sábado, 18 de outubro de 2008

0609) Escrevendo sonhos (2.3.2005)




(Entr'acte, René Clair, 1924)

Em seus Notebooks, Nathaniel Hawthorne anotou para si próprio (e para quem interessar pudesse) a seguinte tarefa: 

“Escrever um sonho, que deverá se assemelhar ao perfil de um sonho verdadeiro, com todas as suas inconsistências, suas excentricidades, sua falta de propósito – e que no entanto tenha uma idéia central a percorrê-lo de ponta a ponta. Desde o início do mundo até este ponto tão avançado de sua história, um texto assim jamais foi escrito”.

Muita gente há de discordar desta afirmativa final. Para os críticos, a linguagem desconexa, híbrida, aparentemente insensata do último livro de James Joyce (Finnegans Wake) não é nada mais que a sintaxe do sonho transposta para a narrativa verbal. 

Muitos outros experimentos da literatura de vanguarda podem reclamar a mesma condição. O ano passado em Marienbad, de Robbe-Grillet, filmado por Alain Resnais, é uma narrativa que tem do sonho as recorrências inexplicáveis, a amnésia generalizada, a ambientação asfixiante, a impressão de desenraizamento.

O cinema, principalmente o cinema surrealista, chegou perto do que propunha Hawthorne. 

O exemplo clássico é Um cão andaluz de Buñuel, mas filmes como Entreato de René Clair ou, nos tempos recentes, algumas experiências de David Lynch têm algo do clima ominoso dos sonhos, em que as imagens e as situações nos produzem emoções que desconhecemos em nós mesmos, emoções que não têm uma justificativa, que não são o medo, a repulsa, a irritação ou a curiosidade que experimentamos numa situação regida pela lógica e pelo bom-senso. 

Na literatura, o discurso é forçosamente encadeado por cláusulas, pelos “porquês” e os “comos” da sintaxe, o que dá uma aparência de lógica às situações mais desconexas. No cinema, o que temos é sensorialidade pura (imagem + som), presentificação de ambientes e de situações sem tentativa ou possibilidade de explicá-los.

No século 19, quando o Realismo literário foi considerado por muita gente uma espécie de triunfo final, de “Fim da História” na literatura, grande parte da literatura fantástica optou pelo sonho como o álibi principal para os eventos impossíveis que narrava. Depois de passar por uma série de peripécias, o protagonista, nas últimas linhas, acordava de volta em sua poltrona ou sua cama. 

Machado de Assis é um que recorreu repetidamente a este artifício – o exemplo mais famoso e mais brilhante é o episódio do hipopótamo, nas Memórias Póstumas de Brás Cubas. Sonhos, delírios, alucinações, foram um pretexto para justificar os passeios dos personagens pelos guetos interditos do Fantástico. 

O trecho de Machado, aliás, é uma resposta curta mas cabal à provocação de Hawthorne. E se destaca na obra do autor carioca, que sempre foi uma obra clássica, racionalista, governada por uma lógica implacável. Brás Cubas, seus emplastros e seu hipopótamo são um bendito alívio, uma sombreada trégua de maluquice no sol causticante de tamanha lucidez.






0608) Tradição e brodagem (1.3.2005)



Alguns pontos em comum entre o que chamamos de Tradição Oral (no universo do “folclore”, “cultura popular”, etc.) e o que chamamos de Cultura Virtual (a cultura do mundo digital, da Internet, etc.).

Primeira coisa: o Anonimato Coletivista. Ambas as culturas existem dentro de um “corpus” coletivo, um universo criado em conjunto por milhares ou milhões de pessoas que não se conhecem, e que não precisam se conhecer. O individualismo da produção cultural urbana, industrial, moderna, não vigora nem no universo das culturas tradicionais nem no recente universo da cultura virtual. Isto tem aspectos negativos, como a freqüência com que obras criadas por um indivíduo são apropriadas e assinadas por outro, ou então falsamente atribuídas a um terceiro. Antigamente, não era rentável pegar um livro publicado por alguém e republicá-lo com o nome do usurpador. Hoje, com meia dúzia de cliques isto é possível, a custo zero. O livro não é fisicamente impresso, mas pode circular na Rede com a falsa atribuição de autoria.

Por outro lado, a simples existência de uma cultura coletiva anônima tem um enorme valor sociológico, mesmo que não tenha valor estético. É possível saber com mais riqueza e mais nitidez o que uma comunidade de pessoas pensa. E a perda de importância da autoria individual tem, como contrapartida positiva no aspecto psicológico, a criação de novos conceitos de generosidade, desprendimento, compartilhamento fraterno.

Segunda coisa: a Tradição antiga se valia acima de tudo da autoridade paterna, da credibilidade dos antepassados. Os participantes dessa cultura se sentiam imbuídos da missão de preservar algo que lhes tinha sido transmitido pelos pais, avós, bisavós. Havia uma linha vertical de herança que precisava ser mantida. Na Cultura Virtual de hoje, existe um rompimento com essa tradição vertical, que é substituída por uma fraternidade horizontal. O usuário sente-se devedor de seus contemporâneos, e não de seus ancestrais. Ele não é mais formado pelo exemplo paterno, mas pelo exemplo fraterno dos “brothers”, da “rapaziada”, da “galera”.

Terceira coisa: tanto a Tradição quanto a Cultura Virtual se preocupam mais com o conceito de Processo do que com o de Obra. Um embolador-de-coco e um sampleador de MP3 estão mais preocupados em fruir o prazer criador de manipular do que em cristalizar uma obra pronta e acabada onde “não precisa mais mexer”. É de “mexer na obra” que eles gostam; é do processo de ficar criando e recriando. O gosto de fazer conta mais do que o orgulho pela obra feita.

Quarta coisa: o que caracteriza tanto a Tradição quanto a Cultura virtual é a posse dos meios de produção. Podem ser rudimentares ou de fundo-de-quintal; mas são seus. Um cordelista que imprime seus folhetos no quarto dos fundos compartilha o mesmo espírito do roqueiro que grava seu disco num Cakewalk, queima 150 CDs e sai vendendo na porta dos shows de rock. Nova roupagem para uma liberdade antiga.

0607) Uma lenda oriental (27.2.2005)



Diz uma antiga lenda oriental que na época da dinastia T’sin, havia um rei despótico que gastava de modo perdulário, prendia e torturava os críticos do seu regime, e roubava o Tesouro público. O rei subira ao trono cercado de expectativas, pois fora um príncipe inteligente, amado pelo povo. Depois que passou a governar de modo desastroso, um grupo de nobres reuniu-se, conspirou, e juntou exércitos para enfrentar o tirano. Houve uma guerra sangrenta. O tirano foi morto, e os nobres elegeram, para substituí-lo, o nobre Li H’sien. Este era um homem íntegro, mas, assim que subiu ao trono, começou a se comportar de modo muito parecido com o antecessor. Perseguiu os antigos aliados, construiu palácios para seus parentes, cercou-se de bajuladores, e botava na cadeia quem falava mal dele.

Os nobres agüentaram isso durante alguns anos, aí juntaram-se novamente, desencadearam outra revolução, executaram Li H’sien e colocaram no trono o general Hsui-Pen, um homem valoroso, simples, de julgamentos serenos e caráter firme. Poucos anos depois, o general tinha transformado a corte num verdadeiro bordel com orgias intermináveis, além de promover a execução de dissidentes, e a invasão militar das províncias vizinhas. Os nobres, já desesperados, sem saber o que fazer, foram queixar-se ao Budista Tibetano. O Budista Tibetano deu uma baforada do seu narguilê, pensou, pensou, aí disse: “Olha, eu, se fosse vocês, tocava fogo era naquele trono. Todo mundo que se senta lá fica assim.”

Gostou da lenda oriental, caro leitor? Se gostou, obrigado, porque acabei de inventá-la. Não, não me elogie. A imaginação e a criatividade pouco contribuíram para a sua execução. O que mais me valeu foi a memória, o hábito de ler jornais, e algumas décadas de vida debruçado na janela por onde o mundo vive passando e só Carolina não vê. Para os que se debruçam nessa janela, o mundo traz surpresas cíclicas. Se são cíclicas, talvez não devessem ser surpresas, porque a repetição nos deixa prevenidos. Mas é que o mundo não se repete em círculos, como supunha Nietzsche, mas em espirais: cada vez que uma coisa acontece, acontece num ponto diferente da vez anterior.

O filme Viva Zapata, de Elia Kazan, mostra Marlon Brando no papel de um camponês mexicano que se revolta. Um dia eles vão protestar algo junto ao tirano local e este, enraivecendo-se , pergunta: “Você! Como é seu nome?!” Ele responde, intimidado: “Zapata. Emiliano Zapata.” Os anos se passam, Zapata entra na luta armada revolucionária, vira líder e herói, mas descobre que é mais fácil deflagrar Revoluções do que mantê-las. Depois que vira presidente do México, um dia uns camponeses vão ao palácio reclamar de alguma coisa. Ele se irrita com um dos queixosos, e diz: “Você! Como é o seu nome?!” Aí na mesma hora o episódio antigo lhe vem à memória, e ele se cala, confuso, percebendo a inversão dos papéis. Pois é. O problema é o trono, presidente.


0606) É negócio pra homem (26.2.2005)


(desenho de Saul Steinberg)

Uma das balelas que mais me irritam na jângal de clichês do nosso cotidiano é a história de que tarefas intelectuais, racionais e lógicas são mais adequadas à mente masculina, e que as mulheres são mais propensas às tarefas que envolvem a sensibilidade, a emoção e o afeto. Nunca escutei sandice maior na minha vida, e se eu fosse mulher me dedicaria a combater isso com uma veemência que faria a Al-Qaeda parecer um Clube Dominical de Dominó. Fico imaginando como é que uma mulher (estou falando uma mulher de verdade, e não uma zumbi maquiada) escuta uma coisa dessas e não pega-em-armas.

De vez em quando ouço uma mulher dizendo; “Eu não consigo usar computador. É coisa pra homem. Essas coisas são frias, lógicas, matemáticas, mas eu lido é com a emoção.” A primeira coisa que me vem à mente é que essa cidadã é incapaz de pagar uma conta ou passar um troco, porque não tem atividades mais lógicas e matemáticas do que estas. Uma mulher que diz uma coisa assim é incapaz, a meu ver, de dirigir um automóvel. E no entanto, os motoristas mais rápidos que conheço são todos homens (porque dirigem emocionalmente), e as motoristas mais confiáveis que conheço são mulheres (que dirigem com o juízo). E o que dizer de cuidar do orçamento de uma casa, comprar material escolar, organizar uma festa, preparar um almoço? São atividades onde a emoção e a afetividade só interferem marginalmente. São atividades lógicas e matemáticas (medir quantidades, determinar espaços, formar grupos homogêneos, planejar alternativas...), ou será que eu fiquei doido?

Existe coisa mais intelectual do que receita culinária? Uma mulher que não gosta de coisas lógicas é incapaz de distinguir o que são “250 gramas” ou “2 colheres e meia” de algo, ou de interpretar corretamente instruções sutis como: “Sal e pimenta a gosto” ou “Levar ao forno até dourar”. E não venham me dizer que quem faz isso é a “sensibilidade”, a “intuição feminina”. Sensibilidade e intuição são processos intelectuais, e sua única relação com o mundo emotivo é que só recorremos a eles quando estamos movidos pela emoção, geralmente a ansiedade por não ter obtido sucesso seguindo os processos convencionais. A intuição é um livro sem título na lombada, mas as instruções que contém são de ordem intelectual.

Existe coisa mais fria e lógica do que fazer tricô ou crochê? Folheei alguns álbuns de instruções dessas nobres artes, e dei graças à Providência que me fez nascer varão, levando meu pai a me ensinar o xadrez. Se eu tivesse nascido mulher, minha mãe ia querer me ensinar tricô, e minha vida intelectual seria abortada no nascedouro. Tiro o chapéu para as mulheres que tricotam calmamente, agulhas em punho, enquanto falam da vida alheia. Aquilo ali é mais difícil do que consertar placa-mãe. Minhas caras amigas, a mente humana é formatada nos cinco primeiros anos. Cuidando a tempo, tudo é possível. Até mesmo um homem aprender tricô.

0605) A idéia na poesia (25.2.2005)





(Carlos Drummond de Andrade)

Foi Ezra Pound quem difundiu a idéia de que a Poesia consiste basicamente em três elementos misturados: Música, Imagem e Idéia. 

Quando se fala em Idéia, muita gente pensa logo que se trata da “mensagem” do poema, ou seja, “aquilo que o poeta quis dizer”. 

Quero lembrar que a poesia não é uma charada, algo que tem uma resposta oculta que cabe ao leitor descobrir com a ajuda de pistas espalhadas ao longo do texto. 

O Poeta chega e diz: “O animal na torre da igreja encontra-se doente. Duas e duas!” Silêncio respeitoso e perplexo entre a multidão. Aí o crítico de poesia da Academia Francesa pede a palavra e responde: “O animal, tatu. Na torre da igreja, sino. Encontra-se doente, tá tussino.” Palmas, vivas, chapéus voam pelo ar. Não, amiguinhos, poesia não é assim.

Um poema não é uma charada ou uma adivinhação, cujo objetivo é achar a resposta. 

Uma poema não é uma fábula de Esopo ou de La Fontaine, que existe para ilustrar um princípio moral do tipo “Quem tudo quer, tudo perde”. 

Um poema não é uma piada, cujo objetivo é provocar uma gargalhada com a última linha. 

Ou melhor, um poema até pode ser isso tudo, mas provavelmente não será um bom poema, e em todo caso não é com essa finalidade que a poesia existe, ou que a própria noção de Idéia existe na poesia.

Em muitos casos a Idéia de um poema é uma história que ele conta, e essa história pode ser ilustrativa de uma visão do mundo político, filosófica, ou uma mera opinião do autor. Isso não empobrece um poema. 

“O Operário em Construção” de Vinícius de Morais, é um bom exemplo de poema inteiramente voltado para transmitir ao leitor uma mensagem política clara e inequívoca, e que mesmo assim é um grande poema, por ter outras qualidades além dessa idéia (é um poema rico em Música e em Imagem, por exemplo). 

http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/o-operario-em-construcao 

A obra de Brecht e de Maiakóvski é o melhor exemplo de que pode-se fazer poesia política de alta qualidade. Os dois, no entanto, são a exceção, não a regra.

Um poema ganha em sutileza e permanência quando conta uma história mas essa história não se fecha, não se resume numa frasezinha aconselhatória. 

O que é “O Caso do Vestido”, de Drummond? 

http://www.releituras.com/drummond_vestido.asp

Um poema contra o adultério? A favor do adultério? A favor do castigo? A favor do perdão? Quem saberá jamais? O poema se inicia com as filhas perguntando à mãe “o que é aquele vestido pendurado ali”. A Mãe lhes conta a história de como o marido a abandonou por outra mulher, e depois acabou voltando. O vestido é isto? O poema é isto? 

Cada vez que relemos poemas como este ou como “Desaparecimento de Luísa Porto”, “O Padre e a Moça”, “Morte do Leiteiro”, vemos uma história ser contada, e cada resposta se abre em mil novas perguntas. 

Um poema é um gerador de idéias. Ou é um instrumento potencializador das idéias mais presentes em nossa memória no momento da leitura – de tal modo que, quando o relemos, pensamos coisas diferentes das que pensamos nas vezes anteriores.