domingo, 11 de janeiro de 2009

0740) O filme das ceguinhas (2.8.2005)



Ouvi dizer que o filme das ceguinhas, A pessoa é para o que nasce, de Roberto Berliner, bateu recordes de bilheteria nos cinemas de Campina. Nada mais natural. Uns querem ver as ceguinhas, outros querem ver um filme que ganhou vários prêmios, e outros querem ver imagens da cidade, reconhecer na tela pedaços do mundo real: “Eita, lá está a Livraria Pedrosa! Eita, lá está o Edifício Rique! Eita, lá está o Edifício Zé Romero!”

As ceguinhas fazem parte da nossa paisagem urbana desde que me entendo por gente. Sempre estavam em algum ponto do triângulo compreendido entre o Teatro, a Catedral e o Edifício Rique. Quando a gente se aproximava, mesmo antes de vê-las, mesmo à distância, já começava a ouvir seu tríduo de vozes rusticamente harmonizadas, carregadas daquela melancolia milenar de quem pede cantando. Cantavam sextilhas anônimas, pedaços de cocos-de-embolada, sambinhas desconhecidos, valsas que pareciam ter brotado no mundo sem autor. Nunca lhes dei esmola, nunca conversei com elas: parei muitas vezes para escutá-las, mas na verdade foi preciso o filme de Berliner para que eu, da mesma cidade e da mesma geração, viesse a saber como se chamam, o que pensam, o que sentem, o que lhes trouxe a vida.

O cinema e a televisão são um espelho do mundo, e a imensa maioria dos povos passa a vida inteira olhando esse espelho sem conseguir avistar o próprio reflexo, como os vampiros das histórias de terror. Um habitante de Nova York vê o tempo todo no cinema sua própria cidade, suas ruas, seus ambientes, os tipos humanos com quem convive, os contextos sociais onde decorre seu dia-a-dia. O cinema e a TV lhe servem de espelho para comparar suas experiências e suas aspirações. Mas para quem vive em Grotão do Canindé, o cinema e a TV não são espelhos, são janelas: abrem-se para outros mundos, mas nunca para o seu. Através daquele retângulo luminoso eles vêem outros países, outros povos, outros planetas, épocas passadas e futuras, mas não vêem a bodeguinha de seu Mamede, a borracharia de Elivélton, o roçado de Dona Joana ou o Padre Adamastor na Casa Paroquial. Imagine a surpresa desses habitantes se um dia uma equipe chegar com suas câmaras, fizer um filme, e eles puderem enxergar tudo isso na tela.

Ver numa tela de cinema os lugares e as pessoas que vemos no dia a dia nos dá uma curiosa sensação de “clic”, de que dois mundos apartados estão, por um instante, se tocando, fazendo contato. Cariocas, paulistas, novaiorquinos e parisienses nem dão mais atenção a isto, já faz parte de sua vida normal. Mas toda vez que eu vejo passar numa tela de cinema um pedaço da Paraíba eu sinto uma pequena (e prazerosa) vertigem conceitual, e penso: “Eita que bom, eu existo mesmo!” Ceguinhos somos todos nós, quando não nos vemos nas bolas-de-cristal da mídia, e ficamos doidos para saber que rosto temos, qual é o som da nossa voz, e o que os Outros pensam a nosso respeito.

Um comentário:

Anônimo disse...

Uma campinidade intensa! A gente sente na pele!!