quarta-feira, 22 de julho de 2009

1166) As doenças do espírito (8.12.2006)


(Dogville)

Li em algum lugar que a Arte é um remédio contra os males do espírito, um bálsamo que corrige nossa visão do mundo e nos reconcilia com a harmonia do Universo. Talvez esta visão um tanto idealista, dos tempos da Antiguidade, tenha dado origem à idéia moderna de que cabe à obra de arte “mudar o mundo”, corrigir problemas sociais, etc. Praticamente todo o cinema engajado tem esta ansiedade: a de ser um remédio, propor uma solução, deflagrar um processo de cura. Os clássicos do cinema político partem todos desta intenção: La hora de los hornos de Solanas (1968), A batalha da Argélia de Gillo Pontecorvo (1966), La vie est à nous de Jean Renoir (1936), Deus e o diabo de Glauber (1964), Z de Costa-Gavras (1969), A chinesa de Godard (1967), The Day After de Nicholas Meyer (1983), Fahrenheit 9/11 de Michael Moore...

Na verdade, por mais que alguns destes filmes tentem ser uma resposta clara e nítida às questões políticas da época, existe neles muito mais um teor de diagnóstico do que propriamente de remédio. Por mais que o cinema político tente oferecer soluções, predomina nele aquela atitude de “não sei o que quero, mas sei o que não quero”. E na verdade é muito mais fácil mostrar os erros e as barbaridades do capitalismo selvagem e das ditaduras militares do que fazer uma proposta nítida, viável, de uma sociedade que substitua este sistema e que resolva de maneira satisfatória os problemas que ele não resolveu.

O filme político funciona muito mais como diagnóstico do que como remédio, e na verdade funciona mais como sintoma do que como diagnóstico. Claro que numa situação de crise todas as manifestações externas, sem exceção, valem como sintoma, mas temos de reconhecer que algumas obras, mais do que outras, fazem aflorar o espírito do tempo, no que este tem de melhor ou pior, de mais urgente e irreprimível, de mais característico daquele instante. Para a leitura sagaz e sherlockiana de um crítico marxista-estruturalista francês, um filme de Xuxa ou de Walt Disney é um sintoma político tão revelador quanto um filme de Godard; mas mesmo sem ir a este extremo de clarividência, vamos admitir que filmes marcantes são aqueles em que as questões cruciais de um momento vêem-se refletidas pela primeira vez, ou de uma maneira inédita, reveladora.

O filme político, aquele que tem uma agenda ideológica clara, pode ser um sintoma assim, mas não necessariamente, porque é um filme que já nasce numa atitude de defesa, de prever questionamentos e antecipar-se a eles com argumentos. Grande filmes políticos como sintomas de uma época geralmente são feitos por cineastas que estão mergulhados nas contradições dessa época, que agem como cúmplices dela, e ao mesmo tempo a denunciam. Não são uma cirurgia a laser, invasiva, curadora; são uma chapa de Raios-X. Um notável filme político atual é Dogville de Lars von Trier, em cartaz no Cine Banguê.

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