domingo, 5 de julho de 2009

1148) Mais jargão da FC (17.11.2006)


(Planet Stories, julho 1952)

Falei aqui há pouco tempo sobre as belezas literárias da ficção científica, o modo como a FC expande e enriquece nossa maneira de ver as coisas através da simples escolha de palavras, e da criação verbal de imagens ou situações que não ocorreriam espontaneamente a nossa imaginação. Existe na FC uma forma peculiar de poesia que nasce do conhecimento científico do autor somado à sua habilidade em compor uma frase que ao mesmo tempo nos evoca algo familiar e desnorteia nossos pontos de referência por nos fazer considerar dimensões muito além das que estamos acostumados a conceber.

Neuromancer, o grande romance cyberpunk de William Gibson, começa com uma frase que ficou famosa: “O céu sobre o porto era da cor de uma tela de TV ligada num canal fora do ar”. É o diapasão ideal para que o leitor entre no tom de um texto onde se misturam irrealidade, tecnologia e desenraizamento. Um conto de Greg Egan, “Learning to Be Me”, tem como tema uma tecnologia futura em que uma espécie de “disco rígido” é implantado na mente das pessoas, gravando todas as suas memórias, para que sua personalidade possa um dia ser transplantada para um novo corpo. O conto começa assim: “Eu tinha seis anos quando meus pais me disseram que dentro do meu cérebro havia uma pequena jóia escura, aprendendo a ser quem eu sou”.

Um dos melhores contos do brasileiro Fausto Cunha, “61 Cygni”, conta como uma prostituta percorre as ruas de madrugada e encontra-se com um cliente estranho, que a leva para um local escuro e aí se transforma numa criatura indizível que a ataca. Enquanto morre, transfixada de dor, ela ainda tem tempo de pensar que “eles” talvez desconheçam a dor e não saibam o mal que estão lhe fazendo. Mas aí ela ouve uma voz em sua mente dizer: “Sabemos, sim. Sabemos TUDO”. E o último parágrafo do conto diz: “O raio mergulhou no espaço, rumo à planície incandescente onde os Seres de Cristal estão imóveis à espera. Estão imóveis, e têm a forma de uma rosácea”. Meu amigo! Se isto não for grande literatura, então é melhor eu mudar de ramo, porque não entendi nada.

Claro que nem tudo na FC tem este nível. Li há pouco num saite esta citação de um conto de um tal de Kenyon Holmes intitulado “The Man Who Rode the Saucer”, ou seja, “O Homem que Pilotava o Disco”. Ao descrever os alienígenas de sua história, ele se sai com esta pérola: “Não eram marcianos... nem venusianos. Eram de regiões muito mais longínquas. De uma Galáxia vizinha, com seu próprio sol e seus próprios planetas; vinham de uma estrela que, pelas melhores estimativas de Creigh, devia estar situada na órbita de Antares, o seu sol”. Para quem tenha um mínimo de conhecimento de astronomia, este trecho é Zé Limeira puro, é o Samba do Crioulo Doido, é o lado mais caricatural e mais divertido da “space opera” dos “pulp magazines”. Porque nem só de Grande Arte vive um leitor. Se não existisse o Íbis, não compreenderíamos o que faz o Barcelona.

2 comentários:

Ítalo M. R. Guedes disse...

Bráulio,
Como quase sempre, excelente seu texto. O trecho inicial de Neuromancer sempre me faz pensar que a cor do céu descrita por Gibson é imaginada de forma diferente dependendo da geração do leitor. Para nós, esta cor é um cinza chuviscado, talvez causado por nuvens e pela poluição. Para a geração que assiste Net e Sky, a cor de um canal fora do ar é um azul escuro intenso, certamente o oposto extremo do que o autor quis descrever.
Grande abraço.

Braulio Tavares disse...

Está aí uma boa idéia: tentar imaginar a quantas tonalidades novas de cor (como esses 2 exemplos) as novas tecnologias estão acostumando nossa visão.