terça-feira, 1 de dezembro de 2009

1390) O realismo naturalista (28.8.2007)




(Julio Cortázar)

Os critérios do realismo na arte às vezes não batem uns com os outros. Algo é realista se visto de um ângulo, e não é, se visto de outro. 

Numa novela das 8 nada acontece que não possa acontecer na vida real (ultimamente têm aparecido fantasmas em tudo quanto é novela, mas estes sempre podem ser atribuídos a alucinações, etc.). Mas nelas aparece muita coisa que não bate com a realidade. Não questionarei a verossimilhança psicológica (“não é realista uma mãe se comportar assim!”), porque psicologicamente qualquer coisa pode ser justificada. 

Também não discutirei erros de continuidade ou anacronismos: “se a história se passa em 1958, a música tal, que é de 1962, não podia estar tocando no rádio”. Coisas assim são descuidos, não fazem parte da concepção da obra.

No mundo das telenovelas constatamos a ausência inexplicável de detalhes realistas, que nos levam a perguntar que mundo é aquele onde as pessoas vivem. Um exemplo muito citado é a total ausência, naqueles apartamentos, de interfone no prédio ou de olho-mágico na porta, o que proporciona aquelas surpresas de fim-de-capítulo, em que a campainha toca e as pessoas abrem sem poder verificar quem está tocando. Algo absurdo em nosso mundo; mas no mundo da novela é assim, e todo mundo aceita.

Julio Cortázar discutiu esta questão certa vez, quando um crítico questionou o fato de um personagem num romance seu chegar em casa depois de meses fora, ligar o carro e o motor deste “pegar” imediatamente. O crítico perguntou se isto era um exemplo do “realismo mágico”; Cortázar replicou que não, porque bastaria ao personagem ter deixado uma cópia da chave com um vizinho de confiança, como tanta gente faz, para que de vez em quando ligasse o motor, evitando que a bateria arriasse. 

“O realismo mágico,” disse ele, “se ocorre, é num plano muito menos banal”.

O mundo das telenovelas é interessante porque violenta o naturalismo o tempo inteiro. Basta assistir novelas mexicanas, perto das quais as da Globo são verdadeiros filmes de Luchino Visconti. Ali vemos aquelas mulheres que de madrugada são acordadas pelo telefone, acendem a luz de cabeceira e estão maquiladíssimas e com o cabelo todo armado, como se acabassem de chegar numa festa. Aqueles indivíduos que pegam uma briga de socos, e saem sem uma marca no rosto. Para um espectador de TV mais escolado, acostumado a produtos feitos de maneira mais exigente, tudo isto provoca risos de incredulidade. Os mesmos risos de um espectador de filme de Visconti quando se depara com o pseudo realismo da novela das oito.

Cada gênero usa um realismo aparente na medida de suas necessidades para que suas características de gênero prevaleçam. Até uma comédia de Mel Brooks, dos Irmãos Marx ou de Monty Python, que desmontam qualquer convenção, tem que ser verossímil e convincente em tais ou tais elementos para que as piadas possam funcionar. É preciso convencer o espectador de que, no mundo proposto, aquilo está de fato acontecendo.






Um comentário:

heliojesuino disse...

Pra mim foi essa a grande façanha do tarantino no 'bastardos inglórios':conseguir a suspensão de nossa incredulidade diante de uma história escandalosamente inverossímil.
Missão quase impossível da qual ele sai magistralmente.

Matou a pau ...