quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

0674) José Sanz (17.5.2005)




(José Sanz e Arthur C. Clarke em 1969)


Espero não morrer sem escrever um perfil biográfico do editor e tradutor José Sanz, falecido em 1987, um dos sujeitos mais fascinantes que conheci. Já o homenageei num dos contos do meu livro Mundo Fantasmo, mas aquele personagem é uma colagem de fatos e invenção. 

O que eu gostaria mesmo é de manusear os documentos que Sanz deve ter deixado espalhados por aí, e tentar reconstituir algo de sua vida real, que foi, muito mais do que meu conto, uma colagem de fatos e invenção.

José Sanz foi jornalista, mas é mais conhecido como entusiasta do Cinema Novo brasileiro e da literatura de ficção científica; duas religiões laicas que nos aproximaram desde o nosso primeiro encontro. 

Eu ia passando pela livraria Dazibao, em Ipanema, e o vi lá dentro. Entrei, e na cara de pau me apresentei: “Sanz, eu sou o cara que escreveu o livro sobre FC na Coleção Primeiros Passos”. Abraçou-me como se eu fosse um filho pródigo que ele procurava há anos, e conversamos até a Livraria fechar. 

Tivemos outros encontros no mesmo lugar (ele morava ali pertinho), nos telefonávamos de vez em quando, e quando o câncer começou a fazer sua investida final ainda o visitei algumas vezes no Hospital da Beneficência, acompanhado por amigos do Clube de Leitores de Ficção Científica.

Sanz traduziu dezenas de livros de FC (sua tradução de Solaris foi republicada há pouco pela Relume-Dumará), conheceu pessoalmente dezenas de autores, e trouxe muitos deles para um Simpósio de FC que organizou no Rio em 1968. 

Como crítico de cinema, tinha uma frase famosa: “Cinema não se discute, faz-se” – frase que nunca o impediu de falar sobre o assunto durante tardes inteiras. 

Quando morreu, Rogério Sganzerla mandou ao “JB” uma extensa carta onde queixava-se, com amargura, de que um tal vulcão de idéias e de atividade (Sganzerla o chamava afetuosamente de “Sanz Fiction”) ficasse desaproveitado.

Não era rico, e parece-me que sempre viveu “de bicos”. Na verdade, nosso primeiro encontro se deu muito antes daquele. De passagem pelo Rio, fui à Livraria do Pasquim para deixar um livro meu em consignação, e tremi na base ao reconhecer o velhinho de barbas brancas e irascíveis que preenchia a nota. Não me apresentei, não falei que era seu fã. Mais do que tímido sou orgulhoso, só gosto de falar com alguém quando posso fazê-lo de igual para igual.

Sanz mentia mais do que cigano; contava histórias mirabolantes sobre condessas que namorou na Europa, farras que fez com Arthur C. Clarke ou Brian Aldiss, escaramuças com a polícia numa cidade obscura na Europa Central. Tudo que contava era vívido, interessante, e a coisa que menos importava era se tinha acontecido ou não. 

O mundo em que viveu era um mundo virtual, feito de ficção, filmes, romances futuristas, sonhos, aventuras, revoluções; noites de vinho, música, mulheres e conversa interminável sob as estrelas de um céu estrangeiro. Tomara que o Céu seja assim, e que Sanz nem tenha percebido a transição.






0673) Adeus às armas (15.5.2005)


(Carlos Ranna)

A campanha pelo desarmamento doméstico está de novo na imprensa, em vista do tal referendo que deverá acontecer ainda este ano, no qual a população dirá se a produção e venda de armas deve ou não ser proibida. É sempre delicado você chegar de uma hora para outra e, com uma canetada, colocar fora da lei centenas de empresas que fabricam e comercializam algum produto. Cria um problema social, vai desempregar muita gente, etc. Só vale a pena se for para um fim muito nobre, e num assunto de muita urgência. É este o caso?

Alguns defensores da tese “População armada é população segura” argumentam que um sujeito com uma arma em casa pode defender sua família melhor do que um sujeito desarmado. Discrepo, nobres colegas. Prefiro viver num país onde se desarmam os bandidos do que num país onde se armam os cidadãos. Me sinto meio inseguro no Rio de Janeiro, mas não me sentiria melhor se andasse com um 38 na cintura. Ia acabar fazendo “disparos preventivos” à la George W. Bush. Vocês já empunharam um revólver? É um design impressionante, aquilo se encaixa tão bem na mão da gente que apertar o gatilho parece uma coisa inevitável, obrigatória. Se não apertar, a gente fica se sentindo meio incompleto.

Robert Heinlein, um escritor que admiro mesmo discordando, era um fervoroso defensor (como toda a Direita norte-americana) da tese do “cidadão armado, cidadão livre”. Esta Direita Liberal desconfia profundamente do Estado, acha que o Estado quer apenas oprimir e sacanear o cidadão, e que se o cidadão ceder seu fuzil ao Estado estará se entregando de mão beijada ao inimigo. Heinlein afirmava que o direito de portar armas era a base de toda a liberdade humana. “Sou contra qualquer tentativa de licenciamento ou restrição ao porte de armas por parte de um indivíduo”, dizia ele. “A França tinha esse tipo de leis. Quando os nazistas a invadiram, tudo que precisaram fazer foi consultar os livros de registro nas delegacias locais e apreender todas as armas dos franceses.”

Direitistas como Heinlein ou Charlton Heston julgam viver numa selva onde a qualquer instante seremos assaltados por traficantes ou invadidos por nazistas, e é preciso estar atento e forte, com um AR-15 na parede da sala e um parabelo na mão. Se você sugerir a ele que a melhor solução seria eliminar o tráfico e impedir o surgimento do nazismo, ele dirá que não, “deixa que eles venham, que eles vão ver o que é bom pra tosse”. É uma cultura da agressividade que precisa desesperadamente de ameaças para ter a chance de usar suas armas “por uma boa causa”.

O erro dos atuais governos é que não estão conseguindo desarmar os traficantes, bloquear o contrabando de armas para o país, neutralizar a indústria do crime (seqüestros, assaltos a carretas, etc.). Estão tentando fazer algo que, mesmo difícil, ainda é a parte mais fácil: desarmar os cidadãos. Seu erro não é fazer o que está fazendo, é continuar a não fazer o que nunca fez.

0672) Ler e ver (14.5.2005)




(cartum de Caco Galhardo)

No debate sobre a competição “livros x TV” temos partidários do livro que atribuem à TV todos os males da humanidade, a transmissão de idéias nocivas, e o embotamento mental dos jovens. No campo oposto, os partidários da TV anunciam que a era do livro acabou, e quem é contra os meios eletrônicos de comunicação é uma meia-dúzia de intelectuais jurássicos que gostariam de congelar a civilização no século 19. Ambos (preciso dizer?) estão errados.

Acho que a TV parece mais com uma revista do que com um livro. A brevidade no trato dos assuntos, a relativa superficialidade, a linguagem mais aberta e descomplicada, a variedade e descontinuidade entre os temas. São experiências distintas da leitura de um livro, onde se supõe que haja uma leitura linear, de um único texto, de A a Z. (Claro que existem livros sobre assuntos variados, mas preciso generalizar.) Porque o que se defende, ao defender a leitura de livro, principalmente para crianças e jovens, é uma série de hábitos mentais – que a TV não cultiva, não porque não queira, mas porque não está ao seu alcance.

Número 1: concentração. A TV proporciona experiências fragmentadas, onde o programa padrão mais longo tem uma hora. Alguém aí conhece um programa de TV que explore o mesmo assunto durante 3 ou 4 horas seguidas? E é justamente essa concentração, essa continuidade de foco durante horas seguidas, que o livro exige do leitor. O leitor de livro acostuma-se a concentrar sua mente durante horas num mesmo conjunto de idéias, sem “mudar de canal”. A mente de quem vê apenas TV sofre de uma espécie de ejaculação precoce. Com poucos minutos “dá por visto” e quer ver outra coisa.

Número 2: abstração. A palavra serve para abstrair, generalizar. Os meios audiovisuais são excessivamente sensoriais e concretos. Já notei que essa garotada de 10 ou 12 anos tem dificuldade de resumir uma história. Quando a gente pergunta como foi o episódio do desenho animado, eles o recontam todo, cena por cena, diálogo por diálogo. São incapazes de resumir uma narração: “Eles chegam num planeta que é cheio de praias, sol, etc., e descobrem que os caras de lá querem vir morar na Terra, aí depois de muitas discussões eles entregam a nave pros caras virem, e ficam morando lá”. Garotos têm dificuldade de fazer esse tipo de abstração. Memorizam o concreto como ninguém; mas não sabem ir além dele.

Número 3: fecundação lingüística. Ver filmes ou TV não faz de ninguém um diretor, por mais que aguce nossa sensibilidade e memória visual. Mas a experiência de ler mobiliza de imediato todos os nossos recursos de assimilação verbal, ensina nossa mente a raciocinar verbalmente, dá instrumentos a nossa expressão. É um processo educativo que é mais intenso quando lemos uma grande obra literária, mas que também ocorre em níveis mais elementares. Abrir mão de ler nos deixa privados do melhor treinamento que existe para essas três habilidades, que não se aprendem na escola.



0671) Vorta pro gol, goleiro! (13.5.2005)


(gol do goleiro num Bangu x Botafogo)

Vi no “Globo Esporte” de algum tempo atrás dois lances ocorridos no mesmo fim-de-semana, lances que por alguma razão sádica me divertem imensamente. O primeiro ocorreu num jogo entre Sevilha e Español pelo campeonato da Espanha. O Espanhol perdia em casa por 2x1, e no finzinho do jogo houve um escanteio e o goleiro foi lá para a área adversária tentar o gol de cabeça. A defesa aliviou, o time puxou o contra-ataque e enquanto o pobre do goleiro, na maior afobação, tentava voltar para seu lugar, o cara entrou de área adentro e tocou para o gol vazio. O outro lance ocorreu no campeonato do Distrito Federal. Goleiro na área tentando o gol de cabeça, defesa alivia, e um jogador lá do meio de campo manda a bola por cobertura; o zagueiro tenta em vão tirar de cabeça, mas é bola na rede. (Eu, se fosse o zagueiro, agarrava a bola com a mão, e entregava pro goleiro dizendo: “Agora defende o pênalte, idiota”)

Eu acho uma idiotice um goleiro sair da própria área para tentar o gol de cabeça, sujeitando-se a esse tipo de vexame. Não vou dizer que nunca dê certo. Há pouco tempo, num Campeonato Brasileiro, um goleiro da Ponte Preta fez isso no minuto final de um jogo com o Flamengo, mas do jeito que anda o mundo, até eu faço gol no Flamengo. Mas essa atitude kamikaze serve para mim como um bom exemplo dos modismos no futebol, onde basta um sujeito fazer uma coisa e ter repercussão na imprensa para todo mundo começar a imitá-lo. Parece o cinema americano ou a música brasileira.

Se não me falha a memória, a primeira vez que vi um goleiro tentar esse recurso suicida foi na Copa de 86, quando o goleiro Prudhomme da Bélgica apareceu de repente na área adversária, num escanteio, tentando empatar um jogo no último minuto. Copa do Mundo é um dos melhores exemplos de como a exposição maciça à mídia gera um modismo qualquer. Dali em diante, qualquer goleiro do Ipiranga de Baturité ou do XV de Novembro de Conceição dos Coqueiros achou que seria capaz desta façanha, e a quantidade de “micos” resultante é um dos mais divertidos capítulos na história do futebol.

Nem sempre são divertidos. Vi uma vez, também num “Globo Esporte” de segunda-feira, um caso que ainda hoje me dói no coração. Foi num campeonato juvenil em algum campinho brasileiro. No último minuto, o goleiro do time que perdia foi para a área inimiga, para o último escanteio. Subiu junto com a zaga e fez o gol de cabeça. Os colegas fizeram uma pirâmide eufórica sobre ele. Quando se livrou dos abraços, correu para a lateral do campo e ficou acenando para a torcida, jogando beijos. Quando se virou, ouvindo os gritos dos companheiros, percebeu que o time adversário já tinha batido o centro, chutado do meio de campo, e lá ia a bola, mansinha, quicando tranqüila para o fundo das redes. É assim o futebol, principalmente quando temos 15 anos de idade: do Inferno ao Paraíso (ou vice-versa) em questão de segundos.

0670) Blowin’ in the Wind (12.5.2005)



Falei dias atrás sobre “Asa Branca” e o fato de ela ser uma grande pequena canção, sem grande riqueza musical, mas que por vários motivos tornou-se uma canção marcante, simbólica. Não é a única assim. De imediato me lembrei de “Blowin’ in the Wind”, a canção de Bob Dylan que tornou-se um hino do movimento pelos Direitos Civis. É uma das músicas mais conhecidas do cancioneiro norte-americano, e é uma coisa “desse tamanhinho”. Tem dez centavos de melodia, mas tem uma letra com imagens fortes, evocativas, e suficientemente amplas para poderem se encaixar em qualquer situação: “Quantas estradas um homem tem que percorrer, até ser considerado um homem? Quantos mares uma gaivota tem que cruzar, antes de poder dormir na areia? Por quanto tempo as balas de canhão ainda vão voar, antes de serem banidas para sempre? A resposta, meu amigo, está soprando no vento”.

Não tem a complexidade, a originalidade, o impacto poético-musical de outras canções de Dylan como “Hurricane”, “Jokerman”, “Brownsville Girl”, “Tangled up in Blue”. Nosso primeiro impulso é achar que é justamente esta simplicidade, esta acessibilidade, que fez o seu sucesso, mas... músicas de três acordes é só o que tem por aí, e nenhuma delas vira o hino de uma geração inteira. É preciso a confluência de uma série de coisas, e aí não deixo de pensar que quem faz a força destas canções é acima de tudo sua letra.

Um caso parecido é o de “Caminhando” de Geraldo Vandré (“Caminhando e cantando, e seguindo a canção...”). Certa vez a Veja fez uma matéria sobre Vandré e usou o título: “Ele compôs a Marselhesa e não sabia”. Vandré provavelmente não imaginava que sua música teria um impacto tão duradouro. Era uma musiquinha de apenas dois acordes, e com todas as rimas em “ão”; era quase uma caricatura de tudo que a MPB não era no momento. Para quem se lembra, a MPB estava dividida entre a sofisticação harmônica e poética de Tom Jobim e Chico Buarque (que acabaram ganhando aquele festival com “Sabiá”), e a exuberância tropicalista em letras, melodias, arranjos, figurinos, atitudes. Sem se identificar com nenhuma destas tendências, Vandré infiltrou uma canção propositalmente minimalista, rudimentar, com um discurso poético explícito, sem sutilezas. E entrou para a História.

“Caminhando” é o contrário de canções complexas como “Disparada” (em parceria com Théo de Barros), “Aroeira”, “Pequeno Concerto que Virou Canção” e outras preciosidades que Vandré mostrou ser capaz de criar. Assim como ocorre com “Asa Branca” e “Blowin’ in the Wind”, são dez-tostões de melodia que qualquer um é capaz de cantarolar ou de acompanhar ao violão, e quem faz a canção decolar é na verdade a letra. Melodias simples junto a letras de alto impacto são uma descrição adequada para estas canções, que fazem torcer o nariz dos músicos sofisticados, mas que corresponderam, em um momento histórico específico, a alguma coisa que todo mundo estava com vontade de dizer.