quarta-feira, 22 de outubro de 2008

0618) Pobre princesa feia (12.4.2005)



Nos meus passeios diários pelas homepages de jornais do mundo inteiro (bem, de três ou quatro países apenas, para ser sincero) tenho visto uma cachoeira de artigos irônicos e cheios de graçolas a respeito do anunciado casamento do Príncipe Charles com a Sra. Camilla Parker-Bowles. Todo mundo sabe que o casal namora e se relaciona há décadas. Ao que parece, antes mesmo do casamento dele com a falecida Princesa Diana os dois já trocavam abraços. E durante o casamento Charles/Diana, a desafortunada Camilla virou uma espécie de saco-de-pancadas da imprensa inteira. Por que? Porque é uma mau-caráter, uma calhorda, porque não escova os dentes, porque passa cheque sem fundo? Não: porque é feia.

Coitada de Dona Camilla, que aliás nem sequer é mais feia do que a maioria das inglesas, benza-as Deus. A finada Lady Di ganhou a simpatia de Deus e o mundo porque tinha uma carinha fotogênica e uma silhueta contemplável, mas era “uma cabecinha-de-vento”, como a qualificou Paulo Francis num momento de magnanimidade. Uma inglesinha como tantas outras, que leu muito os Irmãos Grimm na infância e sonhou em ser princesa e rainha, como tantas brasileirinhas sonham em ser modelos e atrizes. Seu palminho de rosto, comparado ao de Camilla, despertava analogias imediatas com Cinderela e As Irmãs Feias (a feiura de Camilla, claro, valia por duas).

Quem sou eu para dar pitaco na vida alheia. Mas acho que o Príncipe Charles é um sujeito sensaborão, cheio de nós-pelas-costas, e tudo que quer é um matrimônio britânico à velha moda. Qual é o problema, então? O que me espanta é a impressionante unanimidade (no Brasil e fora dele) da antipatia com a Dona Camilla, só porque é feia. Todas as pessoas a quem perguntei não sabem nada dela – sabem que é de família tradicional, que namora com o príncipe, que o Príncipe declarou uma vez que gostaria de ser o O.B. dela, e que ela tem cara-de-cavalo.

Lembro-me de uma campanha presidencial americana, anos atrás (acho que no tempo de Nixon), quando o candidato democrata estava sendo escolhido. Li um artigo numa revista analisando os possíveis candidatos e a certa altura o articulista dizia: “O melhor candidato Democrata seria Fulano de Tal. É sério, honesto, inteligente, competentíssimo, e teria tudo para ser um dos melhores presidentes que o país já teve. Mas nunca será eleito, porque não tem carisma, fotografa mal, discursa mal. Excelente administrador– mas péssimo candidato”.

O que me lembra a piada do bêbado que ao chegar em casa tenta abrir a porta, a chave cai, e ele vai procurá-la junto ao poste-de-luz da esquina. O guarda diz: “Por que não procura no lugar onde a chave caiu?” E ele: “Lá está muito escuro, não vou achar nunca. Melhor procurar aqui, que pelo menos tem luz”. É o problema dos americanos, coitados, sempre procurando um presidente na TV. Deixem o Príncipe Charles procurar a chave dele no escuro. Um sujeito não pode ser bobão quando sabe o que quer.

0617) Sidney Lumet (11.3.2005)



O Oscar deste ano foi o chiclete de sempre. Não havia sequer um grande “blockbuster” entre os indicados para Melhor Filme. Eu acho isto um bom sinal. Não tinha Titanic, Senhor dos Anéis, Último Imperador... Apenas cinco filmes de porte médio, dos quais o único que vi e comentei aqui (Entre umas e outras) não tem nada de excepcional mas é um filme assistível. O cinema de Hollywood está cada vez mais parecido com desfile da Beija-Flor, e um filme simples assim é um alívio, como uma roda-de-samba no botequim.

Me alegrei com o Oscar honorário para Sidney Lumet. O auge da carreira de Lumet como diretor coincidiu com o tempo em que eu era cineclubista e crítico de cinema, e ainda admiro sua obra. Lumet não é um “auteur” no sentido europeu do termo, não é um reinventor da linguagem, ou um intelectual com idéias próprias. É um sujeito com alma teatral que domina a técnica do cinema. Seus melhores filmes são modelos de narrativa clássica, aulas de como contar uma história e reger um elenco, extraindo dele o máximo.

Assassinato no Orient Express é a melhor adaptação de Agatha Christie para o cinema (com o Testemunha de Acusação de Billy Wilder, de 1957), não só pela reconstituição de época e pelo elenco, mas pelo roteiro (de Paul Dehn) que pela primeira vez faz justiça às elucubrações do detetive. Dia de Cão é o filme de assalto a banco que formatou todos os outros, um fascinante equilíbrio entre roteiro e improviso. Rede de Intrigas é uma sátira sobre o poder externo e a corrupção interna da TV, com um roteiro (de Paddy Chayefsky) que parece uma HQ surrealista mas acabou sendo profético. A Colina dos Homens Perdidos é um filme exemplar sobre o absurdo da guerra, da prisão e do militarismo. Armadilha Mortal é um mistério policial bem urdido, totalmente teatral, cheio de reviravoltas, e seu único defeito é ser uma tentativa de igualar Jogo Mortal (Sleuth) de J. L. Manckiewicz, o que aliás quase consegue.

Lumet tem filmes fracos, claro; o mais chato de todos é uma adaptação musical de O Mágico de Oz, com Diana Ross e Michael Jackson, tão kitsch e caótica que parece ter sido dirigida por estes dois.

O melhor filme dele, e um dos melhores que já vi, é O Homem do Prego, a história de um judeu que escapa do campo de concentração, vai morar no Harlem de Nova York, e passa a explorar os negros da vizinhança. O filme tem trilha de Quincy Jones, uma inesquecível fotografia em preto-e-branco, tem Rod Steiger no papel principal (às vezes meio “over”, mas sempre impressionante), e uma montagem de flash-backs rapidíssimos que me proporcionou uma das grandes iluminações mentais da minha vida. O Homem do Prego é muitas vezes referido no livro de Lumet (já publicado no Brasil) Fazendo Filmes, e nas memórias do montador Ralph Rosenblum (When the Shooting Stops... the Cutting Begins). É de 1965, mas fico com a sensação de que somente agora, quarenta anos depois, o filme recebeu o Oscar que merecia.

0616) Os oratórios de Farnese (10.3.2005)



Está em cartaz no Rio, no Centro Cultural Banco do Brasil, uma exposição (ao que parece, a maior já realizada) da obra de Farnese de Andrade, artista falecido em 1996. Tive meu primeiro contato com essa obra em 1971, quando no Festival de Cinema de Brasília o prêmio de melhor curta-metragem foi concedido a um documentário de Olívio Tavares de Araújo sobre a obra de Farnese. Nunca saiu da minha mente aquela coleção de objetos híbridos, “assemblagens”, caixas dentro de caixas, pedaços de bonecos ou manequins mutilados, fotografias antigas, imagens de santos, pedaços variados de vidro, de metal, de conchas do mar.

Há um depoimento de Farnese onde ele afirma ter estudado gravura durante vários anos, mas um dia uma porção de objetos que manipulava começaram a adquirir outro sentido quando justapostos uns aos outros, e ele passou a dedicar-se à confecção desses conjuntos tridimensionais. Há uma sala inteira da exposição dedicada aos seus oratórios: aqueles relicários de madeira de guardar santos, que nas mãos de Farnese viram uma espécie de “monstruário” de justaposições surrealistas. Um bebê de louça partido ao meio, com uma barata no interior. Bolas de cristal que emergem das paredes de madeira como se estas criassem olhos para nos espiar de volta. Há um objeto chamado “Orgasmo”, uma espécie de enorme compoteira de vidro com pedestal, cuja parte inferior é cheia de areia branca, tendo por cima uma camada de minúsculas esferas brancas, e sobre esta outras camada de bolas de vidro um pouco maiores, até que da abertura superior da compoteira emerge uma seqüência de bolas de cristal maciço, sendo que a última e menor delas traz dentro de si a imagem de uma criança.

Cada objeto de Farnese, se visto isoladamente, daria assunto para meia hora de contemplação silenciosa, e incessante associação de idéias. Quando vemos vinte deles numa mesma sala, em dez minutos julgamos ter visto tudo. O que é impacto original e perturbador de um “objeto inquietante”, como diziam os surrealistas, visto em conjunto denuncia o seu caráter técnico, de um gesto criador repetido. Sugere uma simples linha-de-montagem de surpresas pré-fabricadas.

Problema do artista? Não creio. Os oratórios de Farnese não foram feitos para ser assimilados em grupo, e sim isoladamente. Agrupá-los produz uma overdose que anestesia o espectador. É como um livro de poemas, que ninguém pega para ler de cabo a rabo – porque a obra de arte não é o livro, é cada poema. A obra de arte produzida por Farnese não são os trinta ou cinqüenta objetos daquela sala (a exposição toda, aliás, tem mais de 120), e sim cada um deles. Que, idealmente, deveria ser visto e pensado à revelia dos demais. A exposição ideal para Farnese deveria ser uma sala vazia com um objeto no centro, objeto que seria trocado toda semana, para que toda semana viéssemos repetir nossa visita e renovar nossa inquietação.