domingo, 13 de julho de 2008

0445) Diego Maradona (22.8.2004)



Vi Maradona na TV. Ele sempre foi gordinho, mas agora está estufado. Lembro de um provérbio cruel que já ouvi muitas vezes: “Jogador de futebol e rapariga só tem 15 anos de vida útil.” A pessoa tem esse período para fazer o que tiver de fazer, ganhar o que puder ganhar. Depois, vai ser técnico ou cafetina. O caso de Maradona me lembra também o fato de que a vida é cheia de yins e yangs, como dizia o Budista Tibetano. Forças opostas, que vivem da tensão recíproca, que se atraem e se repelem, e que podem ser destruídas tanto pela ausência quanto pela presença excessiva da outra.

Muita gente pensa que sucesso e fracasso são o contrário um do outro. Na verdade, sucesso e fracasso são as extremidades opostas de uma outra coisa: o controle sobre o próprio destino. Quando o indivíduo consegue manter esse controle, ele evita ser destruído pelo sucesso e pelo fracasso; pelo excesso e pela falta. Existem milhões de exemplos de indivíduos destruídos pelo fracasso, ou seja, pela incapacidade de seguir uma carreira, de arranjar um emprego, de se sustentar, de se alimentar. E existem exemplos mais raros (porém muito mais visíveis) de indivíduos destruídos pelo sucesso, pelo fato de terem perdido o controle sobre suas vidas justamente quanto tudo parecia estar indo bem até demais.

(Talvez seja melhor dizer, então, que existe um “sucesso-fracasso”, que implica na perda do controle, e um sucesso propriamente dito, que é quando o indivíduo consegue manter-se em equilíbrio com tudo de bom que lhe acontece. Sucesso-fracasso: a implosão precoce dos Beatles, Hendrix, Joplin. Sucesso: a continuidade profissional dos Rolling Stones, Bob Dylan.)

Maradona fêz no futebol, com uma perna só, o que Pelé fêz com duas. Foi um desses canhotos de gênio que o futebol nos apresenta com tanta freqüência. Na Copa de 86, fêz gol de mão, fêz gol de placa, e com dois lançamentos geniais deu a Valdano e Burruchaga os gols que deram o título à Argentina. E conheceu o lado mais tenebroso do sucesso: o dinheiro excessivo, a notoriedade asfixiante, a adulação generalizada, a manipulação política, os amigos de ocasião, os bajuladores, os parasitas, os fornecedores de drogas pesadas e de mulheres posudas. Não seria exagero comparar sua ascensão e queda com a de Michael Jackson: outro garoto de talento cuja ambição pôs em marcha um mecanismo tão poderoso que acabou por ultrapassá-lo, arrastá-lo e reduzi-lo a pó.

Comparar Maradona com Pelé? Prefiro compará-lo com Garrincha. Dentro do gramado era um Deus; quando saía, mergulhava no caos. Ficava cercado de aproveitadores, de maus conselheiros, e até mesmo de gente bem intencionada que queria apenas pedir um favor ou desfrutar de sua proximidade. Dizer que foi destruído pela droga é uma verdade incompleta. O vício foi apenas o ingrediente mais cruel de uma receita que já teria sido cruel sem ele.

0444) Os robôs de Asimov (21.8.2004)



Já li uns quinze livros de Isaac Asimov, traduzi dois, e se contar a quantidade de artigos científicos dele que já li em revistas dá mais uma meia-dúzia de volumes. O filme Eu, Robô de Alex Prohyas, atualmente em cartaz, tem muitas qualidades e muitos defeitos, mas pouca coisa nele tem a ver com a obra literária que o inspirou. É um mau filme? Não propriamente, se considerarmos que tem coisa muito pior passando por aí. É, no entanto, um filme caro, e como todo filme norte-americano caro é um filme que não arrisca nada. Tem que ter o pacote habitual: efeitos especiais, perseguições de automóveis (se não tiver isso, não é filme-de-ação americano), brigas espantosamente ruidosas, e uma trilha sonora que nos agarra pelos cabelos e esfrega em nossa cara a emoção que devemos sentir.

Tem que ter um roteiro com um crime misterioso cuja solução nunca fica muito bem explicada porque a explicação se concentra em meio minuto de diálogo, nas cenas finais, entre uma briga e outra. Tem que ter um suspense com um personagem pendurado sobre um abismo, esperneando. Tem que ter outro suspense com um objeto que precisa ser levado de um lugar para outro e chegar lá no segundo exato, ou tudo vai dar errado (e sempre chega, no derradeiro instante).

O que me leva a imaginar que esses filmes são feitos para serem visto por um tipo muito especial de robôs: os espectadores de filmes norte-americanos de ação. Esses indivíduos foram educados vendo tais filmes, e voltam ao cinema, repetidas vezes, para verem filmes diferentes que fazem coisas semelhantes. A mesma perseguição, milhares de vezes repetidas. O mesmo suspense, milhares de vezes esticado até o máximo. A mesma briga, milhares de vezes coreografada e treinada por profissionais que não fazem outra coisa, e pressionam roteiristas a incluírem pelo menos uma cena de briga, para que eles possam ganhar decentemente o leite das crianças.

O problema com o cinema industrial não é propriamente o tipo de filme que produz – eu gosto desses filmes, juro, me divirto bastante. Acho-os equivalentes à “pulp fiction” dos anos 1930-40, com aquelas histórias de aventuras mirabolantes, de peripécias improváveis, de monstros e vilões inverossímeis. (Aqui no Rio já está passando o trailer de Alien versus Predador, que vem logo depois de Jason contra Freddy Kruger. Coalizões desse tipo são o último prego no caixão de um gênero.) O problema com essas coisas são as centenas de milhões de dólares em jogo a cada filme. Para não terem prejuízo eles precisam nos massacrar com uma publicidade maciça, uma distribuição predatória, contratos leoninos de exibição, jabás indescritíveis para a imprensa. O problema não é serem filmes bobos, porque a “pulp fiction” também era feita de histórias bobas. Serem bobos é o lado simpático deles. O problema é serem caros, ambiciosos, e acima de tudo são reiterativos: um gênero que a cada ano que passa vai se tornando a pornografia-de-si-mesmo.

0443) No Olimpo da arrogância (20.8.2004)



Escrevo estas linhas na terça-feira passada, dia 17, e os Jogos de Atenas já mostraram algumas cenas memoráveis. O Brasil já ganhou dois bronzes no judô, e no vôlei travou uma batalha memorável com a Itália (33 x 31 no “tie-break”). Vi a pernambucana Joana Maranhão arrasando na piscina, vi Guga sofrendo na quadra, vi nosso futebol feminino matando de inveja o masculino, vi o basquete de Porto Rico derrotar o Dream Team americano.

O que me traz ao assunto principal: a arrogância dos americanos. Já comentei nesta coluna que poucas pessoas são tão americanizadas quanto eu, mas é duro agüentar o marketing, a pose, a marra, o desprezo-pelo-mundo que passa nas atitudes de muitos atletas dos EUA. Vai daí que ninguém torceu tanto quanto eu para que o truculento Michael Phelps não conseguisse ganhar as 8 medalhas de ouro que prometeu. (Até agora ganhou 2 e perdeu 2) O basquete já tomou sua sapecadazinha, e o futebol tem-com-que-me-pague daqui pro fim. E hoje de tarde, paradoxalmente, vi a derrota da única equipe americana que não me incomodaria de ver ganhar: a da ginástica feminina. Todas aquelas meninas, não importa o país, me parecem igualmente frágeis e fortes, intensamente físicas e misteriosamente etéreas. Ganharam o ouro as romenas. Menos mal.

Quando falo na arrogância, não é preconceito nacionalista. Uma das grandes qualidades do povo americano é a sensatez, a simplicidade, os pés-no-chão. É o dinheiro que está acabando com isso. Mas há quem mantenha os olhos abertos. Dan Wetzel, comentarista de esportes do Yahoo, pergunta: “Afinal, quem inventou essa história de Phelps ganhar 8 medalhas de ouro? Foi ele mesmo, num rompante de audácia juvenil, que pensou: ´Por que não sugerir o impossível´? Foi sua equipe de marketing no Octagon Group, ansiosa para ganhar a guerra da mídia? Foi a USA Swimming, desesperada por atenção, e vendo nisto uma bela chance? Foi a Speedo, cuja equipe de relações públicas faturou um milhão de dólares em publicidade gratuita ao oferecer um milhão a Phelps, se ele conseguisse?”

Vinte anos atrás, em plena Guerra Fria, o espírito olímpico transformou-se numa guerra particular entre comunistas e capitalistas, com boicotes, perseguições e acusações de parte a parte. Tivemos olimpíadas sucessivas sem os melhores atletas do mundo, só porque se realizavam “em território inimigo”. Depois que a URSS caiu de podre, quem tomou conta foi o espírito do marketing comercial, de badalação, de mercado onipotente, de vitória a qualquer custo. Sem um adversário específico à altura, os americanos assumiram uma postura imperial, de insuportável arrogância. Wetzel lembra o slogan da Nike para os Jogos de Sidney: “Você não ganha a prata. Você perde o ouro”. É essa a mentalidade esportiva que se quer passar para a garotada em volta das quadras, dos campos, das piscinas. A prata e o bronze são um símbolo de derrota, num mundo dominado por marqueteiros que nunca praticaram esporte.

0442) O aleph da Rua Brasil (19.8.2004)




“O Aleph” é um dos contos mais famosos de Jorge Luís Borges, e título de um de seus livros mais vendidos. É um dos contos mais dissecados e discutidos pela crítica no final do século 20. 

Embora tenha sido publicado em 1949, só veio a se tornar famoso da década de 1970 em diante, quando a ironia do Destino concedeu a Borges, já velho e cego, a glória com que sonhara na juventude. 

O narrador de “O Aleph” descobre, após a morte da mulher que amava (sem ser correspondido), que no porão da casa em que ela vivia, num bairro de Buenos Aires, existia um ponto luminoso no espaço no qual era possível contemplar todos os pontos do Universo. É o aleph, o objeto numinoso indicado pela letra com que o matemático George Cantor designava os conjuntos transfinitos (aqueles cujas partes são iguais ao Todo).

Em suas entrevistas, Borges costumava lembrar o jornalista espanhol que insistiu em fazer uma matéria sobre “a casa em Buenos Aires onde havia um pequeno disco resplandecente onde estava todo o Universo”. Borges explicou que se tratava de um conto fantástico, e que se um tal objeto existisse toda a nossa ciência estaria de pernas para o ar. 

O jornalista insistia: “Mas o sr. citou até a rua onde ele está situado...” No conto de Borges, a casa da família de Beatriz Viterbo, sua amada inatingível, fica na Rua Garay, no bairro de Constitución.




Recentemente folheei o livro Borges à Contraluz, da escritora argentina Estela Canto (Ed. Iluminuras, 1991), a qual foi namorada de Borges durante um período crucial da vida do autor. É a ela que está dedicado o conto “O Aleph”, e alguns documentos que ela anexa ao seu texto lançam uma luz curiosa sobre a sua criação. 

Borges e Estela tinham o costume de fazer longas caminhadas a pé nas noites tranqüilas da Buenos Aires de 1940, e iam até o bairro Constitución e o Parque Lezama, que ao que parece (não conheço Buenos Aires) fica perto da Rua Brasil. 

Num bilhete de fevereiro de 1945, Borges escreveu para Estela: “Esta semana concluirei o rascunho da história que gostaria de te dedicar: a de um lugar (na rua Brasil) onde estão todos os lugares do mundo.” 

A própria Estela, em seu livro, comenta: “Os místicos contam experiências em que se transcende, por um momento, a carne. Em ´O Aleph´, nesse porão de uma casa da rua Brasil, o autor transcende a carne.” 

Borges teria mudado de idéia? A Rua Brasil teria mudado de nome e virado Rua Garay? É um detalhe curioso. Na entrevista em que cita o crédulo jornalista de Madri, Borges comenta: “Enfim, que dificuldade pode haver em se inventar uma rua e um número? Me lembro que escrevi Rua Garay como poderia ter escrito Rua Chile ou Rua México...” 

O bilhete de 1945, contudo, mostra que a primeira rua onde ele ambientou o conto era a Rua Brasil, que teria algum significado nostálgico na sua história pessoal com Estela Canto. 

Por um triz o Brasil não ficou famoso!




0441) O fantasma do Comunismo (18.8.2004)



Passei a vida cercado de comunistas à esquerda e de anti-comunistas à direita. E todos me diziam: “Eu não sei como é que um cara inteligente como você consegue andar na companhia daquele pessoal.” Aqui entre nós, eu considero essa façanha uma bela prova da minha inteligência, porque sempre consegui uma convivência equilibrada com todo mundo, sem ter que dar a qualquer um dos grupos a ilusão de que eu iria me tornar um sócio “de carteirinha”.

Existe uma diferença fundamental, no entanto. Quando a ditadura militar brasileira começou, eu tinha 13 anos. Quando acabou, eu tinha 34. Isto significa que passei os meus “anos formativos”, a transição da adolescência para a juventude, e desta para a maturidade, num regime anticomunista, cujas barbaridades faziam empalidecer as barbaridades semelhantes praticadas pelo Comunismo em outras regiões do mundo. Nunca simpatizei com Stálin, nem com Kruschev, nem com Brejnev, nem com Kossiguin, nem com Andropov, nem com nenhum desses outros golems fabricados pelo laboratório-de-frankenstein do Kremlin. Mas eu sabia que podia ser chamado de comunista pelo simples fato de andar na “companhia” de Maiakóvski, Eisenstein, Prokofiev, Górki... Era do lado deles que eu estava. (Só para esclarecer – nesse mesmo período eu estava ao lado de Jimi Hendrix, Bob Dylan e outros marginais do grupo adversário).

Condenar as idéias socialistas por causa dos “gulags” soviéticos, albaneses ou cubanos é o mesmo que condenar a religião católica por causa das torturas da Inquisição espanhola ou da pedofilia nas dioceses norte-americanas. Quanto mais idealista uma teoria, maior a desilusão dos que tentam praticá-la. Isto vale em especial para sistemas filosóficos que são concebidos por meia-dúzia de sujeitos cheios de boas intenções, e na hora H caem nas mãos de milhares de pessoas que só querem “se dar bem”.

No tempo em que eu era estudante, muita gente afirmava ser comunista por uma questão de dignidade pessoal, de vergonha na cara, porque não dizer isto significaria dizer: “Estou de acordo com tudo isto que está acontecendo: os seqüestros, a Censura, as prisões arbitrárias, as torturas, as mortes mal-explicadas, os desaparecimentos nunca esclarecidos, o fechamento de jornais e cineclubes, a proibição de livros e de discos.” Se todas estas coisas eram feitas em nome do anticomunismo, tinha que haver um mínimo de hombridade e de ética que nos empurrava para o Comunismo; assim como o oposto certamente ocorria em países onde em nome do Comunismo se praticavam as mesmas violências.

A Ética é o maior engodo da política. Todos temos a ilusão de que aderindo àquela atividade estaremos ajudando a transformar o mundo num lugar melhor e mais justo. Mas a História parece dar razão a uma frase que o finado Paulo Francis costumava citar: “O Comunismo apela para o que há de melhor na Humanidade, e por isto deu errado. O Capitalismo apela para o que ela tem de pior, e por isto deu certo.”