quinta-feira, 5 de março de 2009

0862) “Nossa música” (21.12.2005)



Crítico de cinema adora fazer lista dos “10 melhores do ano”, mas como não sou propriamente um crítico não farei propriamente uma lista. Quero aproveitar para comentar aqui alguns filmes de 2005 que por variados motivos não comentei na época em que foram lançados. Um deles é Nossa música (cujo ano de lançamento é 2004), mais um desses belos e inquietantes filmes que Jean-Luc Godard tem realizado nos últimos anos, tão semelhantes e ao mesmo tempo tão distintos dos filmes que lhe deram fama nos anos 1960.

Ume menina disse ter visto a Virgem Maria. Mostraram-lhe dezenas de quadros e imagens para ver se ela reconhecia a Virgem, e ela olhava e dizia, não, não. Por fim mostraram-lhe um ícone medieval, uma pintura sem profundidade, sem perspectiva, sem “arte”. A menina ajoelhou-se e gritou: “É ela!”. Um homem mostra a foto de uma cidade devastada pela guerra e pergunta que cidade é. Hiroshima? Estalingrado? Sarajevo? Não, diz ele: é Richmond, capital da Virginia, e aquela guerra foi travada entre americanos e americanos. Um homem afirma que o último grande triunfo do socialismo foi quando o Honved da Hungria derrotou um time inglês por 6x3 em 1953, porque os húngaros jogaram coletivamente e os ingleses individualmente.

Godard ama essas pequenas parábolas, esses pequenos “koans” cuja moralidade política ou estética não esgota o seu significado. Seus filmes são repletos destes micro- episódios, fábulas da História cotidiana que contêm em si uma inesgotável virtualidade simbólica. Seus filmes raramente contam uma única e longa história, são colares de contas todas diferentes umas das outras, e todas, de alguma forma obscura, relacionando-se com o tema central.

Eu nunca aconselho um filme de Godard a ninguém. Se me perguntam: “É bom?”, minha resposta invariável é: “Olhe, eu achei legal, mas acho que a maioria das pessoas não gosta”. Sei por experiência própria que a maioria das pessoas não vai ao cinema para pensar, mas para pedir a um filme que pense por elas. Mesmo quem vai a um cinema-de-arte vai disposto a esse mesmo ritual de rendição: ou vai para absorver as idéias do filme, ou vai como um censor, para checar se o filme corresponde ou não a um ideário exterior à tela e ao público.

Uma gigantesca sala de um prédio devastado pela guerra, paredes descascadas, perfuradas por balas de grosso calibre. Enormes latas negras queimam lixo para atenuar o frio, enquanto um homem escreve, sentado a uma mesinha no meio do imenso saguão vazio. Uma ponte destruída pelas bombas, cujas pedras a população tenta catalogar e colocar de volta na mesma posição de antes. Prédios dos quais só sobrou o esqueleto de vigas, como se uma explosão atômica tivesse varrido deles tudo que não fosse concreto e aço. É Sarajevo, a capital de Bósnia-Herzegovina, onde Godard rodou este filme. Que poderia intitular-se Guerra e Paz, Orgulho e Preconceito, Em Busca do Tempo Perdido, Recordação da Casa dos Mortos.

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