domingo, 28 de junho de 2009

1138) O time do São Cristóvão (5.11.2006)



Por que motivo o time do São Cristóvão entra em campo? É um time de quinta categoria. Não disputa nem a Série C do Brasileiro (onde o nosso Treze, aliás, marcha firme para a classificação). No próprio Campeonato Carioca, deve disputar a segunda ou terceira divisão. Quando a gente pensa nos grandes espetáculos do futebol, nas decisões de título, nos Maracanãs e Morumbis lotados, o São Cristóvão está automaticamente excluído. A pergunta é: se um time sabe que o filé-mignon-da-vida está fora do seu alcance, onde ele vai buscar motivação para calçar as chuteiras e pisar no gramado?

Primeira resposta: qualquer vitória se equivale. Ganhar um amistoso de subúrbio tem o mesmo valor simbólico de ganhar uma decisão de Copa do Mundo; a diferença é apenas quantitativa. Se você joga sua vida e seu destino num cara-ou-coroa, tanto faz se é uma moedinha de um centavo ou uma libra de ouro: cara é cara, coroa é coroa. A beleza do esporte é esse desafio de “ganhar”, que puxa de dentro de nós o máximo de nossa técnica, de nossa garra, de nosso espírito de combate e superação. (A feiúra do esporte é quando ele vira um vale-tudo onde predominam os recursos não-esportivos para conquistar vantagens não-esportivas).

Segunda resposta, que não contradiz a primeira: o esporte funciona em níveis de dificuldade cada vez maior, e precisa de “filtros de qualidade” para decidir quem está apto a ser promovido. Ronaldo Fenômeno surgiu no São Cristóvão. Passou por outros times, ficou famoso no Cruzeiro, foi para a Europa, para a Seleção... O São Cristóvão cumpriu sua função, que por ser mais obscura não é menos nobre ou menos difícil do que a do PSV ou do Barcelona. Quem foi a professora que alfabetizou Machado de Assis? Quem ensinou o primeiro dó-maior a Baden Powell? Foi preciso alguém.

Terceira resposta, que confirma e aprofunda as anteriores: existe um prazer intransferível em fazer bem alguma coisa. Joguei muita bola quando era garoto. Jogava mediocremente, e cansei de levar “driba” de garotos pobres que pronunciavam assim essa palavra, que eu sabia escrever corretamente em inglês. Mesmo assim, conheci o prazer de fazer um gol de placa, de fazer uma defesa impossível. Quando alguém pergunta o significado da Vida, ou a nossa missão no mundo, penso que a resposta está sempre diante do perguntador. A resposta é fazer direito isso que você tem para fazer. Está tomando um chope num bar? Pois o significado da vida é o direito ao prazer de um chope, e o dever de pagar por ele a quem o fez e serviu.

Nossa missão no mundo é definir o que é Certo. Dentro dele, o Necessário. Dentro do necessário, o que é Possível. Dentro deste, dar uma preferenciazinha ao que é Urgente. E esta última categoria é tão extensa que dentro dela vamos achar o Útil, o Agradável, o Lucrativo... O significado da vida é ser vivida. Como dizem os boleiros: “Pára de reclamar, rapaz, vai, joga o jogo”.

1137) “Eu me lembro” (4.11.2006)



Está em cartaz em algumas cidades brasileiras este filme de Edgar Navarro. Para quem participou do movimento superoitista e de curta-metragem nos anos 1970 e seguintes, Navarro é um nome difícil de esquecer. Seu curta mais famoso (na verdade um média-metragem) era até agora O Superoutro, que lhe valeu prêmios e elogios por onde foi exibido. Seu primeiro impacto foi com o super-8 O Rei do Cagaço, exibido na Jornada de Curta-Metragem de Salvador, e que proporcionou àquela platéia um dos impactos mais inesquecíveis e perturbadores que um filme pode proporcionar.

Eu me lembro ganhou numerosos prêmios no Festival de Brasília do ano passado, entre eles o de “Melhor Filme”, além do de melhor atriz para a atriz campinense Arly Arnaud, que muitos leitores desta coluna conhecem pessoalmente. Lili faz o papel da mãe do protagonista e está ótima em todas as cenas que aparece, embora seu personagem morra lá pela metade do filme. O roteiro tem um lado autobiográfico: Edgar conta a história de sua geração, cuja infância ocorreu na década de 50, dentro de uma estrutura familiar sufocante mas cheia de mistérios e descobertas, e que se tornaram adultos durante os anos 1960, na época da ditadura militar e do “desbunde” do sexo, drogas e rock-and-roll. É um filme de ajuste de contas com o passado, mas, como em Fellini (cujo Amarcord é evocado até no título), um ajuste de contas com ironia mas sem amargura, com saudade mas sem sentimentalismo, com perplexidade mas com sabedoria.

Brigas familiares, segredos sexuais, pequenas tragédias, numerosas comédias, tudo que pode aparecer no balanço de uma vida da classe média brasileira se sucede, num roteiro fragmentado e cheio de achados brilhantes, contando com a força de um ótimo elenco. Isto é o Brasil, pensamos, diante de cinco, dez, vinte pequenas cenas ou situações que reconhecemos de nossa própria vida. Isto é o Brasil, pensamos também quando vemos um diretor de mente inquieta e brilhante estrear no longa-metragem aos 57 anos, idade em que muitos já se aposentaram.

A geração de Edgar Navarro, que é a minha, foi uma das primeiras a se beneficiar deste fenômeno sociológico das últimas décadas: a Ditadura da Juventude. Não a ditadura dos jovens, porque estes mandam menos ainda do que mandavam naquele tempo. Mas a ditadura do conceito da Juventude como bem supremo, como destino a ser invejado. O meio de expressão por excelência desses jovens foi a música popular. Aqueles cujo talento os destinava para o cinema tiveram que amadurecer na treva, produzindo fragmentos de uma obra a que não conseguiam dar continuidade. Edgar Navarro estréia no cinema comercial com um trabalho que ainda tem algo da irreverência e do escândalo que tornaram famosos seus curtas, mas que já se contamina da sabedoria conquistada na sombra, no silêncio e na solidão. Talvez venha daí essa mistura, que tem seduzido as platéias. Parece um filme feito a quatro mãos por um pai e um filho.

1136) A burocracia da paranóia (3.11.2006)




Há um conto magnífico de Ray Bradbury em que um sujeito vai à casa de outro, os dois discutem, e ele mata o dono da casa. Antes de fugir, lembra que deve ter deixado impressões digitais nos objetos que tocou: o copo de uísque, o braço da cadeira, livros na estante, a maçaneta... Ele puxa o lenço e limpa isto tudo. Aí lembra que foi ao banheiro. Vai ao banheiro e limpa tudo em que tocou. Aí lembra que passou no corredor, e limpa as paredes. Na manhã seguinte a polícia o encontra no sótão, limpando bicicletas enferrujadas, velhos baús trancados, coleções de moedas do tempo da Guerra Civil.

É um belo exemplo do que eu chamo “A Solução Herodes”: a tentativa desesperada de eliminar todas as possibilidades de insucesso, por mais remotas que sejam. É típico da mentalidade norte-americana... Não, peraí, estou sendo injusto, e pior do que injusto, inexato. É típico da mentalidade puritana que tanto influenciou os EUA a partir da Nova Inglaterra. Aquela mentalidade altiva, ascética, purista, para quem tudo é pecado, menos a arrogância e o orgulho.

Não é só dos americanos, claro. E nem é sempre uma coisa negativa. Todo povo precisa em certa medida dessa mentalidade preocupada com a exatidão, a limpeza (“venha cá, deixe eu olhar se lavou atrás da orelha”). Nós brasileiros temos muito a aprender com ela, porque somos latinos, tropicais, com um pé na África e outro na selva, etc. e tal. Mas vamos e venhamos – ela não pode deixada à solta, entregue a si própria, e de posse das rédeas do mundo. “Precisamos limpar a Terra, extinguir todas as bactérias do mundo, micróbios são fonte de doença, precisamos lavar os bebês com água sanitária e dar-lhes purgante de detergente!”

Os aeroportos americanos têm uma lista de “No Fly”, pessoas que não podem embarcar. Vi um diálogo surrealista entre um repórter e um oficial da segurança. O repórter observa que a lista tem os nomes de 14 dos sequestradores de aviões do 11 de setembro. “Peraí, diz ele, esses caras não morreram?” O funcionário explica que um novo terrorista pode assumir as identidades deles e tentar embarcar para cometer um novo atentado. E agora sou eu que pergunto: não seria mais seguro para um terrorista assumir uma identidade que chamasse menos a atenção?...

A lista de “No Fly”, cheia de nomes de pessoas suspeitas, pressupõe que esses terroristas em potencial tentarão viajar com seus próprios documentos, e que jamais lhes ocorreria falsificar uma identidade. Por outro lado, o oficial explica a ausência de alguns nomes na lista: há terroristas conhecidos que não aparecem nela porque estão sob investigação, e a divulgação de seus nomes os colocaria em alerta... Em compensação, a relação inclui nomes genéricos como “Robert Johnson”. Será porque o bluesman falecido em 1938 tinha pacto com o Diabo? Na América puritana de Bush tudo é possível. Ou seja: se você se chama Robert Johnson, é melhor viajar de trem. Para o México, com um bilhete só de ida.

1135) Norman McLaren (2.11.2006)




Falecido em 1987, McLaren foi um desses sujeitos desconhecidos do público em geral, mas considerados um “Deus Pequenino” dentro de um grupo específico. 

McLaren foi um dos maiores realizadores do cinema de animação. Nasceu na Escócia, mas viveu e trabalhou no Canadá a maior parte da vida, e pertence ao cinema canadense. 

Os grandes cineastas, em sua maioria, são como pilotos de corridas que se limitam a pilotar bem, dominar o carro, e chegar sempre em primeiro lugar. McLaren pertence àquele grupo mais restrito dos que não apenas pilotam, mas sabem mexer no motor, sabem redesenhar um chassi, sabem projetar um pneu. Em vez de simplesmente utilizar a máquina que foi posta em suas mãos, McLaren mexeu no “software” da máquina, foi direto na fiação, na engrenagem, nos circuitos. 

Fazia cinema sem câmara. Os animadores que vieram antes dele desenhavam no papel ou no acetato transparente, e filmavam os desenhos com a câmara; McLaren foi quem mais explorou a técnica de desenhar diretamente no negativo, na película virgem. 

Ele explorou também o som artificial. Numa película convencional de cinema, a trilha sonora é uma pista ótica que corre ao longo do filme e é lida por um sensor especial. O som do filme (música, diálogos, ruídos) é convertido nessa faixa cheia de oscilações que é gravada na película e, no projetor, é reconvertida em som pelo processo inverso. O que fazia McLaren? Desenhava riscos abstratos diretamente no lugar da trilha sonora. Eram riscos que não tinham sido produzidos por nenhuma gravação sonora; riscos aleatórios que, quando “lidos” pelo sensor, na hora da projeção, produziam ruídos inventados, ruídos que não existiam na natureza. 

Ele pode não ter inventado estes processos (ou outras dezenas que usou), mas foi quem os explorou com mais consistência e de maneira mais criativa. Seus filmes são pequenas fábulas pacifistas contra a guerra, a violência, a falta de diálogo. Têm narrativas simples, entendíveis por qualquer criança. Cada filme tem uma linguagem diferente no som, na cor, no movimento, na justaposição de imagens, na mistura de desenhos com atores. 

Lembro de McLaren sempre que alguém diz que é impossível ser de vanguarda e ser compreendido pelas massas. Seus filmes, imagens puras que raramente usam texto ou diálogos, atingem qualquer pessoa de 8 a 80 anos, de qualquer cultura. 

Lembro de McLaren quando ouço gente dizer que sofisticação técnica só se consegue com muito dinheiro. Seus filmes eram financiados pelo governo do Canadá, mas os recursos existentes hoje dão a qualquer zé-mané a possibilidade de fazer o mesmo num computador doméstico. 

McLaren está para o cinema de animação assim como Chaplin está para a comédia. Se você quiser começar a estudar aquele mundo, ele é o melhor ponto de partida para lhe ensinar o básico. E depois que você subir toda a escada, vai reencontrá-lo lá em cima, porque ele é também o seu ponto mais alto.





sexta-feira, 26 de junho de 2009

1134) Literatura regional (1.11.2006)


(Machado de Assis)

Uma vez defendi num debate a idéia de que Machado de Assis era um autor regional, pois descrevia apenas a vida das pessoas de sua região, ou seja, da cidade do Rio de Janeiro. De fato: com exceção de alguns contos fantasiosos situados num Oriente exótico, e de O Alienista que transcorre em Itaguaí, a obra de Machado se debruça sobre essa região muito específica. Só então eu percebi o quanto de preconceito as pessoas embutiam no termo “regional”, porque quando eu tento aplicá-lo a Machado a resposta é: “Não. Machado não é regional. Ele é universal”. Até concordo – mas então por que motivo Graciliano, Zé Lins, Rachel de Queiroz e outros não podem, pela mesma ótica, ser considerados também universais?

Por que usa-se “regional” como antônimo de “universal”? Porque confunde-se “regionalismo” com uma de suas vertentes, uma literatura que eu chamaria de “Ficção Etnográfica” pelo seu esforço (que é elogiável, sob muitos pontos de vista) de registrar aspectos históricos e geográficos da região abordada. Registram-se os modos de produção característicos (agrícolas e pecuários), os usos e costumes, o linguajar, a cultura, as crenças, e aquilo que o socialista Lukács preconizada como “personagens típicos vivendo situações típicas”. Registram-se a flora e a fauna, o artesanato, o folclore. Cada romance é um “vasto painel” onde aquela comunidade pode, inesgotavelmente, inventariar a si própria.

Nem sempre essa literatura tem grande valor literário, mas isto não significa ausência total de valor. Em outro país ou numa época futura, um romance assim será um documento precioso da cultura de um povo. O escritor que se limita a isto, contudo, vai perdendo o foco da universalidade. Preocupado em retratar situações e personagens típicos, ele refreia a própria imaginação e produz apenas personagens e situações indistintos, medianos, meras cópias desbotadas do já-visto e já-sabido.

Para atingir o universal é preciso ir mais fundo, na medula da vida, um núcleo doloroso e feroz que nos é comum a todos. É preciso lidar com personagens que sejam pontos de tensão e de mutação no desenrolar da narrativa, que encarnem um feixe de possibilidades simultâneas, em vez de apenas seguirem o caminho-de-roçado aberto pelos personagens de autores que vieram antes.

O foco exclusivo no detalhismo etnográfico, por mais méritos que tenha, acarreta a perda do Universalismo – o qual, paradoxalmente, só brota das situações raras e dos personagens excepcionais. Preocupado em cobrir a maior extensão possível de terreno temático, o “regionalista” deixa de mergulhar mais fundo e de tocar as jazidas mais universais de significado. E a associação entre regionalismo e ficção rural se dá, sem dúvida, pela deformação profissional de críticos que, só conhecendo o ponto de vista urbano, consideram que a cidade é o epicentro de tudo, e que o resto do mundo se compõe de “regiões” pouco nítidas.

1133) O motorista (31.10.2006)




Eu morava em Salvador, e peguei um ônibus da São Geraldo para vir passar um fim-de-semana em Campina. O ônibus saía da Rodoviária por volta das 4 da tarde. Embarcamos normalmente e seguimos na direção da BR, por dentro do subúrbio. 

A certa altura, achei o trajeto meio diferente. Não sabia o caminho de cor, mas vi lugares que não recordava. Ruas estreitas, pracinhas, uma feira popular... trechos que não eram habituais no trajeto até a rodovia.

Alguns passageiros se entreolhavam e percebi que todo mundo estava achando o mesmo. Daí a pouco o ônibus começou a subir uma comprida ladeira que levava ao alto de uma colina. Já havia um zum-zum-zum de sussurros entre as poltronas. 

Subimos sacolejando, ao chegar no alto o motorista pegou uma estradinha de terra, mais adiante desviou de lado e estacionou embaixo de uma árvore.

Havia bastante mato e algumas casinhas em volta. O motorista puxou o freio de mão, desceu, rodeou o ônibus e atravessou a rua. Do lado esquerdo (onde eu estava sentado) havia uma pequena ladeira com uns degraus de madeira fincados na terra. Lá em cima, uma casinha simpática, recém-pintada, com um terracinho, uma mesa, e aquelas cadeiras de balanço com armação de ferro e fio plástico entrançado. 

Uma mulher, com uma menina no braço, estava à espera. O motorista as beijou, sentou na cadeira com a menina no colo. A mulher foi lá dentro, trouxe uma poncheira cheia de suco amarelo e um copo. O sujeito bebeu com calma, brincou com a menina, conversou com a mulher, depois bebeu outro copo, levantou-se. Devolveu a menina para a mulher, pegou um pacote grande que estava à sua espera junto à parede, despediu-se, voltou para o ônibus, ligou o motor, fez a manobra e rumamos em paz para a BR.

Qualquer pessoa que ouça uma história como essa vai exclamar: “Só na Bahia!” Um estrangeiro dirá: “Só no Brasil!” 

Ambos estarão errados. Coisas assim acontecem em qualquer lugar do mundo, embora eu ache que sejam mais prováveis na Índia ou no México do que na Suíça ou na Áustria. Os adeptos da seriedade a qualquer preço ficarão escandalizados diante de uma tamanha ofensa ao profissionalismo. Um alemão sairia do ônibus direto para o escritório do Procon mais próximo.

E eu pergunto: por quê? O desvio todo não deve ter custado ao ônibus mais do que vinte minutos, que numa viagem de dez ou doze horas, como era na época, são muito fáceis de recuperar sem sobressalto. O motorista certamente não faz aquilo todas as vezes. Fez porque devia ser uma encomenda urgente, num tempo em que não havia Sedex (era por volta de 1979 ou 80), e mandar por transportadora seria caro e demorado. 

E uma prova de que o brasileiro é tranqüilo é o fato de que nenhum dos passageiros implicou com o motorista. No máximo houve um ou outro comentário bem-humorado tipo “Mas olha só que cara folgado” ou “Ei, rapaz, oferece um suco pra gente!”. Achei este episódio uma lição de civilidade (dos passageiros) e de cidadania. Estarei errado?






1132) Da página para a tela (30.10.2006)




Assisti O Processo, filme de David Jones feito em 1993, adaptando o romance de Kafka, com Kyle MacLachlan no papel de Joseph K. Como se sabe, este romance havia sido adaptado em 1963 por Orson Welles, sendo K. interpretado por Anthony Perkins. Quem se interessar, pode pegar os dois filmes em qualquer boa locadora e fazer uma comparação. São filmes que contam a mesma história, com episódios basicamente na mesma ordem, com os mesmos personagens, diálogos muito parecidos, etc. e tal. E no entanto são filmes substancialmente diversos. Pode-se também fazer o teste com o Macbeth do mesmo Orson Welles (1948) e o de Roman Polanski (1971). Mesma história, mesmos personagens, mesmos diálogos (Shakespeare, religiosamente intocado por ambos os diretores). Filmes diferentíssimos.

Não é só uma questão de visual, fotografia, cenários. É uma questão (por exemplo) de como os diálogos são ditos. Lembro-me de uma entrevista de Paulo Autran na TV em que ele recordava uma cena que fez numa peça. Havia uma cena entre um casal, e um diálogo (não lembro o quê) que era extremamente emotivo, intenso, e ele tinha medo que ficasse “over”, exagerado, e estragasse a cena. Aí ele disse que teve a idéia (aprovada pelo diretor) de dizer aquelas longas falas sentado na cama, calçando as meias e os sapatos. Isto deu às frases um contraponto de banalidade, de rotina, de cotidiano-de-casal, que tornou as frases ditas ainda mais pungentes.

O crítico Roger Ebert tem uma frase ótima sobre isto: “Um filme não precisa ser fiel ao livro. Adaptação não é casamento. Refilmagem não é adultério”. Seria terrível se Guerra e Paz ou Grande Sertão: Veredas só pudessem ser adaptados para o cinema uma única vez. Adaptar não é transpor. Adaptar não é transcrever-o-mais-fielmente-possível. Adaptar pode ser várias coisas, porque não existe uma receita universal, existem soluções que cada cineasta, seja ele Welles ou David Jones, acha mais adequada ao seu modo de fazer as coisas.

Para uns, é mais fácil captar e reproduzir a atmosfera psicológica e social de um filme, mesmo desmontando sua estrutura, inventando episódios, deletando personagens, etc., e no fim o filme torna-se quase que um prolongamento do livro, uma extensão, um complemento de cenas que poderiam muito bem estar no livro, poderiam ter sido escritas pelo autor. Para outros, adaptar é preencher as lacunas, colocar em primeiro plano o que no livro estava sem destaque, comentar visualmente o que tinha sido dito em palavras. Mal comparando, é como vários compositores receberem uma mesma letra, e a incumbência de musicá-la, sem alterar uma palavra sequer. Cada um vai fazer aquela letra dizer coisas que estavam latentes e a gente nunca tinha percebido. Dali resultarão canções diferentes – e irmãs. Imagine Guinga, Luiz Tatit, Arnaldo Antunes e Antonio José Madureira recebendo, para musicar, o mesmo soneto de Camões.


1131) O político e o técnico (29.10.2006)




Fulano pagou uma fortuna de imposto numa transação imobiliária qualquer, e depois descobriu que um amigo dele tinha feito a mesmíssima coisa sem pagar um vintém. “Mas como?!” exclamou ele. O amigo explicou que tinha achado o preço caro, aí apelou para o coração dos funcionários, explicou que estava sem grana... enfim, os caras se comoveram, acharam uma brecha na legislação, e ele fez tudo de graça.

Soluções políticas como esta nos revoltam. Afinal, a lei é igual para todos, mas volta e meia ficamos sabemos que a lei foi driblada para favorecer o cunhado de A ou o primo de B. Não me refiro a subornos ou propinas, refiro-me a um simples gesto de simpatia do funcionário para com um cliente que sabe chorar no tom certo. 

Não é desonestidade, repito. Dinheiro algum trocou de mãos. Foi um mero favor, um simples drible-de-corpo nos regulamentos, aquele jogo-de-cintura que orgulhosamente chamamos de jeitinho brasileiro.

Você chega esbaforido ao Banco, com uma conta para pagar, e o Banco fechou há cinco minutos. Desesperado, você explica ao guarda: é a inscrição num Congresso, último dia para pagar, você não tem Internet, não sabe fazer no caixa eletrônico... 

O guarda pega o papel, olha prum lado, pro outro, e diz: “Sinto muito. A ordem que eu tenho é essa. Não pode”. Você vai pra casa revoltado com essa mentalidade técnica. Quem diabo ele pensa que é? Um suíço?

Tecnicamente falando, o guarda está certo, porque um Banco ou uma repartição não podem ser como um restaurante, que anuncia estar aberto “das 14 horas até o último cliente”. Tem que ter uma hora de fechar, e aí fecha. 

Mas... o nosso temperamento se insurge contra essa precisão de relojoaria. Há exceções, ora que diabo! E aí damos graças a Deus quando encontramos um funcionário compreensivo, como eu já encontrei, que pegou meu papel, foi lá dentro, reabriu um guichê, religou uma máquina, processou meu pagamento, e quando eu me desmanchei em agradecimentos, disse apenas: “Da próxima vez chega mais cedo”. Viva o Brasil!

Há dois tipos de comportamento funcional: o técnico e o político. 

O técnico significa cumprir os ideais da Constituição, do Código Penal e legislações complementares. A Lei é cega e surda, e é igual para todos. 

Mas (quando isto nos prejudica) clamamos por uma atitude mais flexível, mais maleável, e é aí que entra a política. Ela consiste na decisão de considerar “cada caso um caso”, enxergar o individual, o pessoal, para além do anonimato da Lei. A Lei desconhece o favor, que é a moeda preferencial da política.

Nenhum dos dois tipos é bom ou mau em si. O comportamento técnico tanto pode ser justo e correto como pode ser cruel e indiferente. O comportamento político tanto pode ser compreensivo e humano como pode ser caminho aberto para a maracutaia e a corrupção. 

Para os dois, amigos, vale a lei (maior e mais sábia) do mel e da farinha. Ficou muito seco? Bota mais mel. Ficou muito molhado? Bota mais farinha.






1130) A burrice artificial (28.10.2006)



Quando se fala em inteligência artificial, uma das reações mais freqüentes das pessoas é de receio. Elas temem que as máquinas se tornem inteligentes demais e acabem tomando conta do mundo. A ficção científica tem uma parcela de culpa por essa mentalidade retrógrada, porque não são poucos os filmes e livros descrevendo mundos futuros em que robôs implacáveis escravizam os seres humanos, ou computadores de dimensões babilônicas controlam os mínimos de detalhes de nossa vidas. Os exemplo são incontáveis: O Exterminador do Futuro, Colossus 1980, THX 1138, Admirável Mundo Novo...

Minha teoria é justamente o contrário desta. A maior ameaça à Humanidade não é o desenvolvimento da inteligência artificial nas máquinas, é a expansão de burrice artificial em nós mesmos. As duas coisas estão ligadas, claro, porque quanto mais ficamos dependentes das máquinas mais o nosso raciocínio fica preguiçoso, nossa vontade atrofiada. Posso detectar sintomas em mim mesmo, naquelas horas em que fico imobilizado na cama, assistindo na TV um programa que detesto, e olhando com angústia o controle remoto lá longe, em cima do aparelho.

Há poucos dias, na Alemanha, um motorista cujo carro tem sistema de navegação autônomo saiu da pista 30 metros antes do cruzamento onde deveria virar à direita e derrubou uma escada e um toalete que havia perto da estrada. Ele alegou que o sistema de navegação avisou: “Vire à direita agora”, e mesmo vendo que ainda não tinha chegado à esquina ele obedeceu, porque o sistema lhe deu uma ordem. Causou um prejuízo de 2 mil euros. Dias antes, em Hamburgo, outro motorista ignorou um sinal de “Em Obras” e preferiu seguir seu sistema de navegação, que o aconselhava a seguir em frente. Por sorte, tudo que fez foi colidir com um monte de areia e encalhar.

O desenvolvimento da inteligência artificial nas máquinas só é perigoso porque não sabemos o que fazer com o tempo livre e a energia extra que essa transferência de trabalho nos proporciona. Em vez de ficarmos mais espertos e mais atentos, imobilizamo-nos como zumbis, desobrigados de pensar e de decidir porque a Máquina decide por nós. Há um conto notável de Isaac Asimov em que ele mostra a perplexidade do Alto Comando Militar no futuro quando descobre um sujeito capaz de fazer contas de cabeça. Perguntam-lhe quanto é 25 vezes 43, e daí a trinta segundos ele responde: 1.075. Os generais puxam suas calculadoras e conferem: está certo. Mas como será possível?!

Nossa mente implora atividade, assim como nosso corpo implora exercício. Por que motivo as pessoas lêem Caras na sala de espera? Não é só para se inteirar sobre o saltitante cotidiano de Danielle Winitts ou de Kelly Key. É para exercitar a mente. Por que fazem palavras cruzadas no avião? Por que jogam joguinhos eletrônicos no metrô? Porque nossa mente suplica por utilização, aterroriza-se à simples possibilidade da inação e do ócio. Mexei-vos, galera! Vamos praticar Sudoku!

quinta-feira, 25 de junho de 2009

1129) “Crianças ameaçadas por rouxinol” (27.10.2006)


É um quadro de Max Ernst feito em 1924, no início do movimento surrealista parisiense. Joguem no Google Imagens seu título original, Deux enfants menacés par un rossignol e verão reproduções sofríveis que dão uma idéia geral da obra.

Sua estranheza começa pelo título, escrito no rodapé, seguido da assinatura de Ernst. Na imagem, o rouxinol não parece ameaçar ninguém, apenas sobrevoa a cena horizontalmente, numa atitude que só pareceria ameaçadora se fosse um avião de bombardeio.

O quadro mostra uma espécie de terreno baldio coberto de grama ou mato rasteiro, flanqueado por um longo muro. Ao fundo, vemos um arco-do-triunfo de cimento cinza, tendo em cima um vulto com o braço esquerdo erguido. Mais atrás, a silhueta de uma cúpula que lembra uma mesquita, tendo uma torre ao lado, ambas meio encobertas pela névoa.

Alguns objetos sólidos, pregados sobre o quadro, se projetam para fora dele. Do lado esquerdo, um portãozinho de madeira, com dobradiças e grades verticais. À direita, uma espécie de casinhola ou pombal, toda fechada, tendo pregada na parte da frente uma daquelas faquinhas arredondadas de passar manteiga. Um pouco acima da casinhola, uma maçaneta redonda de madeira, tendo ao centro um botão vermelho.

E quem são as duas crianças? Há quatro personagens humanos no quadro. Todos têm uma tonalidade cinza que contrasta com as cores fortes do restante, como se fossem personagens de um filme em preto-e-branco perdidos num filme a cores.

Há uma mulher caída no chão, como que desacordada ou morta. Perto dela, outra mulher, de cabelos desgrenhados, corre com uma faca na mão, sendo sobrevoada pelo rouxinol e olhando para ele. Em cima da casinhola, há um personagem masculino mas sem rosto, que corre levando nos braços uma criança de cabelos longos, e estende a mão na direção da maçaneta.

O quadro produz um efeito contraditório de perspectiva. A presença dos objetos colados nos faz considerar como parte do quadro os retângulos concêntricos da moldura. Mas o espaço da pintura (o Real-do-quadro) é rompido por estes objetos, que se tornam fantásticos porque não pertencem ao mundo bidimensional do quadro, por serem feitos de uma matéria maciça que não corresponde à das pessoas retratadas.

Outro efeito sutil de interpenetração de mundos é obtido por Ernst ao pintar trechos do céu sobre o último retângulo interno da moldura, fazendo-a participar do quadro (que é pintado sobre uma folha de madeira, não sobre tela).

Max Ernst é, para mim, o maior dos surrealistas. Sua obra tem temas em comum com as de Magritte e De Chirico, mas vai muito além de ambos. Em matéria de honestidade moral e de criatividade visual, é muito superior a Dali (que só o supera em técnica pictórica e em onirismo).

Mais que apenas pintar, Ernst justapõe materiais e signos de diferentes naturezas, e suas obras são as que chegam mais perto do ideal surrealista: reproduzir o funcionamento real da mente humana.







1128) Coincidências (26.10.2006)




Entre 1999 e 2000, o escritor Paul Auster coordenou um programa de rádio nos EUA onde ele lia colaborações enviadas pelos ouvintes. Ele pedia histórias verídicas, com a condição de que fossem histórias que desafiassem “nossas expectativas sobre o mundo”, episódios que revelassem “as forças misteriosas e desconhecidas que movem nossas vidas”. 

O livro resultante chama-se True Tales of American Life, e foi publicado no Brasil como Achei Que Meu Pai Fosse Deus (Companhia das Letras, 2005). É um livro para se ter por perto, abrir ao acaso, ler uma historieta e ficar pensando.

Fiz isto hoje e me deparei com “Land of the Lost”, enviado por Erica Hagen, da Califórnia. Diz ela que alguns anos antes de ser professora trabalhou como atriz, e apareceu num seriado de TV chamado “Land of the Lost”. No episódio em questão, a protagonista era uma garotinha, e Erica fazia o papel da mesma personagem, já adulta, que viajava de volta no Tempo e aparecia a si mesma para avisar que estava em perigo. 

Anos depois disto, ela resolveu fazer um passeio até Burma, na Malásia. Conheceu Rangun, Mandalay e outras cidades. Um dia, estava visitando um templo budista e entabulou conversa com um cavalheiro local, muito culto, que falava excelente inglês. Ele lhe serviu de cicerone no templo, explicando-lhe detalhes da cultura local.

Ao chegar a hora do almoço, o cavalheiro convidou Erica a almoçar em sua casa. Chegando lá, ela foi apresentada à família. E a neta do cavalheiro, uma menina de oito ou nove anos, declarou de repente: “Eu conheço você!” 

Foi lá dentro e trouxe um daqueles antigos aparelhinhos chamados TeleVisex, uma espécie de binóculos onde se colocam discos de papelão com fotos estereoscópicas. Um desses discos era sobre o seriado “Land of the Lost”, e lá estava Erica, numa das cenas do filme.

O dono da casa tinha trabalhado como marinheiro num navio mercante. De passagem por Nova York, comprou aquele aparelhinho para a neta. Anos depois, Erica resolve ir a Burma, vai ao mesmo templo que o avô da menina, os dois travam amizade, ele decide convidá-la para almoçar, ela aceita... O relato dela acaba assim: 

“O mais espantoso de tudo foi a reação daquela família. Não ficaram nem um pouco surpreendidos. Uma vez que tinham minha foto, acharam perfeitamente natural que o Destino acabasse por me trazer até a sua porta”.

Este assunto pode ser encarado de muitas maneiras, e escolherei uma. 

Existem dois tipos de pessoas. Para o primeiro tipo, os fatos, os acontecimentos da vida, são linhas divergentes, que partem do mesmo ponto central e se afastam sem parar. Estas pessoas acreditam, por exemplo, que o Universo foi criado com um Big Bang. Sob esta premissa geométrica, só é possível que duas linhas se cruzem se uma força externa, visível, interferir sobre elas. 

E o segundo tipo acredita (com Teilhard de Chardin) que “tudo que se eleva para as alturas converge para um mesmo ponto”.







1127) Bagdá e a favela (25.10.2006)



Eu não sei se é o Rio que está ficando parecido com o Iraque, ou o Iraque que está ficando parecido com o Rio. Os soldados americanos que patrulham Bagdá trabalham sempre em conjunto com policiais iraquianos. Em tese, eles estão ali para dar suporte à polícia iraquiana, porque têm mais experiência, armamento superior, etc. Os iraquianos são estagiários. Estão ali para aprender, na dura lei do batente, como devem se comportar, como devem agir para manter a Lei e a Ordem. Quando tiverem aprendido tudo e puderem impor a Lei e a Ordem com a eficiência dos Fuzileiros Navais, os americanos irão embora.

Sabe quando isto vai acontecer? No dia em que o Olaria for campeão brasileiro. Porque, segundo a imprensa americana, o que mais desespera os soldados estacionados no Iraque são a incompetência e a inapetência dos policiais iraquianos. Vejamos um exemplo. Um grupo de americanos e iraquianos foi patrulhar um bairro onde havia milícias terroristas. Os iraquianos foram encarregados de fechar as ruas, para que nenhum carro saísse, enquanto os americanos vasculhavam as casas. Horas depois, quando os americanos voltaram, souberam que todos os carros dos milicianos fugiram passando pelas barreiras.

Muitos dos soldados recrutados pelos iraquianos são xiitas, adversários históricos do regime sunita de Saddam Hussein. E eles fazem vista grossa às ações das milícias terroristas xiitas, das quais há pelo menos 23 já identificadas pelos americanos. Ou seja: quando se trata de prender ou revistar sunitas, eles aderem com entusiasmo. Para fazer o mesmo com os de sua comunidade, eles recorrem a todo tipo de subterfúgio. Revistam superficialmente, liberam todo mundo, fazem vista grossa.

É algo muito parecido com o que ocorre nos morros do Rio. A distância social entre o soldado da PM e o bandido é “desse tamanhinho”. Nasceram na mesma comunidade, passaram pelas mesmas dificuldades, convivem nos mesmos ambientes. São primos. Um arranjou emprego com o Governo. O outro, com o crime organizado. Na hora em que estão frente a frente sob as luzes da TV ou sob a vigilância dos superiores, o PM fala grosso, manda bala. Mas basta estarem a sós, vale a lei da boa vizinhança, que admite desde uma liberação rápida (“cai fora, aproveita, eu falo que tu fugiu”) até a cumplicidade explícita (“me dá o bagulho, eu levo na viatura e depois a gente racha o apurado”).

Hoje, nós somos os americanos em nosso próprio país. Nós, as “classes privilegiadas”, somos o país invasor. Ficamos tentando obrigar os invadidos a se policiarem e se prenderem uns aos outros, para que possamos viver tranquilos. Mas eles acham que existe algo de errado nessa guerra. Os soldados iraquianos (e os PMs cariocas) não necessariamente odeiam aqueles que estão lhes dando ordens. Mas de vez em quando pensam: “Vem cá – por que é que eu tenho de matar meu primo só pra que esse cara, que eu nunca vi mais gordo, possa dormir em paz?”

1126) O gol do gandula (24.10.2006)



O “gol do gandula” aconteceu no jogo entre Santacruzense e Atlético de Sorocaba, no campo do primeiro (interior de São Paulo). O time da casa, que perdia de 1x0, fez um ataque e a bola chutada para o gol saiu pela linha de fundo, batendo na rede pelo lado de fora. A rede amorteceu a bola e esta caiu no chão. De longe, deu impressão de gol, e foi justamente o que pensaram o bandeirinha (que correu para o centro de campo, indicando gol) e a juíza (era uma juíza), que confirmou. Quando começou o bate-boca – porque todos os jogadores próximos ao lance viram o que tinha de fato acontecido – o gandula (que torcia pelo time da casa, claro) chegou de mansinho e empurrou a bola com o pé para dentro do gol. A juíza chegou, ofegante, trazida pelos jogadores do Atlético, mas aí viu a bola no fundo da rede e deve ter dito: “Foi gol, sim, olha a bola aí”.

Quem quiser conferir, tem no YouTube: http://www.youtube.com/results?search_query=Santacruzense). Mas para encurtar a história, o gol valeu, o jogo acabou 1x1. E quando a bagunça foi a julgamento, o tribunal concordou, validou o gol, e manteve o resultado. Isto levanta a questão: alguém tem o direito de mexer no resultado de um jogo de futebol? Na justiça esportiva, o documento definitivo sobre o que aconteceu na partida é a “súmula”, um relatório redigido pelo juiz depois do jogo. O que está ali é lei, e fim de papo. Se na súmula a juíza disse que foi gol mesmo, não adianta a TV ter mostrado ao Brasil inteiro (a esta altura, ao mundo inteiro) que não foi.

Esta discussão se liga lateralmente à questão da interferência da Justiça comum na justiça esportiva. Se um time se sente prejudicado numa decisão dos tribunais esportivos e recorre à Justiça comum, é um Deus nos acuda. Aconteceu várias vezes, e o clube que pratica este sacrilégio arrisca-se a sofrer o pior dos exílios. Basta dizer que houve um ano em que não aconteceu Campeonato Brasileiro, porque a Justiça obrigou a participação do Brasiliense nesse campeonato, e o jeitinho brasileiro foi decretar que nesse ano não haveria Campeonato Brasileiro. Haveria uma “Copa João Havelange”, com os mesmos times que teoricamente iriam disputar o Campeonato Brasileiro – e o Brasiliense de fora, porque a sentença da Justiça não previa “Copa João Havelange” nenhuma.

O futebol é um gueto que não admite ingerências. Quem manda lá dentro são os caciques de sempre. Não querem interferência da Justiça comum; não querem interferência da televisão. Sabem que no dia em que permitirem que um video-tape cancele a decisão de um árbitro, estarão abrindo mão do próprio poder. Não adianta falar em modernização ou mostrar que em outros esportes (o tênis, p. ex.) já se usa o tira-teima eletrônico para decidir jogadas. O gueto jurídico e político do futebol dificilmente abrirá mão da estrutura que montou ao longo de cem anos. É um feudo, um coronelato mais lucrativo do que a indústria canavieira.

1125) Sobre Prestes e Vargas (22.10.2006)


(Luís Carlos Prestes, o "Cavaleiro da Esperança")

É impossível sabermos o que uma pessoa está pensando, ou o que pensou num instante qualquer da vida. Podemos apenas ouvir o que ela diz, observar o que ela faz, comparar com ditos e feitos anteriores, e fazer suposições. Funciona – e vivemos assim desde as cavernas. Pode não ser o ideal, mas dá para ir tocando o barco.

Nas entrevistas que deu ao longo da vida, Luís Carlos Prestes afirmava que apertou a mão de Getúlio Vargas porque no momento em que o Brasil precisava se colocar contra o Nazismo ele, Prestes, tinha que colocar os interesses da Pátria acima dos seus interesses pessoais, ou seja, da sua revolta pelo que Vargas tinha feito a Olga Benário. Esqueçamos agora a questão histórica e pessoal de Prestes (“Foi mesmo isto, ou ele tinha outras motivações?”) e vamos discutir o princípio geral. Suponhamos, por hipótese-de-trabalho, que Prestes falou a verdade, e de fato agiu daquele forma pelo motivo que alegou. Agiu certo ou errado?

Olga Benário fôra encarregada pela URSS de proteger Prestes a todo custo. Casou com ele, lutou ao seu lado na clandestinidade, salvou-lhe a vida algumas vezes. Por ironia, hoje é mais famosa entre os jovens do que ele, sendo celebrada em livro, filme, etc. Presa por Getúlio, grávida, foi entregue pelo ditador à polícia de Hitler, e depois de dar à luz morreu num campo de concentração. Em honra à sua memória (dizem) o viúvo jamais poderia cumprimentar publicamente e apoiar politicamente o ditador que a entregou para a morte. Mas suponhamos que o viúvo tenha achado mais importante, naquele momento, incentivar o rompimento de Vargas com o Eixo e o envio de tropas brasileiras para combater o nazi-fascismo. Isto não seria motivo suficiente para fazê-lo esquecer por um instante sua tragédia pessoal?

O Brasil é cheio de políticos que colocam, acima dos interesses do país (que, diga-se de passagem, eles são regiamente pagos para defender) as suas amizades pessoais, suas conveniências familiares, suas fidelidades de Partido ou de clã. Nossa República desconhece o conceito abstrato de Pátria, a não ser na hora de fazer discurso. O que nela existe de sentimentos nobres (lealdade, fidelidade, generosidade, etc.) se destina à parentela, aos amigos e aos aliados de ocasião. É por isto que o gesto de Prestes nos horroriza, porque achamos que seria moralmente mais nobre o ajuste de contas com o ditador, e a Pátria que se danasse.

Prestes nunca deu certo na política brasileira. Era um mito revolucionário, não uma raposa política como Lênin ou Trotsky. Um sujeito com uma idéia fixa, com um Ideal. Vi-o falar muitas vezes na TV: nunca o vi sorrir. Parecia-me um homem seco, inflexível, que impunha respeito mas não despertava afeto. Excelente como símbolo de um causa; devia ser péssimo no varejo-de-conchavos que são os corredores do Congresso. A política brasileira pode até ter superado os seus defeitos, mas bem que poderia ter herdado as suas qualidades.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

1124) “Sabrina” (21.10.2006)



Revi na TV esta comédia romântica de Billy Wilder. Lembrou-me certos folhetos de cordel em que a gente não bota muita fé porque já conhece a história, mas quando lê concorda que a leitura vale a pena pelo sabor do estilo e dos detalhes. Sabrina (1954) é um dos primeiros filmes que me lembro de ter visto, talvez com 6 ou 7 anos, e dele só recordava uma cena: um personagem senta sobre duas taças de champanhe, e depois um médico tem que extrair os cacos de vidro de suas nádegas. Criança esquece bailes, automóveis, mansões, brigas de socos, esquece até os movimentos dos olhos de Audrey Hepburn, mas não esquece uma cena assim.

Wilder conta sua Cinderela em celulóide com sutileza quase invisível. Ele usa o tempo todo, por exemplo, o tema visual da “barreira” entre os personagens. É a namorada de David (William Holden) pedindo-lhe (na quadra de tênis coberta) que se mantenha do outro lado da rede (e ele desobedecendo). É o plástico indestrutível em que Linus (Humphrey Bogart) aposta todas as fichas de sua corporação. São as sucessivas portas corrediças que é preciso transpor para entrar no escritório de Linus. É o diálogo entre este e o motorista, que lhe diz: “A sociedade é como uma limusine. Estão todos viajando juntos, mas existe o banco da frente, o banco de trás, e uma janela separando os dois”.

Diálogos são sempre uma das melhores coisas num filme de Wilder. Neste caso, não há como saber o que ele aproveitou da peça teatral em que o roteiro se baseia, mas, autoria à parte, não há como resistir a frases como “Democracia é uma coisa muito injusta... Nenhum pobre já foi chamado de democrático porque casou com um rico”.

Hoje, 50 anos depois, o presente modifica o Passado. Vemos com outros olhos Linus afirmar que só conhece Paris por ter feito lá uma conexão de vôo “porque estava indo fechar um negócio de petróleo no Iraque”. Ou quando ele e Sabrina passeiam de barco ouvindo a canção “Oh, yes, we have no bananas / we have no bananas today...” (de Frank Silver e Irving Cohn, 1923), que parece ter dado origem à marcha de Braguinha e Alberto Ribeiro, “Yes, nós temos bananas” (1937).

Como todas as comédias românticas, Sabrina tem a ausência de livre-arbítrio de uma tragédia grega. Mal os personagens são introduzidos percebemos que mesmo apaixonada por David, que é bonitão e galinha, Sabrina está destinada aos braços de Linus – workaholic, ensimesmado e carente. Há uma cena ótima, quando ela percebe estar-se apaixonando por Linus, em que David fica papagueando bobagens e ela pedindo: “David... me abrace... me abrace...” Lembra o diálogo em Os Brutos Também Amam, quando a esposa de Van Heflin, perturbada pela presença de Shane, pede com desespero ao marido: “Joe... abraça-me forte...” As histórias de amor de Hollywood são um pesado mecanismo de engrenagens de ferro, cujas intenções, depois que elas são postas em movimento, as personagens femininas são sempre as primeiras a vislumbrar.

1123) “Confidencial” (20.10.2006)



Recebo pelo Correio o livro
Confidencial, em que Chico Maria reúne algumas das entrevistas de maior repercussão feitas em seu programa homônimo na TV Borborema. 

Ali estão, confrontando-se com as perguntas firmes e implacáveis do entrevistador, figuras como Dom Hélder Câmara, Fernando Collor (na época, governador de Alagoas), Pelé, Ariano Suassuna, Leonardo Boff, Marcos Freire, Divaldo Franco, Luís Carlos Prestes, Fernando Ramos “Pixote” e Gregório Bezerra. 

Todo o material do livro é precioso, embora ele nos deixe com o apetite aguçado por muito mais. Não sei durante quanto tempo o “Confidencial” foi ao ar, mas foram certamente dezenas de entrevistas contundentes, respeitosas, emocionadas, polêmicas. A seleção feita para este livro traz nomes de expressão nacional: líderes políticos e religiosos, escritores, um ator, um esportista. Mas os arquivos do programa talvez tenham muito mais balas na agulha. 

Na época do “Confidencial” eu já não morava mais em Campina, mas vinha com freqüência. Almoçava vendo as entrevistas de Chico Maria, sem perder um respiro; e Campina inteira parava, para ouvi-lo perguntar a Prestes por que ele apertara a mão de Getúlio Vargas, o homem que entregou sua esposa Olga Benário para ser morta por Hitler. 

Parava (como lembra o mestre Gonzaga Rodrigues, no prefácio) para ouvi-lo perguntar ao ex-prefeito Plínio Lemos: “Por que o sr. mandou matar Félix Araújo?” Como lembra Paulo Maia num dos posfácios, Chico perguntava “cordialmente, mas sem perdão”. 

Num terreno minado como o da política nordestina, ele abria o telefone para que o público perguntasse, e não permitia a edição do programa, que ia ao ar inteiro. 

Jornalistas sérios buscam evitar duas armadilhas opostas: ser o entrevistador obsequioso (ou previamente cooptado) que apenas levanta a bola para o entrevistado cortar, ou o entrevistador mal-intencionado que vasculha a vida do convidado para expô-lo ao ridículo ou ao constrangimento diante das câmaras, não porque a vítima mereça, mas para que ele, o entrevistador, possa sair se gabando e valorizar o próprio passe. 

Entre estes extremos marrons, o jornalismo balança. Uma vez fui convidado por Chico para uma entrevista no “Confidencial”. Confesso hoje que fui morrendo de medo. Não sabia o que esperar. Imaginava Chico perguntando: “É verdade que você compõe suas músicas imitando Bob Dylan?” E eu responderia: “Sabe, Chico, não se trata propriamente de imitação, é uma espécie de paráfrase meta-estrutural...” Mas não sei se ia colar. 

No “Confidencial”, em plena ditadura, Chico Maria fazia, de maneira respeitosa mas firme, a pergunta que todo mundo tinha vontade de fazer mas não tinha coragem. Mais fácil do que fazer a pergunta é inventar uma resposta (à revelia do entrevistado) e sair espalhando-a por aí. O “Confidencial” era o contrário do que seu nome sugeria: uma discussão pública e aberta, num tempo em que a mentira e a fofoca anônima reinavam no país.





1122) Aparelhos de Aparência Suspeita (19.10.2006)




Já que o terrorismo veio para ficar, amigos, relaxemos e divirtamo-nos. 

Esta semana vi no saite “BoingBoing” (uma das minhas fontes mais freqüentes de informação, como os leitores-de-caneta-em-punho devem saber) outra das conseqüências menos trágicas (mas igualmente reveladoras) da nossa nova condição. 

Quem quiser conferir, dê um pulo no saite original: http://junkfunnel.com/sld/.

Trata-se de uma engenhoca intitulada “Aparelho de Aparência Suspeita” (“Suspicious Looking Device”). Consta de uma caixa metálica, cor de cenoura, com um cabo para segurar (como se fosse um ferro de passar roupa), botões, e um mostrador de números digitais que exibe números em contagem regressiva. Dentro, tem motor, rodinhas, sensor de distância, sensor de toque, e alarmes. 

Para que serve? Bem, o AAS serve para ser ligado e abandonado sub-repticiamente num local público qualquer. Mais cedo ou mais tarde alguém vai vê-lo ali, quietinho, mas zumbindo de leve, e com uma contagem regressiva no mostrador: 00847... 00846... 00845...

Qualquer um de nós já viu uma bomba-relógio, pelo menos em filmes de Van Damme ou de Chuck Norris. O objetivo do AAS não é explodir (ele não contém, repito, não contém explosivos). O objetivo é fazer alguém ir chamar o guarda mais próximo. O guarda (se é que eu já vi seriados de TV) vai tirar o quépi, coçar a cabeça, e depois abrir os braços como um Cristo Redentor e pedir que todos se afastem dali. Aí vai pegar o walkie-talkie e dizer: “Moreira, dá um pulinho aqui na Praça de Alimentação, câmbio”.

Daí a meia-hora haverá um grupo de umas 50 pessoas se acotovelando para ver a “bomba” de perto. E mais cedo ou mais tarde alguém estenderá a mão para tocá-la. (É cientificamente impossível que alguém não o faça.) 

Nesse instante, os sensores internos serão acionados, e o aparelho irá emitir uma sirene ensurdecedora, e se deslocará lateralmente, sobre rodinhas embutidas. Exercício para casa: Visualizar cena subseqüente.

O AAS é uma invenção do artista Casey Smith. Não tem outra função senão ter aparência suspeita e pregar um susto em pessoas que suspeitam de aparências. No saite de Smith, que fica no endereço reproduzido acima, você encontrará outras engenhocas úteis como o “Terrorômetro”, que calcula a cada minuto a quantidade de referências ao terrorismo que surge na imprensa eletrônica mundial, e exibe o resultado num visor. 

Quanto ao AAS, várias leituras são possíveis. 

Primeira: “Já não bastava a Al-Qaeda querendo nos matar de verdade, vem agora um palhaço nos pregar sustos de mentira”. 

Segunda: “É um processo de mitridatismo, de imunização progressiva, para que percamos o medo do Terror”. 

Terceira: “Melhor um susto do que uma bomba”. 

Quarta: “O impacto do susto, o alívio da sobrevivência, a chance da reflexão”. 

Quinta: “A arte é longa, a vida é breve, mas às vezes a gente dá graças a Deus que seja o contrário”.







1121) O Som do Concretismo (18.10.2006)


(Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos)

A poesia concreta deu uma ênfase excessiva ao visualismo, tornando-se com isto o ponto mais alto da poesia escrita, da poesia que só existe no espaço visual, na página. Ao mesmo, tempo, entretanto, ela promoveu o desmembramento da palavra em unidades menores autônomas: a sílaba, a própria letra. E com isto trabalhou as sonoridades, as aliterações, as paronomásias, os jogos de palavras que sempre levam a Poesia de volta ao terreno da fala e do canto. Parece que o grande alvo, o grande adversário do Concretismo não era tanto a Fala e sim a Discursividade, o blá-blá-blá retórico de uma poesia que falava muito e dizia pouco, ou que tentava dizer muito recorrendo a conteúdos mas mostrando um enorme desleixo quanto à forma. Aquilo que Leminski chamou “uma poesia porosa”.

O Concretismo explodiu essa discursividade profusa, confusa, prolixa. Compactou a sintaxe, erodiu todo o supérfluo, redefiniu as relações entre as palavras usando novos conceitos geométricos e espaciais, numa tentativa de quebrar a fluência beletrista da “poesia de bacharéis” capaz de encher com texto descartável léguas e mais léguas de papel indefeso.

O Concretismo tentou reduzir a poesia ao essencial, baseado naquela velha equação (Dichten = condensare) em que o termo alemão para “poesia”, “Dichtung”, mostra suas raízes no verbo “condensar” e termos correlatos (denso, densidade, etc.) Poesia é linguagem concentrada, compactada, o máximo de sentido no mínimo de palavras.

Sem o Concretismo o caminho poético de Gilberto Gil e Caetano Veloso seria outro, como seria outro o de artistas posteriores como Arnaldo Antunes e Chico César. Todos estes são poetas (poetas da música, é claro, mas para efeito da presente análise não se distinguem dos poetas de livro) que se beneficiaram do que o Concretismo descobriu ao explodir o supérfluo e voltar ao essencial. Mas, ao defender a bandeira do Visual, os poetas paulistanos trouxeram de volta à luz o que a poesia tinha de auditivo, redescobrindo a importância do som das palavras, e o prazer lúdico cuja origem está na Oralidade.

Os poetas do grupo Concretista (Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari) pagaram caro pelo seu eventual elitismo, pela sua propensão à polêmica, e pelas críticas impiedosas dirigidas à produção poética que lhes era contemporânea – críticas que, mesmo quando esteticamente fundamentadas, encontravam resistência devido ao tom às vezes arrogante ou desdenhoso com que eram formuladas.

Quando tentou cantar embaixo de vaias a música “É Proibido Proibir” num festival de música, Caetano Veloso bradou para a platéia: “Se vocês em política forem como são em estética, estamos feitos!” (ou seja, “estamos lascados”). Se o grupo concretista tivesse tido uma habilidade política e uma flexibilidade diplomática à altura das suas muitas e fundamentais contribuições estéticas, sua influência na poesia brasileira teria sido muito maior e mais benéfica do que efetivamente foi.

terça-feira, 23 de junho de 2009

1120) A arte do quebra-cabeças (17.10.2006)




Todo mundo já brincou de quebra-cabeças na infância. Pode ter sido um daqueles mais simplezinhos, com desenhos da Turma da Mônica. Talvez tenha tido a sorte (eu não tive) de ser promovido àqueles que vejo hoje nas lojas de brinquedos, os famosos “puzzles” de 1.500 peças que mostram enormes castelos medievais ou deslumbrantes paisagens de florestas.

O quebra-cabeças propõe ao jogador o desafio de reconstituir a figura, baseado em dois critérios: a imagem e o corte. O corte das peças (que é padronizado) não coincide com a imagem. Se fosse assim era muito bom – a árvore era cortada em forma de árvore, o cachorro em forma de cachorro, etc. 

Corte e imagem, no quebra-cabeças, são, por definição, mutuamente irredutíveis. Não podem coincidir.

Georges Perec (“A Vida Modo de Usar”) cita o exemplo dos quebra-cabeças artesanais, de madeira, nos quais o artesão corta a peça individualmente, dando a cada uma um formato ligeiramente diferente do formato das outras, mesmo que num primeiro olhar as duas pareçam idênticas. Não há duas peças cortadas de modo idêntico nestes puzzles, e não há dois jogos idênticos saídos da mão do mesmo artista.

Nossa tarefa é encaixar as peças pelos dois critérios. Tem horas em que duas peças se encaixam pelo corte, mas não pela imagem. Tem horas em que parecem se encaixar pela imagem (digamos, dois pedaços de céu azul), mas não encaixam pelo corte.

Esse processo lembra a poesia, que também parece um “puzzle”. Isto pode se dar em dois níveis. 

Numa forma fixa, como o cordel ou o soneto, as frases gramaticais não coincidem com a extensão métrica dos versos e das estrofes. Ficam o tempo inteiro transbordando para a linha ou a estrofe seguinte. Uma das habilidades do poeta consiste em conseguir produzir um texto gramaticalmente fluente e ao mesmo tempo obedecer com rigor aos “cortes” que a métrica impõe ao discurso verbal.

Num nível mais elevado, a "imagem" é o conteúdo, tema ou assunto; aquilo que estamos tentando ler, entender. E o corte são as escolhas feitas pelo artista: as palavras que usou, o modo como organizou frases, versos, estrofes. 

Ler um poema corretamente não é lê-lo em função da “imagem”, embora ela deva estar presente em nossa atenção. Ler bem uma obra literária é lê-la tendo em vista os “cortes” verbais feitos pelo poeta, o seu modo pessoal de recortar a substância do poema, o seu “conteúdo”. Se nossa leitura não satisfizer plenamente esses cortes, será uma leitura errada, de peças que parecem se encaixar, mas não se encaixam.

Perec afirma que o “puzzle”, por estas características, não é um jogo solitário: 

“Todo gesto que faz o armador de puzzles, o construtor já o fez antes dele; toda peça que toma e retoma, examina, acaricia, toda combinação que tenta e volta a tentar, toda hesitação, toda intuição, toda esperança, todo esmorecimento foram decididos, calculados, estudados pelo outro”. 

É assim que o poeta, como um maestro, rege a leitura do poema.



(imagem de Perec recolhida no blog Besta Quadrada, de Halem Souza, Belo Horizonte)




1119) Para encurtar a história (15.10.2006)




Faz uns quinze anos. Eu tinha ido passar o feriadão na fazenda de um amigo, no interior de Pernambuco. Perto de lá ficavam as ruínas de um antigo Engenho abandonado. 

Durante o dia a gente caminhava e tomava banho de rio (era uma turma de oito ou dez pessoas); de noite, cerveja e violão. Depois do terceiro dia ninguém agüentava mais uma rotina tão estafante. Começamos a procurar alternativas. 

O dono da casa sugeriu que ficássemos fazendo hora até meia-noite e fôssemos para as ruínas do Engenho, aproveitando que era noite de lua. Por quê?, perguntamos. Ele explicou que o Engenho era mal-assombrado, e que à meia-noite apareciam coisas esquisitas lá. As esposas (havia várias esposas na turma) disseram que “nem mortas”, e que fôssemos nós, o contingente masculino. Um dos caras piscou o olho discretamente e disse que tudo aquilo era pretexto nosso para um encontro clandestino com algumas moçoilas da vila próxima. Houve um certo reboliço, e, para encurtar a história, acabou indo todo mundo.

O trecho acima é mentira, ou ficção, se quiserem. Inventei-o apenas para enaltecer as virtudes dramatúrgicas desta expressão, “para encurtar a história”, cuja utilidade nunca pode ser superestimada quando se trata da Arte da Narrativa. 

O leitor já terá ouvido referências ao Paradoxo de Zenão de Eléia; se não ouviu na Faculdade, ouviu aqui nesta coluna, que não fica devendo a muitas Faculdades que tem por aí (“O Paradoxo de Zenão”, 24.8.2005). É aquela situação filosófica em que antes de tomar uma decisão o sujeito examina um número tão grande de alternativas ou possibilidades que a decisão nunca chega a ser tomada. 

Do ponto de vista literário, isto se manifesta através de cenas onde personagens estão discutindo algo, e o autor, inebriado pela própria capacidade de saltar da mente de um para a mente do outro, e do outro, e do outro, acaba redigindo uma discussão interminável, cuja primeira consequência é fazer o leitor largar o livro e pegar outro.

Surge então esta agudíssima espada capaz de cortar de um só golpe o mais complicado nó dramatúrgico: “para encurtar a história”. Use-a com parcimônia, caro candidato a escritor, mas use-a sempre que sentir seus pés afundando na areia movediça de uma troca de argumentos onde ninguém consegue desferir o golpe final. 

Voltemos à nossa ficçãozinha aí em cima. Se isso for um conto, é claro que os rapazes e as moças discutiram por algum tempo mas acabaram indo ver o Engenho assombrado, sem o qual não haveria história digna de ser contada, não é mesmo? Botar personagens para discutir vantagens e desvantagens de algo, contudo, é uma armadilha onde a maioria dos ficcionistas novatos cai, e nunca mais consegue sair. Ele mostra um lado, o outro, um lado, o outro... 

Então, chega! O leitor já entendeu. O leitor quer ver serviço. Então, amigo, não hesite. Enfie a mão no bolso do colete, e puxe o papelucho mágico, onde está escrito: “Para encurtar a história...”





1118) O espírito cristão (14.10.2006)


(os Amish, no filme de Peter Weir)

Há alguns dias, nos EUA, um homem chamado Charles Roberts entrou numa escola da comunidade Amish, na Pensilvânia. Mandou todos os meninos saírem. Queria apenas as meninas. Ficaram dez garotas entre 8 e 12 anos. Ele amarrou todas, e atirou nelas de uma em uma, antes de se matar também. Cinco das garotas morreram, outras cinco estão hospitalizadas no momento em que escrevo. As escolas norte-americanas “têm um chama” para esses Exterminadores do Futuro, que agem como se quisessem matar um Messias qualquer mas tivessem que fazê-lo às cegas.

Os Amish são um grupo religioso conservador, concentrado em alguns estados ao Nordeste dos EUA. Eles recusam coisas como a eletricidade, o automóvel, o telefone, etc. Muitos hão de se lembrar do filme A Testemunha, onde Harrison Ford, no papel de um policial disfarçado, vai viver numa destas comunidades para proteger um garoto que presenciou um assassinato. Após o crime da Pensilvânia, um grupo de 30 ou 40 pessoas da comunidade Amish foi ao enterro do criminoso, para prestar solidariedade à família. Quando eu leio uma coisa assim, perco o prumo. Se eu tivesse uma filha de dez anos e ela fosse rendida, amarrada e fuzilada a sangue frio por um sujeito, eu não compareceria ao enterro dele. Faria o possível para comparecer ao linchamento.

Como sou agnóstico na teoria e cristão na prática, é claro que não lincharia ninguém. Sou até contra a pena de morte. Mas descubro que os Amish, com seus chapéus largos, suas barbas soturnas, seus cabriolés negros, são muito mais cristãos do que eu. Li em algum lugar que sua prática religiosa (eles são cristãos anabatistas, de origem suíço-alemã) se baseia em dois conceitos. Um é o de “Gelassenheit”: submissão à vontade de Deus, deixando que as coisas sigam seu próprio rumo; e “Demut”, humildade, que para eles é o contrário de “Hochmut”, arrogância, orgulho, “húbris”. Os Amish cultivam a solidariedade, e sua recusa às máquinas deve-se em parte a acreditarem que estas diminuem a necessidade do trabalho coletivo e do apoio mútuo. Eles rejeitam a competitividade, a vaidade pessoal (não gostam de fotografias), o individualismo.

Vai daí que, depois de sepultadas as suas próprias crianças, eles se aprontam, trocam de roupa, pegam as charretes e vão confortar a viúva e os filhos pequenos do criminoso, porque acham que aquela família, tanto quanto as deles, foi vítima de uma tragédia. Seu senso comunitário os leva a solidarizar-se até mesmo com aquela família que não pertence à sua comunidade, mas que, por causa do crime cometido por um de seus membros, uniu-se a eles. Um antigo e profundo mote de Cantoria de Viola diz: “Chora a mãe do assassino / e a mãe do assassinado”. Um crime de morte é sempre uma tragédia com duas vítimas, porque pior do que morrer, para muitas religiões, é matar. No mito bíblico do primeiro assassinato, quem sofreu mais, a mãe de Abel ou a mãe de Caim?

1117) A linguagem dos sonhos (13.10.2006)




A afirmativa de Sigmund Freud de que a linguagem dos sonhos funde numa mesma imagem objetos contraditórios, é facilmente comprovada. Sempre que alguém conta um sonho, diz coisas como: 

“Eu estava na minha casa, só que minha casa era um navio. Aí chegava minha tia Florisbela, que vinha passar uns dias. A gente começava a arrumar um lugar onde ela pudesse dormir, na sala. Enquanto arrastávamos os móveis para abrir espaço ela me dizia que ia ficar apenas uma semana, mas aí já não era Tia Florisbela, era Madre Teresa de Calcutá”. Ou coisa parecida.

Uma característica do pensamento onírico (e agora estou falando por conta própria, não sei se o Dr. Freud concordaria) é que ele muda de idéia o tempo todo. Nossa mente sonhante começa a dizer uma coisa mas aí pensa melhor e a substitui por outra. 

Há quem ache que isto é feito pela nossa rememoração, depois de acordar; eu acho que ocorre durante o próprio sonho.

Essas substituições absurdas e inesperadas se parecem muito com os processos de idas e vindas durante o trabalho criativo da ficção. Quando temos uma idéia para escrever uma história, essas mudanças são freqüentes: 

“Já sei. Vou escrever um cordel sobre um casal que tem três filhos. Não, três filhos homens é muito clichê. Vou dizer que são três mulheres! Aí todas três têm um sonho que precisam ir num reino distante. A filha mais velha parte, mas aí se perde no caminho e fica presa numa caverna. Não, melhor dizer que ela cai num poço. Aí a segunda filha sai, e é presa por um feiticeiro. Ou melhor: ela é enfeitiçada por ele, mas não percebe. Aí a filha mais nova sai e no caminho encontra três pássaros que querem ajudá-la. Ou melhor: um pássaro, um sapo e um peixe”.

Já falei aqui do estudo de Freud sobre palavras iguais que significam coisas opostas. Isto mostra o quanto a linguagem onírica é literária. Me traz a mente uma frase de Machado de Assis, ao descrever uma mulher já madura: “Uma senhora que ornara os salões do primeiro reinado, e não desornava então os do segundo”. 

Toda a força do trecho reside nesta palavra com dupla negação, à primeira vista desnecessária. Ele poderia dizer: “Ornara os salões do primeiro reinado, e ornava então os do segundo”. Mas reconhece implicitamente que a beleza da dama acusou a passagem do tempo; já não orna tanto quanto antes. Mas ao mesmo tempo se corrige: ora que diabo, já não é mais tão bela, mas também não é feia! Não desorna! 

E esta dupla negação, de braço dado com esse verbo um tanto raro (mesmo dicionarizado, o verbo “desornar” não é de uso corrente) são os sintomas visíveis do processo interno de dúvidas, recuos e auto-correções do autor à medida que a pena corre no papel. Ele vai caminhando, recua um passo, avança dois... 

O resultado é uma palavra pouco comum, resultado de sucessivas interferências. Palavra que é sintoma do vai-e-volta da mente que a gerou, exatamente como as imagens de um sonho.