terça-feira, 13 de maio de 2008

0392) Os almanaques de Julio Cortazar (22.6.2004)





Este ano de 2004 está sendo considerado um “ano Cortázar” para os admiradores do escritor argentino, que eu por mim considero um dos mais originais, mais profundos e mais divertidos de nossa época. 

Cortázar nasceu em 1914 e morreu em 1984, de modo que nós, seus leitores fiéis, estamos celebrando os 90 anos de seu nascimento e 20 de sua morte. 

Tem uma obra vasta, quase toda já traduzida no Brasil. 

Seus romances (O jogo da amarelinha, Os prêmios, O livro de Manuel, 62: modelo para armar) são em princípio realistas, cheios de personagens marcantes e pitorescos, e pontilhados por discussões políticas e filosóficas. 

Sua fama como escritor foi feita através de seus contos fantásticos, imaginativos, burilados numa linguagem rica e precisa, e reunidos em numerosos livros dos quais meus preferidos são Final do Jogo, Histórias de Cronópios e de Famas, As armas secretas, Bestiário e Todos os Fogos o Fogo (em todos os demais, contudo, há contos magníficos).

Uma parte importante da obra de Cortázar, no entanto, está nos livros que ele chamava carinhosamente de “meus almanaques”. São livros onde se misturam textos curtos (poemas, contos, pequenos ensaios, anedotas, frases soltas) e ilustrações (fotos, desenhos, reproduções de quadros ou esculturas, quadrinhos, cartuns, gravuras antigas, colagens). 

Estes livros apontam para o que, na minha opinião, poderá ser um gênero literário a mais no futuro, abrindo um território livre para uma combinação entre texto, imagem e design gráfico. 

Dos almanaques cortazarianos, acho que só saíram no Brasil Os autonautas da cosmopista, relato de uma viagem de carro que escritor fez com sua terceira mulher, Carol Dunlop, pelas estradas da França, cheio de fotos e curiosidades; e Prosa do Observatório, onde ele mistura fotos que fêz das ruínas de um observatório astronômico hindu e um texto densamente poético onde fala dos ciclos de morte e reprodução das criaturas vivas.

Os almanaques mais interessantes de Cortázar, porém, não foram publicados no Brasil. A volta ao dia em 80 mundos (um trocadilho com o romance do seu xará, Julio Verne) e Último Round são livros com brilhantes textos curtos, principalmente de análise da literatura e da arte em geral; boa parte destes textos saiu no Brasil no volume Valise de Cronópio (Ed. Objetiva), organizado por Haroldo de Campos e Davi Arrigucci Jr. 

O mais interessante nestes livros (afora o brilhantismo dos ensaios, principalmente aqueles sobre literatura e jazz) é a maneira sempre criativa como ilustrações que parecem não-ter-nada-a-ver dialogam criativamente com o texto, a tal ponto que quando reencontramos o artigo sem elas ele nos parece melancolicamente empobrecido. Cortázar era fã de cinema, de música e das artes plásticas; seu texto passeia de uma para outra com a fluidez de quem conseguiu atingir o canal subterrâneo em que todas as formas de pensamento criador estão em comunicação total.


[ Nota: "A Volta ao Dia em Oitenta Mundos" foi publicado no Brasil em 2008 pela Editora Civilização Brasileira (2 vols.) ]



0391) Os que perguntam, os que procuram (20.6.2004)



(desenho de Saul Steinberg)

Já se tornou um clichê no cinema, nos livros, na televisão. Um casal de turistas vai por uma cidade estranha, tendo nas mãos um mapa, e tentando achar a Praça ou a Rua Fulano de Tal. Entram numa rua, saem noutra, e nada de chegarem onde querem. 

A mulher puxa o braço do marido: “Zé, vamos perguntar.” E ele, carrancudo: “Não, não precisa, a gente está quase achando.” Ela, à beira das lágrimas: “Amor, vamos perguntar, não custa nada.” E ele: “Tá maluca? E meu amor próprio?” 

Nunca vi um cartum ou uma cena de filme que mostrasse o contrário disto, ou seja, o homem querendo perguntar e a mulher querendo achar por conta própria. É um desses clichês entranhados em nossa cultura, para nos fazer acreditar que os homens agem sempre da forma A e as mulheres automaticamente agem da forma B.

Para mim não é isto que acontece. Essa divisão da Humanidade em “homens” e “mulheres”, na minha opinião, só tem relevância quando se trata do que chamamos eufemisticamente de “os folguedos do amor”. 

No mais, as pessoas se dividem em dois tipos: as que acham a coisa mais simples pedir ajuda a alguém quando estão em dificuldade (e aí entram tanto homens quanto mulheres) e as que acham que a coisa mais natural é continuar tentando por conta própria até encontrar uma solução (idem idem).

Tudo isto pode depender de mais fatores do que conseguirei enumerar neste espaço. 

Certos casais tendem, instintivamente, a assumir polos opostos em qualquer situação; outros tendem a um rápido consenso. 

Pessoas que crêem estar em seu ambiente tendem a querer resolver tudo por conta própria, pois acham que é isto que se espera delas (uma parisiense, em Paris, tentará achar o endereço por si mesma, ainda que seu companheiro brasileiro implore para que peçam informações). 

Homens e mulheres de índole prática querem uma solução rápida para tudo, e não hesitam em perguntar. 

Homens e mulheres de índole mais contemplativa ou aventureira não se importam de bater pernas durante horas à procura de algo, pois às vezes o trajeto é mais interessante do que o ponto de chegada.

Vou logo avisando que pertenço ao segundo grupo, o grupo dos que não perguntam nem que a vaca tussa. Gosto de descobrir sozinho, a menos que esteja indo para o Pronto Socorro, ou para assistir um espetáculo, ocasiões em que de fato é preciso resolver o problema bem depressinha. Não sendo assim, nada feito. 

Já passei uma tarde inteira procurando uma catedral que por todos os indícios devia estar bem diante do meu nariz, e só depois entendi que estava na extremidade oposta da avenida. Não importa; não foi tempo perdido. No dia seguinte, quando precisei, já sabia a avenida de cor e salteado. 

E tudo é, também, uma questão de filosofia de vida. É como diz o Budista Tibetano: "Prestai atenção, irmãos: perguntando o Caminho a alguém, chega-se mais depressa. Procurando até achar, descobre-se o Caminho."







0390) A loteria da literatura (19.6.2004)



Conheço gente que fêz poupança quinze anos, até comprar uma casa com duas garagens, quintal, piscina e quatro quartos (duas suites). Conheço gente que trabalhou dezesseis horas por dia a partir dos 18 anos, e aos 30 tinha um apartamento de cobertura e dinheiro suficiente no Banco para viver de rendas até morrer de vodka ou de tédio. Conheço gente que todos os meses, chova ou faça sol, separa 10% do que ganha e investe em fundos de renda fixa. O que têm em comum essas pessoas? Eu diria que elas têm em comum o fato de que não acreditam em Loteria. Todas acreditam na lei do lento acúmulo de recursos, que faz o sujeito, um belo dia, parecer ter ficado rico de uma hora para outra.

Por outro lado, todos os dias milhões de brasileiros se enfileiram nas casas lotéricas para apostar na Mega-Sena, na Loto, na Loteca e em todas as variantes dessa curiosa religião randômica que faz uma população inteira apostar um centavo na esperança de ganhar um milhão. À primeira vista, essa sede de enriquecimento fácil não tem nada a ver com a rapaziada descrita mais acima – os que rezam na Bíblia do trabalho duro, e crêem no lento acumular de centavos até que o milhão se complete, décadas depois.

Vendo esses dois grupos tão diferentes eu percebo o quanto o trabalho literário (o trabalho artístico em geral) se parece com ambos. Um paradoxo danado, mas é verdade. O sujeito que escreve livros deposita todos os dias, na ranhura de algum porquinho-de-barro da opinião pública, seus centavozinhos de auto-investimento. O livro não vende nem metade da edição? A imprensa faz um silêncio sepulcral? Os amigos agradecem, fazem elogios vagos, e desconversam? E daí? O escritor parte para o próximo, ciente de que na maioria das vezes não é uma obra-prima isolada que faz a fama literária, e sim a lenta sedimentação de título após título, percutindo na memória do público e dos resenhadores. Muitas águas vão ter que rolar, mas aos poucos cresce uma estalactite de notoriedade cercando o nome do poeta que, bem ou mal, publicou vinte títulos em vinte e cinco anos. Não é uma Mega-Sena, concordo. Mas dá para o sujeito fruir uma fama simbólica à beira de uma piscinazinha metafórica.

Não é diferente do sujeito que quer ser Paulo Coelho ou J. K. Rowling. O livro não vendeu? O palpite não cravou uma dezena sequer? Não importa. Os milhões virão com o próximo. Cada vez que ele despacha um novo original pelo Sedex, é como se dissesse: “Desta vez fico rico.” Ele sabe que depois de dez retumbantes fracassos pode vir um sucesso mais retumbante ainda, conforme leu em dezenas de biografias dos-que-chegaram-lá. (É engraçado – ninguém escreve biografias dos que-não-chegam-lá.) Ele sabe que a Loteria da Literatura é a única em que o valor das apostas semanais vai se acumulando numa Caderneta de Poupança em nosso benefício, caso a sorte grande não chegue. E pra que coisa mais melhor?


0389) Um som estrangeiro (18.6.2004)



O CD novo de Caetano Veloso, A foreign sound, inaugurou uma nova polêmica na imprensa brasileira. Não vou discutir as qualidades do CD, porque não o escutei ainda. Aliás, ninguém discute se as canções são boas, se os arranjos são originais, se o cantor está cantando bem; discute-se o fato, que para muita gente é humilhante, de um cantor brasileiro gravar um disco só de canções norte-americanas. Neste aspecto, os críticos estão interpretando corretamente as intenções do artista, porque mais do que exibir seus dotes como cantor Caetano está querendo fazer uma afirmação ideológica, está declarando publicamente seu afeto, sua dívida e sua solidariedade à canção norte-americana.

Nada excepcional, para quem há poucos anos gravou Fina estampa, onde declarava seu afeto, etc. e tal, pela canção hispano-americana. E para quem, ao longo da carreira, não tem feito outra coisa senão homenagear, e apresentar aos brasileiros desinformados, a canção brasileira. Um dos talentos de Caetano como cantor é ser um grande ouvinte de rádio – uma categoria em extinção, substituída por “espectadores da MTV”. É difícil explicar, para os nascidos depois de 1970, a imensa democracia musical que imperava no rádio brasileiro até então. Ouvia-se música mexicana, francesa, italiana, espanhola. Boleros, canções de amor americanas, fandangos, guarânias, baladas. Aí veio o rock e passou-o-rodo nisso tudo – o que de certa forma explica a imensa rejeição que algumas pessoas sentem pela música dos EUA. Havia um pomar com mil árvores frutíferas. De repente, surgiu ali um canavial, uma monocultura devoradora. O que Caetano faz, para mim, é tentar recuperar o que há de bom na memória que temos da música americana, que sempre tocou em nossos rádios. Para mim, é um manifesto político e estético: existe Arte de boa qualidade em qualquer lugar, até mesmo no país que nos invadiu.

Há 30 anos, o país-invadido mais famoso do mundo não era o Iraque, era o Vietnã. O líder guerrilheiro do Vietnã, Ho Chi Minh, costumava afirmar que estava em guerra com as tropas norte-americanas, não com o povo norte-americano. “O povo dos Estados Unidos e o povo do Vietnã são irmãos, e são muito parecidos,” dizia ele; “querem existir em paz, trabalhar, criar suas famílias, viver a vida.” E dizia que seu guia ideológico era a Constituição dos EUA. Acho que mesmo hoje, num momento em que os EUA deixaram de vez de ser os defensores da democracia para ser a principal potência terrorista do mundo, é possível ver o quanto esse país é contraditório, heterogêneo. É possível rejeitar a invasão da indústria cultural norte-americana, do lixo cultural norte-americano, sem rejeitar a imensa contribuição positiva que a cultura norte-americana tem a dar. Os aliados da música brasileira são os músicos americanos, não as megacorporações. O problema não é importarmos canções, é importarmos relações de produção econômicas. Puxa vida, que pólvora que eu acabo de descobrir!