sábado, 14 de junho de 2008

0413) O zen, a foto, a poesia (16.7.2004)





(Blow-Up, de Michelangelo Antonioni)



Existe na cultura oriental uma valorização do Acaso, do Momento, que parece estar ausente não apenas da mentalidade racionalista do Ocidente, mas até mesmo do misticismo ocidental. 

Há dois exemplos que me parecem bem típicos. 

O primeiro é o I-Ching, o oráculo chinês onde moedas são jogadas ao acaso um certo número de vezes; pela combinação de caras e coroas forma-se um desenho de linhas inteiras ou partidas, que expressa o sentido mais profundo daquele momento. 

O segundo exemplo é o do jogo africano dos búzios, e para efeito da presente idéia peço que aceitem a cultura africana como cultura “oriental”, no sentido metafórico de “não-ocidental”, voltada mais para o pensamento mágico do que para o pensamento racionalista. 

A posição em que os búzios caem, quando jogados ao acaso, revela algo sobre a pessoa que faz a consulta. Parece que, em geral, são precisos vários arremessos sucessivos dos búzios para que o “desenho” vá se formando.

A arte da fotografia tem um pouco a ver com isto, porque envolve também a captação de um momento privilegiado. 

Folheando um álbum ou vendo uma exposição de fotos, vemos todo o tempo flagrantes que registram um instante único do tempo. Não me refiro aos flagrantes jornalísticos onde alguém consegue fotografar o choque de dois carros, o tiro disparado contra um presidente. Isto tem o seu valor, mas mais fascinante é o minúsculo evento, de importância apenas cotidiana, flagrado por uma câmara que coincidiu de estar justamente ali naquele lugar e naquele instante.

O reflexo de um out-door no vidro de um carro parado no sinal. Duas nuvens idênticas pousadas sobre duas montanhas contíguas. Pessoas que se cruzam numa rua movimentada formando, sem o saber, um padrão geométrico. Tudo isto são exemplos de fotos que não poderiam ter sido feitas minutos antes ou minutos depois (às vezes, alguns segundos apenas). 

Daí, talvez, o clique-clique incessante dos fotógrafos profissionais quando andam pelo mundo afora. Os instantes mágicos existem. Mas ninguém os veria se não fosse aquela câmara que conseguiu surpreendê-los no único momento possível. 

O próprio fotógrafo, muitas vezes, não tem plena consciência do que registra, e só depois, a ver a foto (como no filme Blow-up) percebe o que seus olhos não haviam percebido.

Mal comparando, é o que acontece com quem escreve poesia. É um ato tão intencional quanto o de fotografar, e é igualmente sujeito ao Acaso. 

Escrever poemas é em grande medida um jogo-de-búzios verbal, onde jogamos palavras ou idéias no papel, e passamos 2 ou 3 minutos a riscar, emendar, substituir, permutar, inverter... 

Cada tentativa nos aproxima de algo que não sabemos o que é, até que, por um desses milhões de milagres de que é feita a criação artística, tudo se encaixa, tudo se engata, e erguemos o olhar da página sabemos que fotografamos naquele momento uma frase que jamais nos ocorreria na véspera ou no dia seguinte.






0412) Parece que é rock (15.7.2004)


A televisão está a anunciar, todos os dias, programas especiais em comemoração aos 50 anos do rock. A data escolhida como nascimento é a da gravação de “That´s all right, Mama” por Elvis Presley, em 1954. Fico pensando se aqui no Brasil terá ocorrido uma comemoração semelhante em 1967 nos 50 anos do samba (“Pelo Telefone” é de 1917) ou em 1996 nos 50 anos do baião (a gravação de “Baião” pelos Quatro Ases e Um Coringa é de 1946, embora o “nascimento” possa ser transferido para 1947, com Luiz Gonzaga gravando “Asa Branca”).

Não pensem que vou discutir aqui se o rock é ou não é um canal para a invasão do imperialismo norte-americano. Se vocês acreditam nisso, ensopem este jornal com gasolina e toquem fogo, porque eu sou um dos contaminados. O rock já me conquistou. Sou portador do vírus roqueiro, e pior ainda, sou portador sintomático, porque já toquei em banda de rock (só que naquele tempo se chamava “conjunto de iê-iê-iê”), já compus uma porção de rocks, e uma guitarra bem tocada me produz o mesmo arrepio de prazer físico e de excitação mental que me vêm de um ponteado de viola nordestina ou da cadência suingada de uma boa roda-de-samba carioca. O rock me serve de inspiração, me serve como um poderoso catalisador de adrenalina. No momento em que escrevo estas linhas, por exemplo, estou ouvindo Madness of the West, um CD dos Allman Brothers que só parece com... com... o Santos de Pelé jogando. Não me ocorre outra comparação.

O jazz é a sutileza e a complexidade da música erudita brotando das mãos de músicos negros, que fizeram a síntese entre o piano europeu, a síncope rítmica e a aventura do improviso. O pop é o prolongamento norte-americano da canção popular européia, desde a opereta até a cançoneta de music-hall. O rock é a eletrificação das formas de música rural brotadas nos próprios EUA: primeiro, o blues dos negros do Mississipi; depois, as canções “country” dos vaqueiros do Oeste, a música “bluegrass” de raiz (com seus vertiginosos solos de banjo e de rabeca), a tradição de música “gospel” das igrejas batistas da população negra urbana.

O imperialismo econômico e cultural existe, sim. São as gravadoras, a imprensa especializada, as rádios e as televisões, que desembarcam em nossa escancarada América Latina para vender seus produtos. O imperialismo vende tudo, transforma tudo em produto. Vocês viram a parafernália de souvenirs que cercou o filme de Mel Gibson sobre a paixão de Cristo? Era pedaço de cruz, prego da cruz... Não, amigos, não condenem uma coisa só porque os vendilhões do Templo estão faturando. Olhem em torno: eles devem estar faturando com vocês também. O rock é o yin-yang da civilização americana, que, boa ou má, é a mais poderosa do nosso tempo, a nossa Roma Imperial. O rock é a pororoca do rural com o urbano, do negro com o branco, do primitivo com o tecnológico. Talvez não seja a melhor música que se faz em nosso século; mas é a mais parecida com ele.


0411) Uma idéia por dia (14.7.2004)




Algumas pessoas me perguntam se dá muito trabalho escrever uma coluna como esta todos os dias; perguntam se não falta assunto. Bem, comparado ao que eu já fiz no Diário da Borborema, esta coluna aqui é moleza. No “DB”, entre 1973 e 77, eu tinha que preencher uma coluna diária (e uma página inteira no domingo) falando somente de Cinema. Agora, eu falo do que bem entendo, e até de muitas coisas que não entendo muito bem.

Em todo caso, ajuda não falta. Uma ajuda prática, ou pelo menos um modelo inspiracional, me vem de um interessante saite: Uma Idéia por Dia – Onde as Idéias são Livres (http://www.idea-a-day.com/). O saite me parece britânico (é um dos problemas na Internet – você percorre um saite de cima a baixo, e ninguém informa em que país ele está situado), criado em agosto de 2000 por David Owen, e tem um conceito muito simples. Todos os dias, o saite propõe uma idéia de ordem prática, sugerida por um leitor. Os assinantes recebem esta idéia num email diário, e podem fazer com ela o que quiserem. As idéias não são registradas. O saite nos dá a possibilidade de receber uma idéia por dia, de sugerir nossas próprias idéias, de contactar o autor de uma determinada idéia, de consultar o arquivo de todas as idéias anteriores.

Hoje, por exemplo, é o Dia 1416, e a idéia proposta (por um leitor chamado “Hugh”) é: “Colocar caixinhas de esmolas junto aos aparelhos de raios-X dos aeroporto. Os passageiros poderão preferir deixar as moedas em seu próprio país do que levá-las consigo”. Eu já perdi exasperantes minutos diante do raio-X, procurando moedas em todos os bolsos da minha roupa, e de bom grado as deixaria para financiar uma causa nobre. Existe algum leitor, aí, que possa botar essa idéia em funcionamento?

O Dia 225 sugere que a polícia das cidades receba poderes para cercar, com cordões de isolamento, áreas de beleza natural (como um arbusto florido num parque) ou de interesse cultural (como um lenço deixado cair pela Rainha da Inglaterra). O Dia 386 sugere a criação de um rádio-despertador conectado às estações meteorológicas, e que possa tocar mais cedo ou mais tarde, de acordo com o tempo que estiver fazendo. O Dia 57 sugere a criação de uma mistura entre agência de namoros e escola de línguas, para marcar encontros entre pessoas de nacionalidades diferentes que tenham atração mútua e queiram aprender outra língua. O Dia 1403 sugere que as óticas façam fotos digitais dos clientes, que avaliarão o visual da nova armação com o auxílio das novas lentes.

Muitas idéias são despropositadas, outras são ingênuas, outras são tão úteis e tão óbvias que a gente se espanta de não ter pensado naquilo antes. Alguém, mais cedo ou mais tarde, vai fazer fortuna com uma idéia que um sujeito teve num momento de inspiração e jogou na Net, sem outro propósito senão o de servir à humanidade (e parecer mais esperto do que todo mundo).

0410) As mil mortes do “Pasquim” (13.7.2004)




Notícias na imprensa informam que “O Pasquim” acaba de morrer de novo. Fiquei um pouco triste, mas deixei passar. O “Pasquim” já acabou tantas vezes que acabei me convencendo de sua imortalidade. Cedo ou tarde ele brota de novo, no lugar onde menos se espera. A cada reencarnação o velho tablóide parece surgir mais diluído, mas não importa. O “Pasquim” é como aquele velho cinema de bairro que na adolescência nos exibiu desde os clássicos europeus até os nossos primeiros filmes pornô. Deixamos de frequentá-lo, mas se for preciso lutaremos até a morte para que ele continue funcionando.

Fica difícil explicar aos mais jovens a importância que teve o “Pasquim” na época em que apareceu, em 1969. Falta o mais importante: fazer entender o contexto histórico. O jornal surgiu na pior fase da censura do governo militar, uma situação difícil de descrever para quem tem menos de 30 anos. Como era em princípio um jornal dedicado a matérias “leves”, sobre cultura, e a textos de humor, surgiu e foi passando. Para quem, como eu, tinha 19 anos, era uma revelação. Foi lá que vi pela primeira vez quadrinhos de Don Martin, cartuns de Saul Steinberg, contos absurdistas do português Santos Fernando. Era possível ver, lado a lado, artigos de Sérgio Augusto sobre jazz e de Sérgio Cabral sobre samba. Líamos a página de Paulo Francis com análises políticas e logo em seguida a página dupla “Underground” onde Luiz Carlos Maciel falava de drogas alucinógenas, comunidades hippies, contracultura e Jimi Hendrix. Reinaldo Jardim escrevia ferozes versos satíricos em redondilha sob o pseudônimo de “Barrabás”, e Millor Fernandes contava suas “Fopos de Esábula” (“O Macorvo e o Caco”, etc.).

O pessoal se queixa às vezes de que eu sou (ou sôo) meio saudosista, de modo que vou pular de vez para o momento presente. O “Pasquim 21”, este que encerra agora sua trajetória, é um vestígio daquela época. Ele cumpriu a função de manter viva uma marca, e de agrupar essas figuras que minha geração aprendeu a admirar. O que precisamos, hoje, é de publicações alternativas que se oponham ao comercialismo e à futilidade com a mesma sem-cerimônia com que o “Pasquim” se opunha à censura e ao autoritarismo.

Os assuntos propostos pelo “Pasquim” de 1969 eram desconhecidos dos jovens daquele tempo, ou porque fossem proibidos pela ditadura militar, ou porque fossem algo que estava começando a surgir no mundo, ou porque eram assuntos (como a filosofia oriental) a que ninguém nunca tinha dado muita importância. Hoje, tudo isso foi absorvido pela indústria cultural. Rock, drogas, radicalismo político, misticismo, permissividade sexual... isso é o que sustenta, hoje, não a imprensa alternativa, mas as redes de TV e as agências de publicidade. Em algum lugar, contudo, um novo pasquim deve estar se preparando pra trazer à luz os assuntos proibidos de nossa época, para nos dar as informações que nem sabemos ainda estarem faltando em nossas vidas.

0409) Os filhos alheios (11.7.2004)



(Eddie Carmel com seus pais - foto de Diane Arbus)

Ver crescer um filho alheio é uma importante lição de vida; às vezes mais educativa do que ver crescerem os nossos. Porque a verdade é que a gente não vê os nossos filhos crescerem. Nossos filhos crescem como as plantas do nosso jardim ou da nossa varanda: ao ritmo de um micromilímetro por dia. Crescem furtivamente como a nossa barba, as nossas unhas, ou a nossa cintura. Estão sempre ali, fazendo barulho, sempre idênticos, e tão imprevisíveis que mesmo as mudanças mais radicais passam despercebidas, porque pensamos que é apenas uma veneta nova que está demorando a passar.

Já os filhos dos outros crescem como os espigões da construção civil. A gente passa um dia numa esquina e lá estão os operários de capacete cor-de-laranja, pipocando suas britadeiras de encontro ao solo, fincando fundações, carregando cimento. Passam-se alguns dias, ou pelo menos é esta a nossa sensação, e quando passamos de novo já tem gente dando polimento nas vidraças da cobertura. Mal nos recuperamos da surpresa e, na vez seguinte, estamos tocando na campainha para visitar um amigo nosso que está morando no vigésimo andar.

Nossos filhos crescem pelo lento processo de aposição de novas e imperceptíveis camadas de vida sobre as camadas anteriores. Só temos noção de que o tempo passou por dentro deles quando ocorre um desses saltos qualitativos que não têm retorno: o primeiro passo, a primeira palavra escrita, a primeira menstruação, a primeira saída-de-casa-a-sós. (Guardo para mim, que sou “gourmet” de detalhes, prazeres mais refinados, como a lembrança do primeiro uso do futuro do subjuntivo, o primeiro livro de Sherlock Holmes, etc.)

O filho alheio, pelo contrário, parece só crescer aos saltos. Num dia, é um bebê que a gente segura no braço para uma foto, na festinha de aniversário. No outro, já é um adolescente magricela, cheio de espinhas. Na vez seguinte é um grandalhão com cavanhaque hip-hop e uma namoradinha que não é de se jogar fora. Sempre que visito amigos meus depois de algum tempo tenho que refrear o irritante clichê de “Fulano cresceu, hem?...” Crianças não sentem prazer em ouvir isto; adolescentes odeiam.. E não quero fazer como uma tia minha, que sempre que me reencontrava (eu já com 40, 45 anos) dizia, assombrada: “Menino, como Braulio tá grande!”.

Filhos alheios crescem aos saltos, como os bairros onde só vamos de vez em quando, ou uma telenovela à qual retornamos depois de alguns meses. Garotos a quem ensinei acordes no violão vêm hoje me presentear seu primeiro CD, fazendo com que eu me sinta vagamente cúmplice (e com um tremendo complexo de inferioridade). Mas o mais danado é você voltar a uma cidade onde já morou, ir a uma festa num bar, ser apresentado a uma moça simpática, dançar com ela, ficar todo animado, e ao encostar no balcão para tomar uma cerveja ouvi-la dizer: “Que legal a gente estar aqui... Mamãe fala tão bem de você!” É, amigos, o tempo não para.

0408) A guerra sem bandeiras (10.7.2004)

(Chuck Norris)

Daqui a cem anos, esse negócio de “o país tal”, “a presidência da república”, as “fronteiras nacionais”, etc. terá terminado de escorrer pelo ralo. O capitalismo não tem nação, não reconhece nenhuma Constituição, ignora fronteiras, e envia seus exércitos para onde quer que exista o oxigênio que o mantém vivo: o Lucro. Está reservada a todos os governantes do mundo (sejam eles presidentes, reis, primeiros-ministros ou aiatolás) a dúbia função exercida pela Rainha da Inglaterra: a de reinar sem governar. O poder político vai se transformando, cada vez mais, numa espécie de encenação teatral destinada a distrair e agitar a população (“Quem será que vai ganhar? Lula ou Zé Serra? Bush ou Kerry?”) enquanto o verdadeiro poder circula de terno e pastinha pelos aeroportos, bancos e ministérios do mundo.

Um artigo recente de Bruce Sterling na revista Wired (julho) adverte: “Fomos obrigados a sofrer sob o terror sem pátria; pois agora se preparem para a guerra sem bandeiras.” Sterling está se referindo às numerosas (e cada vez maiores, e cada vez mais poderosas) empresas que fornecem segurança às companhias e aos grupos políticos que agem, por exemplo, no Iraque pós-Saddam. Aqueles quatro americanos que foram queimados, mutilados e pendurados numa ponte em Falujah trabalhavam para empresas de segurança; a imprensa informou que são profissionais ganhando entre 2 e 4 mil dólares por semana. Nada mau, mesmo correndo o risco de ser tratado como um judas-de-sábado-de-aleluia. Mas esses caras são todos metidos a Chuck Norris. Gostam de correr riscos.

As empresas de segurança não estão no Iraque para “assegurar uma transição pacífica do poder” ou para procurar Osama bin Laden: estão para garantir que o petróleo continue circulando nos numerosos dutos que o conduzem aos mercados mundiais. Sterling lembra o que ocorreu na década de 1990 em Serra Leoa, quando o governo recorreu a uma companhia de segurança (eufemismo para “exército de mercenários”) para livrar-se do rebeldes que ocupavam as minas de diamante, em troca de 40% dos lucros de exploração. Em pouco tempo a companhia, chamada Executive Outcomes, tinha se expandido para países como Angola, Quênia, Malawi, Moçambique, Sudão e Uganda. Tais companhias seguem uma ética de jagunços: proteger o patrão, passar por cima de quem se atravessar na frente, afugentar os indecisos e eliminar os descontentes.

O patrão, é claro, são as grandes companhias que foram com muita sede ao pote petrolífero de Saddam Hussein: a BDM International, a Blackwater, a Halliburton (ligada ao vice Dick Cheney), a Kellogg Brown and Root, a MPRI, a Vinelli e outras. Enquanto xiitas e sunitas se matam uns aos outros pelo simbolismo do poder político (ou por mera vingança entre clãs), e as TVs se preparam para o circo do julgamento de Saddam, os exércitos sem bandeira travam sua guerra pessoal em busca do que realmente interessa: o ouro negro.