sexta-feira, 24 de abril de 2009

0997) Os livros de História (27.5.2006)




Num livro de Kurt Vonnegut Jr. um personagem faz uma viagem no Tempo e chega ao futuro remoto. As pessoas lhe perguntam de que época ele vem, mas ele não consegue explicar o que diabo é “século 20”. Fala “depois da II Guerra Mundial”, e ninguém sabe o que foi. Diz que é dos Estados Unidos, e o pessoal nunca ouviu falar. 

Curiosos, levam-no para uma Biblioteca onde ele tem acesso a uma enciclopédia histórica, e manda pesquisar o termo “Era Cristã”. Aí o computador exibe duas linhas de texto, dizendo: “Após o nascimento do profeta Jesus Cristo, a Humanidade passou por um período de adaptação que durou um milhão de anos”. E isto é tudo.

Vonnegut é um dos escritores mais sarcásticos e descrentes de nossa época, e o pior é que ele sempre parece estar certo. O passar dos anos vai reduzindo nossos relatos sobre o que aconteceu no Brasil e no mundo. 

Às vezes eu pego um livro de História recente e me deparo com 30 ou 40 páginas descrevendo as disputas internas de um Partido para a composição e aprovação de uma chapa eleitoral. Telefonemas, cartas, reuniões madrugada adentro, brigas pessoais, traições, conchavos de última hora... Parece que não acaba nunca. 

Me consolo pensando que com o passar dos anos aquilo vai aparecer nos livros assim; “Em 1900-e-tantos, Fulano de Tal foi eleito presidente da República e governou dois mandatos seguidos, quando então foi eleito Beltrano”.

Nos livros de História que nossos filhos estudam, até os nomes próprios desapareceram, o que vemos é uma espécie de Abstracionismo Social, onde só existem formas geométricas básicas. “Com o declínio do poder feudal e as revoltas dos servos, o regime monárquico aliou-se estrategicamente à burguesia nascente, promulgando medidas que eram de seu interesse, como o conceito de moeda única e a supressão do pagamento de impostos intra-territoriais”.

Vista a tal distância, a História é uma espécie de balé de formas, uma animação de Hans Donner. “Poder feudal” é uma porção de circulozinhos multicores justapostos, que vão empalidecendo e minguando. Os “servos” são fungos esverdeados que aderem às suas bordas e os corroem pouco a pouco. O “regime monárquico” é uma estrela central de onde se irradiam linhas douradas em todas as direções. E a “burguesia nascente” é uma infinidade de minúsculos canais que carreiam tinta dos círculos para a estrela, e que, no próximo episódio da série, acabarão sugando para dentro de si a substância cromática de que a própria estrela se compõe.

Tiro meu chapéu para os historiadores que são capazes desta enorme abstração, mas não posso evitar uma certa angústia ao pensar no quanto é irrelevante, para os livros de História de 2050, tudo que nos aperreia o juízo quando assistimos o Jornal Nacional. 

Nos parágrafos iniciais de A insustentável leveza do ser, Milan Kundera cita uma guerra na África em que “350 mil pessoas morreram vítimas de sofrimentos atrozes”. E não ficou o retrato de uma sequer.








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