segunda-feira, 26 de outubro de 2009

1326) O preconceito de gênero (13.6.2007)


(Raymond Chandler)

Tem certas perguntas que já me preparei para responder pelo resto da vida. Uma delas é: “A ficção científica é sub-literatura?” Troque “ficção científica” por “literatura policial, de terror, etc.” e calcule os milhares de vezes que um sujeito tem que suspirar e puxar do bolso a mesma resposta. Não, não é. Nenhum gênero literário é uma garantia de sub-literatura “a priori”, assim como nenhum deles é garantia de Obra de Arte “a priori”. Um gênero é um conjunto de regras, de convenções formadas espontaneamente pelos que o praticam. Cada obra brota do zero, e o ponto de qualidade que ela vai atingir depende apenas do artista.

Assim como existe o preconceito negativo contra alguns gêneros, existe um “preconceito positivo” com relação a outros. Alguns praticantes do “romance social”, por exemplo, consideram que basta ser um romance “que exprime a realidade social de um país” para que qualquer livro escrito sob essas convenções narrativas seja uma Obra de Arte. Pois não é. Pode ser um livro bem intencionado, cheio de princípios nobres e de disposição para retratar o país, etc.; e com tudo isso pode ser um livro literariamente péssimo. Sub-literatura. Os exemplos são inúmeros.

O erro contra os gêneros (principalmente os que têm popularidade) têm várias razões. Uma delas é a desinformação dos elitistas. Um sujeito elitista é exigentíssimo, não lê qualquer coisa, não escuta qualquer coisa. Com o tempo, vai se parecendo com aquele cientista que sabe cada vez mais sobre cada vez menos, até “saber tudo sobre nada”. Já vi crítico literário dizendo: “Admirável Mundo Novo não é ficção científica, é literatura”. É o mesmo que alguém dizer: “Hamlet não é uma tragédia elizabetana, é uma peça teatral”.

Eu talvez nem devesse dar exemplos com ficção científica, que, bem ou mal, até que não é muito vilipendiada em nosso país. Mas em nossa imprensa temos pelo menos dois termos que equivalem a uma verdadeira maldição, anátema, condenação prévia. São eles “axé music” e “auto-ajuda”. Quando alguém quer recorrer a um exemplo extremo de má qualidade, de banalidade, de ausência de talento, joga um desses termos na mesa e estamos conversados. Não precisa explicar por quê. “Todo mundo sabe” que esses dois rótulos só se referem a coisas que, por definição, não prestam.

O sujeito elitista não ouve axé-music porque parte do princípio de que esse gênero de música é incapaz de produzir uma boa canção. Está errado. O mesmo vale para o livro de auto-ajuda, e para o filme de super-heróis, e para a peça besteirol, e assim por diante. Raymond Chandler dizia que o grande escritor é o que consegue produzir uma grande obra dentro de uma forma pobre ou desgastada. Quanto maiores as limitações do gênero escolhido, maior o mérito do artista e da obra que o elevaram. É como o jogador de futebol que consegue “dar um drible em cima de um lenço”, ou seja, com pouquíssimo espaço disponível.

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