quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

0785) A arte de cruzar palavras (23.9.2005)


(o esquema de rimas de uma décima)

Em todo lugar vejo gente preenchendo tempo ocioso com revistinhas de palavras cruzadas, tipo “Coquetel”. Qualquer banca que a gente olhe vai ter centenas de exemplares dessas revistas. A arte de fazer palavras cruzadas é um passatempo ao alcance de qualquer pessoa. As regras são simples, e mesmo quem não tem um vocabulário muito grande vai se acostumando, porque o repertório se repete, e o cara aprende. Exige uma concentração mediana, e você pode até mesmo guardar de volta a revista e o lápis, e ficar matutando, enquanto faz alguma tarefa. O que diabo será “o substrato instintivo da psique” com duas letras?...

Meu pai era charadista e cruzadista, e eu pratiquei tantos estas coisas na infância que, embora ainda goste, só faço quando envolve um grau de dificuldade maior, em revistas como “A Recreativa”. Minha “palavras cruzadas” quando estou no metrô ou numa fila, sem nada para ler, é glosar motes. Você não imaginam como estas duas coisas são parecidas: praticamente tudo que eu disse sobre uma, acima, se aplica à outra.

Estou sentado no aeroporto, dois caras estão parados à minha frente. Um deles olha o relógio e comenta, com ironia: “são duas horas de espera... e uma hora no avião”. Pronto: não precisa mais do que isto, o motorzinho começa a trabalhar. Como o leitor talvez saiba, o mote são dois versos de 7 sílabas com os quais devemos finalizar uma estrofe de dez versos. Temos que ir falando alguma coisa cujo desfecho se encaixe com estas duas frases. O esquema de rimas dessa estrofe é AB-BA-AC-CD-DC, ou seja há quatro rimas (ABCD) que se distribuem nestas posições. Como o mote ocupa as linhas finais, suas rimas (DC) estarão presentes nas três linhas mais acima; o resto a gente improvisa.

Eu sempre começo a glosar com rimas pouco trabalhosas, então vou dizendo: “Que troço mais cansativo, esperar no aeroporto!” Estas rimas são aquelas letrinhas “AB” do esquema, e as próximas precisam vir invertidas, “BA”, portanto digo: “eu aqui já quase morto, ou mais morto do que vivo!”. Muito bem. Agora preciso das duas rimas do meio, AC. Já sabemos que o “A” é “...ivo”, e que o C é “...ão” (para rimar com a última linha, “avião”). Lá vou eu: “Ninguém me dá um motivo, nem me traz explicação”. Dá pro gasto, e vamos em frente, porque bastam mais duas, as rimas “CD”, que devem ser as mesmas rimas do mote, só que invertidas. Remexo no juízo e encontro isto: “Bora lá, tripulação... antes que eu vire uma fera!”. E finaliza-se repetindo o mote: “São duas horas de espera, e uma hora no avião”.

Fácil? Difícil? Grande arte? Perda de tempo? Não importa, amigos. É um joguinho de cruzar palavras, de procurar coisas na memória, de manter o juízo funcionando. O cérebro é o nosso órgão mais vulnerável à lei do uso e do desuso. O mundo está cheio de gente que pensa que está pensando, mas não está, está mergulhada numa espécie de “screen saver” mental. Acorda, galera! Bora glosar mote!

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