quarta-feira, 16 de abril de 2008

0377) O Teste de Turing da arte (4.6.2004)




(cartum de Chaval)

O matemático Alan Turing, um dos primeiros teóricos da Inteligência Artificial, propôs certa vez um teste para se decidir se uma máquina era “inteligente”. Turing afirmou que bastava fazer um diálogo: numa sala, um examinador, e noutra sala, a máquina examinada. O examinador enviaria as perguntas por escrito, e leria as respostas. Se ele não pudesse distinguir com segurança se aquilo era uma máquina ou uma pessoa, então não haveria nenhum motivo para dizer que a máquina não possuía inteligência. Uma máquina inteligente, portanto, seria uma que desse respostas plausíveis (respostas que soassem tipicamente humanas) a perguntas aleatórias, como “Quanto é 847.262.957.373 mais 363.869.773?” ou “Você gosta de que tipo de pizza?” ou “Capitu traiu Bentinho?” Note-se que a resposta não teria necessariamente que ser correta; bastaria que parecesse ter sido dada por um ser humano.

Esse tipo de teste é mais ou menos o que se coloca a qualquer pessoa diante de uma obra de arte, seja uma pintura, um filme, um poema. Quando perguntamos: “Isto é arte?” estamos perguntando, de certa forma, se existe uma inteligência por trás daquilo, se existe uma personalidade, uma vida humana, ou se aquilo é apenas um agregado competente de clichês, uma reciclagem de formas já existentes, algo que uma máquina bem programada faria sem dificuldade.

Surgem daí, imagino eu, todos aqueles trabalhos satíricos que questionam a arte moderna. Há brincadeiras famosas como a do marchand que prendeu um pincel ao rabo de um burro, enquanto este comia satisfeito, e exibiu o quadro resultante com o título “Por-de-sol no Adriático”. Há os “poemas escritos por computadores”, e assim por diante. Não me esqueço de uma página memorável do cartunista Carlos Estêvão em O Cruzeiro, satirizando os pintores modernos da escola de Jackson Pollock: o cara põe a tela no chão, joga areia, joga tinta, sapateia em cima, anda de bicicleta, espalha milho e galinhas sobre a tela, e no final expõe o resultado.

Essas brincadeiras todas parecem querer convencer-nos de que a Arte chegou a um ponto tal de despersonalização que pode ser produzida por um animal, por uma máquina, por um ritual caótico de interferências às cegas. Não existe um ser humano por trás daquilo, e mesmo quando existe, somos incapazes de percebê-lo como tal. É o problema de quem entra como jurado num concurso de contos onde as obras aparecem sob pseudônimo. Há coisas ali que parecem escritas por uma máquina: tudo certinho, tudo sintaticamente preciso, tudo obedecendo às convenções narrativas internacionais, tudo enquadradinho nas fórmulas da Modernidade... mas a gente não consegue enxergar aquilo como o resultado de uma pessoa pensando. Faltam esquinas, faltam surpresas, falta o ziguezague natural de uma mente verdadeira. O problema da literatura de hoje não são os computadores, são as máquinas de escrever. As máquinas humanas, incapazes de nos proporcionar sustos e revelações.





0376) Os avós do baião (3.6.2004)



("A MPB no Romance Brasileiro", de José Ramos Tinhorão)

Luiz Gonzaga inventou o baião como gênero musical próprio, mas talvez o registro mais antigo do termo, em sua forma antiga de “baiano”, seja o que José Ramos Tinhorão (A Música Popular no Romance Brasileiro, Editora 34, vol. I) localizou no romance Luizinha, de Araripe Júnior, folhetim de jornal de 1872, publicado em livro em 1878: “As violas temperaram-se; os cantores entoaram a louvação de costume ao dono e à dona da casa, e das unhas dos tocadores rompeu um baiano rasgado, capaz de fazer estremecer ao mais bisonho filósofo.”

“Baião”, no entanto, designa não apenas o toque usado nas violas como também as danças praticadas ao som desse toque, e as festas onde isso tudo acontecia. O caráter intercambiável destes termos (ver “O que é forró”, 24.4.2003) faz inclusive com que muitos achem que “baião” vem de “bailão”, um grande baile, grande festa.

O termo reaparece num livro que, curiosamente, foi escrito por volta de 1891 e só foi publicado em 1952: D. Guidinha do Poço, do cearense Oliveira Paiva. Tinhorão o considera “primoroso”, com linguagem “originalíssima”, e comenta: “a cena de um samba de matutos se revela de uma precisão e de um colorido poucas vezes alcançado na literatura brasileira”. Neste livro, o “baião” é descrito, segundo Tinhorão, “como à base de toques de viola e acompanhado do canto em desafio”. Tinhorão transcreve e comenta um longo trecho do livro em que um dos tocadores de viola queixa-se de que a festa está se diversificando, e deixando de ser cantoria: “Neste fordunço, a cantoria se perde quase toda!”

Me parece bem visível, lendo a literatura da época, que a cantoria a desafio e o popular “samba”, ou “batuque” eram naquele tempo coisas misturadas. Os desafios de viola eram muitas vezes intercalados com dança e percussão, com os violeiros adiantando-se para o meio da roda, lançando seus versos para os vivas e aplausos de todos, e recuando para que o batuque recrudescesse e os pares voltassem a dançar. Verso improvisado e batuque dançado se misturam e se alternam dentro de um mesmo folguedo, como aliás foi bem registrado em outros livros da época, notadamente Fatalidades de Dous Jovens, folhetim de 1856 escrito por Teixeira de Sousa, e O Seminarista de Bernardo Guimarães (1869).

Eu diria que foi desses “fordunços” que surgiram, e se separaram, a Cantoria de Viola como a entendemos hoje (espetáculo de versos improvisados ao som da viola, sem nenhum outro canto ou acompanhamento, sem percussão, sem dança) e os atuais forrós. Antes, era tudo misturado. Com o tempo, imagino eu, foram se despregando um do outro, porque havia quem preferisse dançar, e havia quem preferisse dar atenção concentrada ao desafio poético ds repentistas. Quando Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, após seu histórico encontro, decidiram compor canções reunindo a poética regional, a cadência das violas dos repentistas e a levada musical dos forrós à base de fole e percussão, estavam voltando a unir elementos há muitos anos separados.



0375) Os mundos de Colin Wilson (2.6.2004)



Por que há tanto preconceito contra os livros de auto-ajuda? Que mal há em se ler um livro para levantar o astral, encorpar o otimismo, acreditar que-a-vida-vale-a-pena? Sou um sujeito meio kafkeano, meio gótico, e tem uma duziazinha de autores a que sempre recorro quando preciso de motivação metafísica para continuar respirando. Um deles é Colin Wilson, que já publicou dezenas de livros, já traduzidos no Brasil. Alguém irá objetar que seus livros não são de auto-ajuda, mas este é o X da questão. Minha auto-ajuda é de alto nível, rapaziada. Autor de auto-ajuda pra mim tem que ser um filósofo existencialista que escreve romances de mistério e de ficção científica, pesquisa a paranormalidade, e acredita em magia sexual. Ou seja: Colin Wilson.

Seus romances de FC são mais-ou-menos (Parasitas da Mente, Vampiros do Espaço), mas seus romances policiais são excelentes (Ritual nas Trevas, O Matador, A Gaiola de Vidro); talvez os melhores estudos literários de serial-killers. Seus livros sobre ocultismo (O Oculto, Mysteries) são ótimos, e neles Wilson desenvolve uma de suas teorias principais: a de que o ser humano utiliza apenas uma pequena fração de seus poderes mentais, os quais podem ser desenvolvidos através de técnicas específicas. Os grandes artistas e os grandes místicos são pessoas que conseguem produzir em si mesmos, e sustentar, esses estados de exaltação espiritual em que tudo parece fazer sentido. Wilson chama a esse poder mental de “Faculdade X” (um nome pouco imaginativo, reconheço). Diz ele: “Parece nada haver que o homem não consiga fazer quando dirige a mente para o que pretende. Uma vez formada claramente a idéia do que ele deseja, ele parece insuperável. Seu problema nunca foi força de vontade, mas imaginação: saber para onde dirigir sua vontade”.

Wilson ficou famoso muito jovem, ao publicar seu livro fundamental, O Outsider (1956). O outsider é o indivíduo talentoso mas desajustado, possuído por um impulso imperioso de realizar algo, dotado de uma visão privilegiada, mas que entra em choque com sociedades conservadoras ou repressivas. Os outsiders podem virar grandes artistas à beira da loucura (Dostoiévski, Nijinski, Van Gogh), líderes políticos ou espirituais (Lawrence da Arábia, Gurdjieff), visionários (William Blake) e também podem tornar-se criminosos.

Por que os livros desse cara me servem de auto-ajuda? Acho que tudo é uma questão de credibilidade. Acredito em Colin Wilson mais do que em Nietzsche, Aristóteles, Karl Marx, Paulo Coelho, Khalil Gibran. Acho que é porque os gostos dele são parecidos com os meus. É um cara que se interessa pelo Abominável Homem das Neves e pelos crimes de Jack o Estripador; que leu Van Vogt e Lovecraft, além de Sartre e Kafka. Falamos a mesma língua. Se ele acredita na Faculdade X, e já escreveu 100 livros a respeito, por que não posso eu acreditar, e escrever outros tantos? Mãos à obra. Estão vendo como funciona?

0374) Os ancestrais da Cantoria (1.6.2004)





(Severino Feitosa e Santino Luís. Detalhe de foto de Roberto Coura)

Luiz Gonzaga criou o baião adaptando a batida dos cantadores de viola, nos “baiões” (o termo já era usado pelos cantadores antes mesmo de Gonzaga) que eles executam ao acompanhar seus improvisos. É aquele “pondém-pondém” característico que abre as sessões de improviso, fazendo intróitos que geralmente duram alguns minutos, durante os quais, ao som das violas em plena atividade, o burburinho vai decrescendo, as conversas paralelas vão se extinguindo, o silêncio vai aos poucos se impondo na platéia, até que no recinto nada mais se ouve senão o rasqueio cadenciado e o dedilhar das violas, num ritmo hipnótico que ajuda a “baixar o santo” da inspiração e liga em toda potência as turbinas da poesia.

Em seu indispensável estudo A Música Popular no Romance Brasileiro (Editora 34, 3 volumes), José Ramos Tinhorão pesquisa como nossa literatura registrou manifestações musicais em diversas regiões do país. A literatura brasileira sempre teve um veio realista, naturalista, descritivo dos costumes. Isto nem sempre produz boa literatura, mas acaba resultando em preciosos documentos de época, em registros de comportamento, linguagem, cultura.

O que era o Brasil musical no século 19? Era, a julgar por numerosos exemplos de nossa literatura, um país onde fervilhavam folguedos onde se tocavam ritmos variados. Tinhorão cita numerosos testemunhos em que aparecem, como ritmos populares mais típicos, o lundu, o fado e o batuque. Ao mesmo tempo, nos salões mais chiques (de acordo com J. M. Velho da Silva, em Gabriela, 1875) dançava-se o “cotilhão” ao som da rabeca, além de outros ritmos: “O ril, o minuete afandangado, o minuete da corte, a gavota, o solo inglês, o lundu de ´mon roi´ e as valsas figuradas; faziam o subsídio e eram o repertório daquele opulento arquivo coreográfico.”

As festas brasileiras daquele tempo eram uma pororoca entre a cultura das salas, que se queria européia, e a cultura das ruas, que não tinha recurso senão ser mestiça e local. Era no meio desta última que brotava a figura do “cantor e tocador de viola”, que na época recebia o curioso nome (usado por numerosos autores) de “capadócio”, talvez devido à vida ociosa que levava. Assim o descreve J. M. Velho da Silva: “Tocava mais ou menos perfeitamente viola, guitarra e bandolim, era magistral no lundu, no fado, a que chamamos rasgado e nas cantigas correspondentes cantava ao desafio, improvisava e tinha agudezas de espírito e ditos repentinos e de tanto chiste e aplicação que faziam abismar”. Vê-se que o capadócio típico tocava diferentes instrumentos e dava-se a vários tipos de música. Os versos improvisados eram apenas uma faixa do seu repertório. O capadócio, ademais, é um personagem típico das cidades. Gabriela é uma “crônica dos tempos coloniais” ambientada no Rio de Janeiro. Não aborda o cantador nordestino, mas mostra que a vida urbana carioca teve ancestrais desses cantadores, que no entanto não formaram descendência.




0373) Essa palavra saudade (30.5.2004)




(Desenho de Tomi Ungerer)

Dizem ser uma palavra que só existe na língua portuguesa, e, de fato, as palavras próximas que encontramos em outras línguas sempre parecem estar com algo faltando. 

Em inglês temos, só para dar um exemplo, “homesickness” que é saudade, mas uma saudade específica, a saudade de casa ou da terra natal, algo parecido com o “banzo” dos africanos trazidos nos navios negreiros. 

O francês “souvenir” não é saudade, é recordação, e de substantivo abstrato degenerou em substantivo concreto: virou o nome das famosas “lembrancinhas” que compramos nas viagens para dar de presente aos amigos. 

“Nostalgia”, palavra presente em várias línguas, tem um certo parentesco, mas não se aplica, por exemplo, ao que se sente por uma pessoa específica.

Dizem os lexicógrafos que “saudade” é sinônimo de “solidão”, através da forma intermediária “soledade” (há um bom verbete a respeito no “Dictionnaire International de Termes Littéraires”, em: http://www.ditl.info/index.php). 

Afirma-se também que o termo “saúde” (=saúde da alma) também entrou na mistura, o que explicaria a pronúncia proparoxítona “sa-Ú-da-de”, em voga até séculos relativamente recentes.

Meu dicionário de português-francês (ainda é aquele bem baratinho, do velho Fename) assim define saudade: “Desejo ardente de um bem do qual se está privado; pesar devido a uma ausência, doce recordação”. Uma definição que aborda a palavra de diferentes ângulos, todos eles corretos, mas, mais uma vez, o que temos é uma descrição do sentimento, e não uma palavra equivalente. 

Dei agora uma olhada no OneLook, o melhor dicionário de inglês da Internet (http://www.onelook.com/) que nos dá instantaneamente links para todos os principais dicionários da língua. Haveria “saudade”? Ele me jogou para uma página denominada “A Palavra Inútil do Dia”, com termos obscuros ou estrangeirismos. “Saudade” é definida como anseio ou desejo ardente (“yearning or longing”), “mas mais do que isto”.

O saite da “Britannica” fornece: “Anseio, com conotações de melancolia e de pensativa solidão, e uma atmosfera de uma reverência quase mística pela Natureza que permeia a poesia lírica do Brasil e de Portugal.” Novamente uma descrição, não um equivalente. 

Parece que “saudade” é um pequeno triunfo de nosso idioma, uma holo-palavra onde conseguimos comprimir uma quantidade imensa de significado.

Tenho duas definições favoritas. Uma delas é da escritora americana de origem portuguesa Katherine Vaz, em seu romance “Saudade”: 

"Saudade: um anseio tão intenso por pessoas ausentes, ou por lugares ou épocas que se foram, que essa ausência torna-se a presença mais profunda na vida de alguém -- mais do que um sentimento, uma maneira de ser." 

E a outra é a famosa sextilha, atribuída a Pinto do Monteiro: 

Esta palavra saudade 
conheço deste criança. 
Saudade de amor ausente 
não é saudade, é lembrança; 
saudade só é saudade 
quando morre a esperança.


0372) Os narco-corridos (29.5.2004)



Os “corridos” são um tipo de poesia popular mexicana, cultivado largamente desde o século 19; uma poesia narrativa, feita em estrofes de formato fixo, narrando fatos históricos, ou episódios jornalísticos do presente. Existe, por exemplo, um imenso repositório de corridos contando episódios da Revolução Mexicana. Seria o equivalente mexicano aos nossos folhetos de cordel, se bem que com textos mais curtos, de tamanho próximo a uma letra normal de canção. Além disso, o corrido é um poema cantado que às vezes é impresso, enquanto o cordel é um poema impresso que às vezes é cantado. Musicalmente, os corridos são uma mistura de valsa e polca, acompanhada por violões, sanfonas ou por naipes de metais.

O corrido vem passando por uma mutação curiosa nas últimas décadas. Assim como cresceu no cordel o ciclo do cangaço, celebrando o feito dos bandidos sertanejos, o corrido mexicano celebra hoje os feitos dos traficantes de drogas. Coisa semelhante ocorre nas favelas cariocas, onde proliferam os CDs de rap e funk com letras que glorificam a droga, elogiam a bravura dos bandidos, e zombam da polícia. No México, chama-se a esse tipo de canção “narco-corridos”. Los Tigres del Norte são uma banda considerada os Rolling Stones do narco-corrido: vendem milhões de discos, e seus shows, desde a década de 70, chegam a atrair 100 mil pessoas. Compositores importantes são Paulino Vargas (que tocou na banda Los Broncos de Reynosa), Chalino Sánchez (que já trocou tiros com a platéia durante um show, e foi assassinado em Sinaloa), e Mario Quinteros, líder da banda Los Tucanes de Tijuana.

O típico corrido é cantado em quadras ou sextilhas semelhantes às do nosso cordel: “Les cantaré este corrido / a dos hombres que mataron / sin tenerles compasión / vilmente los torturaron / y ya muertos con un carro / por encima les pasaron” (“El crimen de Culiacán”, de José Ignacio Hernández). Algumas histórias são engraçadas, como “Las Monjitas”, sobre duas traficantes que se disfarçam de freiras. O policial examina o leite-em-pó que elas dizem estar levando para os órfãos, e graceja: “Milagre, irmãs!... O leite virou cocaína!” Então: “Una dijo: me llamo Sor Juana / la otra dijo, me llamo Sorpresa! / y se alzaron el hábito a un tiempo / y sacaron unas metralletas / y mataron a los federales / y se fueron en su camioneta.” (“Las Monjitas”, de Francisco Quintero).

Não direi que os antigos cangaceiros e os atuais traficantes de drogas sejam a mesma coisa, mas não importa quem é o bandido, por que motivo se bate, ou que grupo social representa – sempre haverá algum poeta para celebrar seus feitos. Vai rolar muita água por baixo da ponte (e muito sangue por cima do asfalto) até que a crítica literária reconheça que uma coisa assim também é poesia; e que a crítica musical reconheça que isso também é música popular. Paciência, poetas do povo. Se até François Villon foi reabilitado, quem sabe um dia os narco-corridistas terão uma chance.