terça-feira, 26 de agosto de 2008

0527) A definição do amor (26.11.2004)


(desenho de Tomi Ungerer)

Dizem que Jacques Lacan definiu assim o amor: “Amar é dar algo que não se tem a uma pessoa que não quer receber.” As definições de amor são tão subjetivas quanto preferências culinárias ou futebolísticas. Vai daí, proponho uma variante: “Amar é dar algo que a gente não sabia que tinha a uma pessoa que não sabia que precisava.” Porque se a gente prestar atenção vai perceber que o amor é assim: um enriquecimento emocional e espiritual para ambos os envolvidos, uma expansão do que eles tinham sido até então. Como se cada um descobrisse facetas de si mesmo que desconhecia, novas maneiras de ser, de reagir e de pensar.

Se não for assim, não adianta muito, não é mesmo? A tragédia dos grandes conquistadores, como Don Juan ou Casanova, é o fato de que eles são imunes a esse tipo de convivência, que exige em primeiríssimo lugar um enorme interesse pela outra pessoa. Casanova, ao “traçar” uma madame da corte atrás da outra, estava interessado apenas no ato e no fato, e para ele a mulher era um mero complemento. Colin Wilson, em Origins of the Sexual Impulse (1963) descreve argutamente Casanova e seus epígonos como indivíduos dotados de muita vitalidade e baixa auto-estima. As conquistas sucessivas servem-lhe como reposições momentâneas para esse amor próprio que lhes é eternamente deficitário. Existe, como observa Wilson, uma semelhança essencial entre o conquistador e o “serial killer”. É a reiteração daquele ato que lhe interessa, e a pessoa que dele participa é o que menos importa.

O amor, essa atitude de interesse inesgotável pela pessoa que está “do outro lado” é, aliás, a mesma relação recíproca que deve existe idealmente entre um escritor e o leitor. A relação literária é uma relação amorosa, sem sexo, sem corpo, mas impregnada de um profundo e inesgotável interesse pela outra pessoa. Eu sinto esse interesse pela pessoa de Jorge Luís Borges ou de Philip K. Dick, pela pessoa de Augusto dos Anjos ou de Agatha Christie. Tudo que esses indivíduos sentiram, pensaram, experimentaram e viveram me interessa. O que eu sinto por eles é amor, não o amor-desejo, amor-erótico, mas o amor-de-almas. Por razões misteriosas e inexplicáveis, eu me identifico com eles, por mais diferentes que possam ser uns dos outros.

Amar um autor, contudo, é muito fácil. Um autor é visibilíssimo, através de livros, entrevistas, biografias. Mais complicada é a relação inversa, o amor que um escritor sente pelo seu leitor. Como sentir amor por essa coisa abstrata e sem rosto? Muitos autores tentam escrever para um “leitor ideal” (ver “Cinqüenta anos falando sozinho”, 20 de outubro) que eles próprios constroem em sua mente. Muitas vezes, o ato de escrever envolve esse esforço de dedicar algo a alguém cuja presença só podemos imaginar. Escrever, nesses casos, é dar algo que a gente não sabe se vai ter ou não, a uma pessoa que a gente nem sequer sabe que existe.

0526) Gêneros literários (25.11.2004)



Dias atrás, comentei aqui (“O Modelo e o Produto”, 3 de novembro) o modo como a indústria cultural, além de fabricar livros em massa, fabrica também fórmulas em massa para produzir textos literários. Isso não foi uma invenção da indústria, foi uma invenção dos escritores. E é um mecanismo natural da criação artística. Se você for analisar os poemas religiosos dos sumérios e caldeus, vai ver a mesma coisa acontecendo. Um sacerdote com veleidades poéticas fazia um hino agradecendo aos deuses pela bênção da colheita, e o hino fazia o maior sucesso. Aí tempos depois outro sacerdote esperto pegava o mesmo modelo e fazia um hino agradecendo pela chuva. Surgiam aí os gêneros literários, obras que compartilham um certo conjunto de características, que se pode reconhecer de imediato, mas que trazem elementos novos: novas abordagens, sub-temas, variações de linguagem.

Quando os poetas concretistas de São Paulo (os irmãos Campos e Décio Pignatari) criaram no Brasil o movimento da Poesia Concreta, muita gente começou a fazer poemas seguindo os mesmos princípios: cancelamento quase total do verso discursivo, da estrofe e da rima tradicionais; exploração da visualidade das palavras, da sua disposição no branco da página; jogos com a sonoridade das palavras, e com sua aparência visual, etc. Toda vez que você cria obras de arte que pretendem quebrar um modelo já existente, você está criando um modelo novo. E outros artistas irão utilizar esse modelo para criar novos produtos. É o movimento natural da criação artística. Não interessa aqui discutir se o modelo é bom ou ruim, ou se os produtos são bons ou ruins, até porque esses conceitos são subjetivos. Mas esse processo de surgimento constante de Modelos e Produtos ocorre na poesia de vanguarda, no filme de faroeste, na pintura abstrata, na comédia teatral, na literatura de cordel, no rock, na música sacra orquestral, nas histórias em quadrinhos. Existe em todo canto.

Fala-se que os gêneros são típicos da literatura de massas (policial, terror, romance, espionagem, etc.), mas eles existem também na literatura erudita. Há por exemplo o Bildungsroman, o romance de formação, que narra a trajetória de um personagem da infância à maturidade, como em A Montanha Mágica de Thomas Mann e o Retrato do Artista Quando Jovem de Joyce. Eu diria que o “Triângulo Amoroso” constitui um gênero literário à parte, tal a solidez de sua estrutura básica, que permite, sem sofrer alterações, incontáveis variantes, de Dona Flor de Jorge Amado a Dom Casmurro de Machado. A “Saga Familiar”, história de uma família ao longo de décadas ou séculos, é um gênero literário à parte, não é mesmo? O mesmo pode-se dizer do “Romance Marítimo”, que vai de Moby Dick às obras de Joseph Conrad. A chamada literatura erudita não é mais imune aos modelos repetitivos (ou seja, aos gêneros) do que a literatura popular.

0525) Abaixo os gregos (24.11.2004)



Das leituras marxistas do meu tempo de estudante, não aproveitei nada das obras políticas, mas as leituras filosóficas me rendem assunto até hoje. Lembro-me dos manuais de Materialismo Dialético, o qual sempre achei muito mais consistente do que o Materialismo Histórico. A teoria marxista é uma beleza. Quem a estragou foi Lênin, com aquela mania de aplicá-la na prática.

Os autores dialéticos que eu lia aos 20 anos criticavam a filosofia aristotélica. Para Aristóteles, diziam eles, “A” é “A”, e “B” é “B” – ou, como diria Tim Maia, “uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa”. Para Aristóteles, “A” não pode ser ao mesmo tempo “não-A”. Ora, para a filosofia dialética, “A” pode ser “não-A”, sim senhor, por que não? Muitas coisas podem conter em si a sua negação, o seu contrário. Os seres (e mais que eles, os grupos sociais) estão muito mais próximos de entidades complexas e heterogêneas do que de entidades simples e homogêneas. Esta verdade me parece tão óbvia que me pergunto como é que a fórmula simplória de Aristóteles conseguiu sobreviver durante tantos milênios.

Os gregos são ainda o ponto de referência principal de nossa Filosofia, de nossa Ciência e de nossa Arte, o que me parece o maior dos equívocos. Não que eles fossem tapados, mas a sua percepção do mundo era limitadíssima. Vejam o caso de Ptolomeu e sua concepção do Universo (baseada em Aristóteles) tendo a Terra como centro. À primeira vista, correspondia ao mundo observado, pois é fácil notar que o sol, a lua e as estrelas giram todos em volta da Terra. O problema é que à medida que a observações iam se tornando mais detalhadas, os dados não batiam com a teoria. Mil e quatrocentos anos foram consumidos pelos astrônomos tentando adaptar os fatos à teoria de Ptolomeu, criando sub-teorias como a dos “epiciclos” e dos “deferentes”, etc. Aí um dia chegou Copérnico e disse: “Esquece os gregos.” No momento em que esqueceram os gregos e organizaram os dados de que dispunham, os astrônomos entenderam tudo.

Quer outro exemplo? Euclides, o pai da geometria, criou todo um edifício teórico baseado na demonstração de seus postulados. A geometria euclidiana era tida como algo tão sólido e tão cristalino quanto a aritmética dos números inteiros, algo que não foi questionado durante 2.200 anos. Aí no começo do século 19 apareceu um russo, Lobatchevsky, que questionou o Quinto Postulado, o das paralelas, e mostrou que a geometria de Euclides era apenas uma entre várias geometrias possíveis. Em vinte e dois séculos ninguém tinha percebido. Por que? Porque ninguém questionava os gregos.

Questionemos os gregos, meus amigos. Não necessariamente os naturais daquele simpático país que nos deu tantas coisas boas. Os "gregos" a que me refiro são os autores que ninguém discute, que são sempre tomados como ponto de partida. Na ciência e na arte não há verdades indiscutíveis. Quando uma coisa estiver grega demais, desconfiem.

0524) Cirurgia contra virose (23.11.2004)


(a guerra em Falluja)

A ofensiva norte-americana contra a cidade de Falluja, no Iraque, foi mais um desses episódios de Absurdo Organizado típicos desta guerra. O método do governo Bush para combater o terrorismo equivale a tratar uma virose através de cirurgia: pegar um bisturi e sair arrancando todos os tecidos onde haja suspeita de localização de vírus. O Iraque foi invadido em março de 2003, o fim da guerra foi oficialmente anunciado no mês de maio seguinte, e agora, mais de um ano depois, estão acontecendo batalhas que deixam no chinelo as da guerra propriamente dita.

Fallujah é a cidade onde alguns seguranças americanos foram mortos meses atrás, arrastados para fora do carro, pendurados numa ponte, ensopados de gasolina e incendiados, enquanto a multidão agitava bandeiras e batia em latas velhas (v. “Os postais do linchamento”, 7 de abril). É um perigoso reduto de partidários de Saddam Hussein. Um oficial americano anunciou, depois do linchamento: “Vamos conquistar os corações e mentes em Fallujah, livrando a cidade dos insurgentes.” E é exatamente isso que o exército americano fez. Entraram lá e botaram a cidade abaixo. Fallujah é chamada a “cidade das mesquitas”, porque lá existem mais de duzentas. Não sei se restou alguma, depois que o exército de Bush passou a britadeira em tudo.

Quem quiser saber um pouco mais sobre a cidade, pode ver em: http://en.wikipedia.org/wiki/Fallujah . Fallujah tem cerca de 350 mil habitantes, ou seja, é uma cidade “do tope” de Campina. Uma estatística divulgada no New York Times diz que a operação de invasão da cidade está oficialmente encerrada, restando agora as tarefas de “limpeza” (extermínio dos últimos focos de resistência) e ocupação. Para tomar esta cidade de 350 mil habitantes, onde havia cerca de 10 mil combatentes inimigos, os americanos tiveram 51 mortos, 425 feridos, mataram cerca de 1.200 combatentes inimigos e fizeram 1.025 prisioneiros. Ou seja: eles botaram Campina Grande abaixo, fizeram mais da metade da população ir embora, e dos 10 mil combatentes que havia na cidade, eles se livraram de apenas 22%.

Isto é o que o governo Bush chama de “uma operação militar bem sucedida”, assim como houve quem considerasse bem-sucedido o massacre do Carandiru, porque os presos tiveram mais baixas do que a polícia paulista. A guerra que os americanos travam contra os iraquianos é ainda mais desproporcional do que a que travaram com os vietnamtias 30 anos atrás. Para cada americano morto, morrem 20 inimigos (sem contar os civis), e isto é contabilizado como um sucesso. Mas os EUA não param de despejar dinheiro e consultores militares no Afeganistão (invadido no fim de 2001), e ainda não controlam o país, que voltou a ser dominado pelos “barões da papoula” (os traficantes da matéria prima para fabricação da heroína). Che Guevara lançou um dia um grito de guerra: “Precisamos criar 10, 100, mil Vietnams!” George Bush parece decidido a realizar o seu plano.

0523) A pior canção dos Beatles (21.11.2004)





Uma votação recente na Internet elegeu “Ob-La-Di, Ob-La-Da” como a pior canção gravada pelos Beatles. “Disconcordo”, como se diz por aí, mas é para isto mesmo que essas votações são feitas. 

O que me surpreende não é a escolha desta divertida e irrelevante canção pseudo-jamaicana. É que eu sempre achei que “Revolution 9” seria eternamente a escolha mais óbvia para esse título (embora, na minha opinião, seja uma excelente faixa). 

Por outro lado, acho que qualquer beatlemaníaco de bom-senso reconhecerá que os garotos gravaram uma porção de besteiras, no meio de várias dezenas de obras-primas. Que besteiras seriam essas?

A primeira que me vem sempre à cabeça é “Wild Honey Pie”, uma bobagem de McCartney com menos de um minuto (graças a Deus) que por motivos insondáveis mereceu ser uma das faixas do Álbum Branco. Segundo Ian MacDonald em Revolution in the Head (a melhor análise em livro das canções dos Beatles), foi uma brincadeira utilizando um recurso bolado por McCartney para a gravação de “Mother Nature´s Son”: a colocação da bateria no corredor do estúdio, para mudar a sonoridade. A música consiste apenas nas palavras “Honey Pie” esgoeladas ao fundo, com uma linha decrescente de guitarra, e... ah, chega.

Outra forte candidata é “Dig It”, aquela curtição que aparece em Let it Be: “Like the FBI... and the CIA... and the BBC... B. B. King…” São 50 segundos de “pura maluquice emaconhada”, como dizia um amigo meu. Sempre a escuto com prazer, porque me lembra uma época divertida de minha vida. Mas é o tipo da coisa que eu jamais colocaria num disco meu.

Aí chegamos a “You Know My Name (Look up the Number)”. Se você não é músico profissional, caro leitor, se nunca entrou num estúdio de gravação, e tem curiosidade de saber o que é que aqueles músicos tão talentosos fazem entre uma sessão de trabalho e outra, não precisa ir muito longe. Coloque o CD Let It Be e deleite-se com estes quatro minutos de pura bobagem. É o equivalente musical àquilo que os jogadores de futebol fazem no gramado antes do jogo começar: equilibrar a bola na nuca ou nas costas, fazer embaixadas, trocar passes de cabeça... 

O próprio Ian MacDonald, um crítico severo, diz que “o resultado, graças ao senso de humor espontâneo da banda, é bastante engraçado”.

Os Beatles têm numerosos rockzinhos banais (“Little Child”, “What You´re Doing”, “Thank You Girl”...) mas que não são piores do que os rockzinhos análogos que eram feitos na época. Em seus primeiros discos, os piores momentos eram do mesmo nível do que se fazia na época; os melhores momentos eram rockzinhos inovadores como “A Hard Day´s Night”, “I Wanna Hold Your Hand” ou “She Loves You”. 

Mas nos seus álbuns de fim de carreira, o caos econômico e emocional desse período os levou a chamar de canções um material de estúdio que somente um grau muito alto de egocentrismo e desorientação mental faria levar a público.