domingo, 5 de julho de 2009

1147) Os aloprados (16.11.2006)


Sigmund Freud dizia (ou, se não disse, disseram que ele tinha dito) que não há escolha inocente de palavras: tudo é proposital. Neste ponto ele está de acordo com qualquer teoria poética, e o que faz é transferir para a fala instintiva, corrente, cotidiana, o mesmo grau de planejamento, intencionalidade e escolha que governa a fala poética. Poeta passa meia hora escolhendo uma dúzia de adjetivos. O mau poeta coloca os doze; o bom poeta corta onze e deixa apenas o menos previsível, ou nem este. Mas cada palavra é retirada do dicionário ou da memória como quem retira uma lâmina da gavetinha do laboratório, para examiná-la à luz e contra a luz, de um lado, do outro, à lupa, ao microscópio. E depois dá-se por satisfeito: “Tudo bem, é esta mesma”.

Quando estourou o escândalo mais recente do governo Lula, o do “dossiê”, o presidente reclamou em público que aquilo tinha sido obra de “uns aloprados” do Partido. Pergunto eu, lacanianamente: por que “aloprados”? Por que não – digamos – “malucos”, “idiotas”, “irresponsáveis”, ou algo mais? Por que exatamente essa palavra?

A primeira vez que eu ouvi essa palavra foi no título do filme O Professor Aloprado de Jerry Lewis (não vi a refilmagem estrelada por Eddie Murphy). Neste filme, Lewis faz o papel do professor Kelp, um sujeito dentuço, “nerd”, desajeitado, sem traquejo social, que é ridicularizado pelos alunos e esnobado pela mocinha loura que ama em segredo. Mexendo no seu laboratório, ele inventa uma droga poderosíssima com a qual se transforma em Buddy Love, um cara auto-suficiente, galã, bonitão, conquistador irresistível, que se torna, desde que aparece pela primeira vez, a sensação do “campus”. Todos os alunos querem se parecer com ele, todas as garotas querem... querem... “Afinal, o que querem as mulheres?”, perguntava o Dr. Freud. Seja lá o que fôr, todas queriam com Buddy Love. Depois dos obrigatórios mal-entendidos e suspenses, Buddy Love vê-se diante de uma platéia enorme no momento em que o efeito da droga vai passando, e ali ele se retransforma no Professor Kelp, diante de todos. A lourinha, claro, descobre nesse instante que gosta mais dele desse jeito, e tudo acaba bem.

“Aloprado”, então, significa isto. Significa alguém que por muitos anos se sentiu barrado no baile, excluído da festa. Ficava olhando pela janela, vendo todo mundo se divertir à tripa-forra, e ele lá fora, no sereno, saboreando a felicidade alheia por telepatia. Um sujeito de bom coração, doido para se transformar noutro cara – um cara sem escrúpulos mas bem sucedido, frio e calculista mas vestindo ternos impecáveis, arrogante mas excelente cantor e pianista, sacaneador de mulheres mas (mistérios do coração!) tendo as mulheres todas aos seus pés. “Aloprado” significa: alguém que sempre teve fama e pose de bonzinho e sempre se deu mal, e de repente começou a achar que a melhor maneira de se dar bem era fazer o que os outros faziam.

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