sexta-feira, 26 de junho de 2009

1132) Da página para a tela (30.10.2006)




Assisti O Processo, filme de David Jones feito em 1993, adaptando o romance de Kafka, com Kyle MacLachlan no papel de Joseph K. Como se sabe, este romance havia sido adaptado em 1963 por Orson Welles, sendo K. interpretado por Anthony Perkins. Quem se interessar, pode pegar os dois filmes em qualquer boa locadora e fazer uma comparação. São filmes que contam a mesma história, com episódios basicamente na mesma ordem, com os mesmos personagens, diálogos muito parecidos, etc. e tal. E no entanto são filmes substancialmente diversos. Pode-se também fazer o teste com o Macbeth do mesmo Orson Welles (1948) e o de Roman Polanski (1971). Mesma história, mesmos personagens, mesmos diálogos (Shakespeare, religiosamente intocado por ambos os diretores). Filmes diferentíssimos.

Não é só uma questão de visual, fotografia, cenários. É uma questão (por exemplo) de como os diálogos são ditos. Lembro-me de uma entrevista de Paulo Autran na TV em que ele recordava uma cena que fez numa peça. Havia uma cena entre um casal, e um diálogo (não lembro o quê) que era extremamente emotivo, intenso, e ele tinha medo que ficasse “over”, exagerado, e estragasse a cena. Aí ele disse que teve a idéia (aprovada pelo diretor) de dizer aquelas longas falas sentado na cama, calçando as meias e os sapatos. Isto deu às frases um contraponto de banalidade, de rotina, de cotidiano-de-casal, que tornou as frases ditas ainda mais pungentes.

O crítico Roger Ebert tem uma frase ótima sobre isto: “Um filme não precisa ser fiel ao livro. Adaptação não é casamento. Refilmagem não é adultério”. Seria terrível se Guerra e Paz ou Grande Sertão: Veredas só pudessem ser adaptados para o cinema uma única vez. Adaptar não é transpor. Adaptar não é transcrever-o-mais-fielmente-possível. Adaptar pode ser várias coisas, porque não existe uma receita universal, existem soluções que cada cineasta, seja ele Welles ou David Jones, acha mais adequada ao seu modo de fazer as coisas.

Para uns, é mais fácil captar e reproduzir a atmosfera psicológica e social de um filme, mesmo desmontando sua estrutura, inventando episódios, deletando personagens, etc., e no fim o filme torna-se quase que um prolongamento do livro, uma extensão, um complemento de cenas que poderiam muito bem estar no livro, poderiam ter sido escritas pelo autor. Para outros, adaptar é preencher as lacunas, colocar em primeiro plano o que no livro estava sem destaque, comentar visualmente o que tinha sido dito em palavras. Mal comparando, é como vários compositores receberem uma mesma letra, e a incumbência de musicá-la, sem alterar uma palavra sequer. Cada um vai fazer aquela letra dizer coisas que estavam latentes e a gente nunca tinha percebido. Dali resultarão canções diferentes – e irmãs. Imagine Guinga, Luiz Tatit, Arnaldo Antunes e Antonio José Madureira recebendo, para musicar, o mesmo soneto de Camões.


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