segunda-feira, 28 de julho de 2008

0474) Retorno imediato (25.9.2004)


Deu na TV há poucos dias. Um cara foi apanhado fazendo uma prova, se não me engano num concurso da Ordem dos Advogados do Brasil, com um ponto eletrônico no ouvido. Alguém de fora do prédio soprava para ele as respostas. Ao ser descoberto, o sujeito engoliu o ponto eletrônico! Até agora não sei o que aconteceu com ele, se fez uma cirurgia para extrair o troço, ou se esperou que a Natureza resolvesse um imprevisto dessas proporções. Para mim, bastaria este “tresloucado gesto” para provar que o sujeito não regula bem, mas tem mais. Interrogado pelas autoridades, ele confessou que tinha pago 15 mil reais pelo golpe, e que depois da prova pagaria mais quinze.

Hospício nele, né, pessoal? Eu posso encher laudas de sugestões sobre maneiras melhores de gastar 30 mil, em vez de engolindo engenhocas eletrônicas. Um exemplo: separar 5 mil para as despesas do mês, e passar seis meses estudando para a tal prova, em tempo integral (com folgas para ir à praia, namorar, tomar cerveja). Com uma vantagem adicional: depois de passar na prova o conhecimento adquirido continuaria intacto. Pelo plano do nosso trambiqueiro trapalhão, ele pagaria 30 mil pelo uso do “gadget” durante algumas horas, e depois de passar na prova retornaria à estaca zero, ou seja, continuaria analfabeto em ciências jurídicas (o que ele evidentemente é). Parece o personagem de Tom Cruise em De Olhos Fechados, achando que não ia ser flagrado como penetra numa festona como aquela.

Há duas lições neste episódio. Lição 1: os jovens de hoje não sabem pensar a longo prazo, estão sendo criados numa cultura da ação rápida e do retorno imediato. Estudar seis meses? Para quê, se eu posso armar um trambique que vai me dar o mesmo resultado e só vai me ocupar durante seis horas? O mundo é rápido, a vida é curta. Um cara de vinte e poucos anos não pode se dar o luxo de passar seis meses estudando. Quando eu tinha dezoito anos a moda era a tal da “leitura dinâmica” ou “leitura diagonal”, que possibilitava você ler um livro de 300 páginas em uma hora. Depois vieram os tais dos “cursos intensivos”, tipo o saudoso “Artigo 99”, em que você estudava um ano e cumpria os três anos do Segundo Grau. E assim por diante.

Eu chamo a isto a solução “Professor Pardal”. Professor Pardal tinha uma pílula para tudo: pílula para aprender chinês, pílula para jogar basquete, pílula para conquistar garotas. Para qualquer habilidade ou talento em que alguém estivesse interessado, havia uma pílula instantânea que fornecia exatamente aquilo. É o sonho dourado da cultura baseada na indústria, na publicidade e na competitividade. O sujeito não entende bulufas de Direito, mas logo aparece alguém que lhe oferece a Pílula Jurídica: você paga 30 mil, engole ela, e vira Rui Barbosa por uma manhã.

E tem a Lição 2: como diz uma antiga lei da Física Aplicada, um otário e seu dinheiro são forças que se repelem. Pense num jeito fácil de arrancar 30 mil dum camarada rico e burro!

0473) “Clube da Luta” (24.9.2004)



No filme Clube da Luta um jovem executivo (Edward Norton) vive como um zumbi, comprando roupas de griffe e mobília da moda, e investigando acidentes de automóvel para avaliar se vale a pena fazer um “recall” (tirar o carro do mercado). Ele freqüenta grupos de ajuda para pacientes de câncer somente para abraçar desconhecidos e chorar em seu ombro. Sua vida se resume a isso, até o dia em que ele encontra um sujeito meio maluco (Brad Pitt) e juntos os dois fundam um clube-da-luta, um lugar onde homens se reúnem para brigar de socos, quebrar a cara um do outro, e, assim, sentirem que são homens de verdade, e não apenas peões no jogo burocrático das grandes corporações. O filme é de uma improbabilidade generalizada: o roteiro é cheio de buracos, os maus-tratos físicos parecem não deixar fraturas nem cicatrizes, mas é um delírio talentoso. Incomoda, é questionável, mas vale a pena ver.

O tempo todo me lembrei um livro escrito por uma mulher. Em A Vida Íntima de uma Esquizofrênica – Operadores e Coisas (Imago, 1972), Barbara O´Brien conta a história arrepiante de sua própria crise esquizóide. Ela trabalhou numa corporação onde os funcionários eram capazes de qualquer sacanagem para obter uma promoção ou para prejudicar um colega. Quem já trabalhou em repartição pública ou nessas “empresas modernas e competitivas” de hoje sabe do que estou falando. Um dia (o livro é de 1960) ela acordou com três desconhecidos no seu quarto: um garoto, um homem idoso, e um ser sobrenatural. Os três se apresentaram como seus Operadores, ou seja, eram eles quem manipulavam a mente dela. Como ela estava com problemas, eles, a contragosto, decidiram tornar-se visíveis e manipulá-la diretamente. Desse dia em diante, as vozes dos Operadores não pararam mais de dar-lhe instruções.

Se nunca leu uma história de terror, meu camarada, leia esta, até porque não é ficção: os hospícios estão cheios de gente que vive nela. Não descreverei a vida de pesadelo que Barbara O´Brien viveu nos anos seguintes, nem a maneira espantosa como se auto-curou sem ninguém saber. O livro dela é um clássico. Mas observei que Clube da Luta tem uma estrutura parecida. Um sujeito vive no interior de uma empresa baseada na competição interna, na hierarquia, no cinismo, no consumismo, na violência psicológica gratuita. Para fugir dali, funda um grupo de marginais que se espancam mutuamente para se sentirem mais humanos. Logo-logo o clube vira uma entidade paramilitar de skinheads parecidíssima com a própria empresa onde o cara trabalhava. Predatória, egoísta, visando ao lucro, desprezando o cliente e o público em geral. A ideologia do “destruir para consumir” chega rapidinho ao “destruir por destruir”. O “Projeto Destruição” do filme é uma versão adolescente, esquizóide, tresandando a testosterona mal absorvida, do pesadelo yuppie dos EUA de hoje. Um país esquizofrênico e agressivo; só não sei se, como Barbara O´Brien, conseguirá se curar sozinho.

0472) A bênção da solidão (23.9.2004)




(ilustração de Banksy: http://www.banksy.co.uk/)

Li há alguns dias a entrevista de um escritor afegão, Atiq Rahimi, que mora em Paris. Perguntaram-lhe se ele gostaria de voltar a viver em seu país e ele respondeu: 

“Não, porque lá não existem cafés abertos durante a madrugada, onde você possa sentar sozinho, ficar tomando café e escrevendo. Em países assim, não se tem direito à solidão, porque a vida em família e a vida social nos obrigam a estar o tempo todo em contato com outras pessoas.”

Senti um imenso alívio lendo isto, porque às vezes penso que sou o único ser humano que consegue ficar sozinho sem cair em depressão. Aqui na Zona Sul do Rio, para dar só um exemplo, a maioria das pessoas só existe em grupos, só existe em público, só existe sob a massacrante luz dos holofotes da atenção alheia. 

Conheço pessoas incapazes de irem sozinhas a um restaurante, a um cinema. Só andam com uma “entourage”. Deixadas a sós, não saberiam o que fazer, porque não há ninguém olhando. A solidão, para elas, é uma maldição pior do que a morte, porque a morte tem o atenuante da inconsciência. Um morto não sabe que morreu, mas um camarada desses, sozinho, fica com medo de estar morto.

Vi muitos anos atrás um filme de guerra tcheco ou iugoslavo em que centenas de prisioneiros eram amontoados num imenso galpão, um vasto espaço único onde aqueles homens todos dormiam amontoados em camas ou colchões colocados um ao lado do outro. Era um vozerio constante, uma agitação interminável; imaginem um espaço do tamanho de um hangar, tão superlotado quanto um porão do Carandiru. 

Pois um dos prisioneiros não agüentou aquilo, foi até o ângulo formado por duas paredes, esticou um cordão entre dois pregos, e pendurou ali um pedaço de pano. Por trás desse arremedo de cortina ele se sentava todos os dias. Para que? Para delimitar um espaço onde ele pudesse ter a ilusão de estar só.

Eu não sou um desses misantropos a quem a companhia humana incomoda. Pelo contraríssimo! Meu ambiente preferido é mesa-de-bar. Mas existem momentos em que a gente precisa estar sozinho, sem gente por perto, sem TV, sem música tocando, sem nem sequer a voz miudinha de um livro a nos dizer alguma coisa. 

Sentar num terraço e olhar para um pedaço de muro. Ou caminhar de madrugada, com as mãos nos bolsos, pela cidade-fantasma adormecida. O que resta de nós, quando ninguém nos vê? Resta aquilo que somos depois de todas as fatorações, depois que eliminamos tudo que é reflexo da presença alheia em nós.

É por isso que o mundo da TV ou do show-business está cheio de gente que tem crise existencial e entra para a Seita do Lótus Iridescente, ou coisa parecida, só para ter uma desculpa (diante de si mesmos) para se trancarem num quarto meia hora por dia, sem falar com ninguém, sem ver TV, sem escutar o walkman. “Estou descobrindo meu verdadeiro Eu!”, bradam elas, felizes. Eu desejo bom Nirvana a todos, aqui da minha janela, olhando a hera avançar pelo muro.





0471) Corpo fechado (22.9.2004)



O filme de M. Nigh Shyamalan, Corpo Fechado (Unbreakable) mostra Bruce Willis no papel de David Dunn, um sujeito aparentemente invulnerável. Dunn é o único sobrevivente de um acidente de trem que mata centenas de pessoas. Ele não apenas sobrevive, mas escapa sem um arranhão sequer. Preocupado com isto, ele examina seu passado e percebe que jamais perdeu um só dia de trabalho por causa de doença; sua esposa não se lembra de tê-lo visto doente jamais, e o próprio namoro dos dois começou a partir de um acidente de carro em que se envolveram, e do qual David, pra variar, escapou ileso. Logo aparece um tal de Elijah Price (Samuel L. Jackson) com uma teoria mirabolante mas (é um filme) inevitável. David é um herói. Um sujeito superior, com poderes maiores do que os dos humanos normais, e sua missão na Terra é proteger os outros.

O filme tem desdobramentos que não caberia analisar nesta página, mas o tema do “corpo fechado” é mostrado aqui de maneira quase realista. O filho de David “compra” sem pestanejar a versão de que o pai é um herói, e uma das melhores cenas do filme é aquela em que o garoto aponta um revólver para o pai (a quem idolatra), disposto a enchê-lo de tiros e provar, assim, que ele é invulnerável. David nasce invulnerável, mas o “corpo fechado”, na maioria das culturas, é conseqüência de um ritual. Como não lembrar a cena de Deus e o Diabo na Terra do Sol em que o cangaceiro murmura uma prece que irá fechar seu corpo contra os inimigos: “Eu, José, com o sangue de Cristo serei batizado... eu, José, com o leite da Virgem Maria serei borrifado...”

Ter um corpo fechado de fora para dentro (inacessível às armas dos inimigos) tem às vezes como contrapartida ter o corpo fechado de dentro para fora, ou seja, um corpo que não pode ter contato vital com o mundo exterior. Em muitas culturas, o homem cujo corpo torna-se invulnerável é proibido de ter relações sexuais, ou, caso as tenha, não consegue gerar filhos. Em torno dele há uma espécie de película protetora que a vida e a morte não conseguem romper. O contato com o mundo sobrenatural exige muitas vezes o fechamento do corpo (daí o voto de celibato, tão comum entre as religiões). Profetas, pitonisas e clarividentes também podem ter seus poderes enfraquecidos ou anulados se se dedicarem ao sexo.

Há um curioso contraponto entre os papéis de Bruce Willis neste filme e em O Sexto Sentido, do mesmo diretor. Ali, Willis parece um homem comum, inadvertido do fato de que é um ser sobrenatural, diferente de todos os outros. É curioso também perceber que na série Duro de Matar Willis faz o protótipo do herói que, mesmo acabando o filme todo retalhado, machucado, queimado, é claramente invulnerável, porque sabemos que ali, sim, trata-se de um filme onde é proibido ao herói ser derrotado. Pode-se dizer que o filme de Shyamalan é uma tentativa de teorizar o Bruce Willis de Duro de Matar.