sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

0726) A imagem da mulher nua (16.7.2005)



Em 1970 fui morar em Belo Horizonte, cidade que eu só conhecia de ouvir falar. Fui atraído pela perspectiva de estudar na Escola Superior de Cinema, da Universidade Católica, mas muitos amigos meus diziam: “Cuidado, rapaz. Você está indo morar na sede da Tradicional Família Mineira. Melhor cortar esse cabelo”. Cumpre esclarecer que meu cabelo na época era um matagal horroroso que me caía pelos ombros abaixo, e que a TFM era uma instituição não-oficial, extremamente moralista e reacionária, que procurava a todo custo defender o que considerava “os valores morais da sociedade cristã e ocidental”. Vale lembrar também que era o auge da ditadura Médici.

Poucas semanas depois de chegar lá fui conhecer com um grupo de amigos o Museu de Arte Moderna, que fica no Parque da Pampulha. E vi uma coisa que me deixou perplexo: havia uma enorme estátua de pedra no jardim, representando uma mulher nua, em tamanho maior que o natural, e com formas estilizadas, simplificadas. Só que por cima da estátua havia um arremedo de sutiã e de calcinha (no caso, calçona) de pano. Eu falei que aquele troço estava vanguardista demais pro meu gosto, e o mineiro que nos guiava explicou: “Não, isto não faz parte da estátua, foi exigência do pessoal da TFM”.

O episódio me veio à mente ao ver há pouco, na imprensa, o episódio relativo à estátua da Justiça, no Prédio do Departamento de Justiça norte-americano, em Washington D.C. Quando o folclórico John Ashcroft assumiu a presidência do Departamento, após os atentados do 11 de setembro, ficou profundamente constrangido ao perceber que a tribuna de onde deveria fazer seus pronunciamentos oficiais ficava em frente a esta estátua, que representa uma mulher com os braços erguidos, vestindo uma finíssima clâmide que mal lhe recobre o seio esquerdo e deixa o direito orgulhosamente exposto. E não foram poucos os fotógrafos que se deliciaram em fotografar o sisudo Ashcroft fazendo suas perorações tendo a imagem de uma mulher nua às suas costas. Tanto fizeram que Ashcroft mandou cobrir a mulher com um pano.

Bem, é uma estátua com 4 metros de altura, e está lá desde os anos 1930. Ao que me conste, não é por causa dela que os EUA são o maior produtor de pornografia do mundo (ou, já que se trata da “Justiça”, um dos mais sistemáticos violadores da Convenção de Genebra – vide as torturas em Guantánamo e Abu-Ghraib). Recentemente, Ashcroft foi substituído no cargo por Alberto Gonzales, e este (num acesso de bom-senso) mandou retirar as cortinas azuis que durante os últimos três anos ocultaram a nudez da Justiça.

Não muda muita coisa. A moral dos puritanos representados por Ashcroft e Bush não é muito diferente da moral dos talibãs ou dos aiatolás. É até irônico a gente ver o desespero dos talibãs e dos xiitas chamando Bush de “o Grande Satã”, e atribuindo-lhe o desejo de perverter as mulheres e crianças do mundo árabe. Os puritanos da América, camaradinhas, também detestam mulher nua.

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