Dick lembrava) a mente de um inseto, que não faz julgamentos, não tem sentimentos, apenas sabe que precisa alimentar-se e para isso precisa devorar essa outra coisa viva à sua frente. Essa outra coisa viva podemos ser eu e você.

Um psicótico grave ou um viciado em drogas em estado avançado são “máquinas”, na visão de Dick. 

O que dizer de um serial killer, desses que tocaiam as vítimas, seqüestram, torturam e matam, apenas para extrair disso um prazer bestial? Não é um ser humano. O que dizer de um viciado em heroína que, no auge da crise de abstinência, sai para a rua à procura de 10 dólares e mata uma pessoa para vender por 10 dólares um relógio que vale 500? É uma máquina. 

São seres biologicamente humanos cuja mente está dominada a tal ponto por uma “função” que eles deixam de fazer as escolhas tipicamente humanas, tomar as decisões mais caracteristicamente humanas. Existem com a idéia fixa de cumprir aquela função que se apoderou se suas mentes por completo.

No filme Clube da Luta o personagem de Edward Norton trabalha para uma empresa de consultoria de seguros ou coisa parecida. Seu trabalho consiste em acompanhar acidentes de automóvel provocados por falhas mecânicas nos carros, e avaliar o que é mais caro: chamar os compradores de volta (fazer o “recall”) para trocar os produtos defeituosos, ou pagar os seguros dos acidentados, mesmo as vítimas fatais. Se o seguro for mais barato, eles deixam as pessoas morrerem. 

Quem toma decisões assim (e sabemos que decisões assim são tomadas o tempo inteiro no mundo corporativo) é um humano ou uma máquina?

Há um episódio famoso do Rei Salomão (I Reis, 3: 16-28) em que duas mulheres disputam um bebê, cada qual dizendo ser sua mãe. Salomão sugere que o bebê seja cortado ao meio e cada mãe fique com uma metade. Uma delas concorda, mas a outra prefere que o bebê seja entregue inteiro à rival – e Salomão percebe que esta última é a verdadeira mãe. 

O teste de Salomão é um verdadeiro “teste de Turing”, o teste proposto pelo matemático Alan Turing para distinguirmos (sem ver) as respostas de uma pessoa das respostas de uma máquina. Diz a Bíblia: “A mulher porém, cujo filho estava vivo, disse ao rei (porque as suas entranhas se enterneceram por seu filho): Senhor, eu te peço que dês a ela o menino vivo e não o mates”. 

A imagem literária das entranhas tem tudo a ver com a situação de quem foi mãe, e mãe recente. Mas em verdade vos digo, caros leitores, que se diante de situações como algumas que referi neste artigo, e muitas outras que rolam por aí, as nossas entranhas metafóricas não se revoltarem, é porque somos máquinas. Não somos homens, e não merecemos ser tratados como tal.





2 comentários:

anakan disse...

http://www.collegehumor.com/article:1794560

Ítalo M. R. Guedes disse...

Texto primoroso. Pena que estejamos, aparentemente, cercados de máquinas com poder de decisão e de afetar as vidas de seres humanos verdadeiros. Sua irmã Clotilde Tavares usa também, para designar algumas destas máquinas, um termo interessante - ceresumanos.