terça-feira, 1 de abril de 2008

0350) Sidney Miller (4.5.2004)



Foi um dos maiores compositores cariocas dos anos 1960. Hoje seu nome só é conhecido dos cariocas porque foi dado à Sala Funarte Sidney Miller, um teatro por onde já passou muita coisa boa na MPB, pertinho da Cinelândia. Foi roteirista e produtor de shows, fêz trilhas sonoras para o cinema e o teatro, mas ainda é lembrado por um pequeno grupo de fãs pelas belas canções distribuídas nos três LPs que lançou em vida. A extraordinária fluência e simplicidade poética de seus versos fêz com que mais de um crítico o colocasse ao lado de Chico Buarque no grupo dos compositores que estavam renovando a arte da letra-de-música no Brasil.

Sua música mais conhecida é “O Circo”: “Vai vai vai, começar a brincadeira... Tem charanga tocando a noite inteira... Vem vem vem ver o circo de verdade... Tem tem tem brincadeira e qualidade.” Foi uma das muitas canções em que Miller explorou o universo temático das cantigas infantis, cujos refrões ele utilizava como tema a ser desenvolvido em música e versos. O resultado disto foram canções de notável beleza poética e delicadeza, como “Marré de Cy”, “Menina da Agulha”, “Passa passa gavião”. Além disto, Miller também explorou o universo do samba e do choro, com canções de bela melodia e letra impecavelmente cadenciada, como “Botequim no. 1”, “Chorinho do Retrato”, “Meu violão” e “Quem dera” (“Mas canta, que toda verdade do mundo / tem sempre um poeta no fundo / meu canto é maior que a razão”).

Duas canções, no entanto, são para mim duas obras-primas, daquelas de arrebentar parâmetros. Uma é a amarga balada urbana “Pois é, pra quê”, uma melodia enganosamente bela e nostálgica, acompanhada por um violão e um assobio, e revestida por versos como: “A fome, a doença, o esporte, a gincana / a praia compensa o trabalho, a semana / o chope, o cinema, o amor que atenua / o tiro no peito e o sangue na rua / a fome, a doença, nem sei mais por quê / que noite, que lua, meu bem... pra quê?” Esta mescla de paisagem urbana, violência, doçura, perplexidade existencial, era típica do Tropicalismo (“Panis et Circensis”, “Eles”, “Ele falava nisso todo dia”), um movimento a que Miller nunca pertenceu, mas ao qual respondeu com canções deste nível.

Outra canção notável é “A Estrada e o Violeiro”, um épico trovadoresco que ganhou o prêmio de Melhor Letra num dos festivais da TV-Record, defendida por Miller e Nara Leão: “— Sou violeiro caminhando só, por esta estrada caminhando só... – Sou uma estrada procurando só, levar o povo pra cidade só...” O diálogo entre a estrada e o cantador-de-viola que caminha mundo afora tem versos primorosos, e é uma das grandes obras da MPB dessa época onde o repentista nordestino foi usado como símbolo do poeta errante, livre, disponível (outros exemplos são “O Cantador” de Dori Caymmi e Nelson Motta, e “Ponteio” de Edu Lobo e Capinam). Ibérico, carioca, nordestino, Sidney Miller morreu moço, em 1980, e deixou uma obra ainda hoje jovem.

0349) Jovem para sempre (2.5.2004)




Uma canção emblemática da minha geração era “Forever Young”, de Bob Dylan (do álbum Planet Waves, 1974). Quem não se deixaria seduzir por uma canção intitulada “Jovem para sempre”? Era tudo que a gente queria. Aliás, não só nós, mas também aqueles alquimistas medievais e conquistadores ibéricos que procuravam o elixir ou a fonte da Eterna Juventude. 

Mal sabíamos nós que estávamos vivendo as décadas iniciais de um processo que Joseph Epstein disseca sem pena num artigo no Weekly Standard intitulado “The Perpetual Adolescent”. Ele lembra que antigamente a vida tinha a estrutura de uma peça aristotélica: começo, meio e fim. Cada uma dessas partes tinha prós e contras, mas a parte do meio, a vida adulta, era a parte mais séria, onde as coisas mais importantes aconteciam. A juventude era um estágio.

Hoje, no entanto, a juventude não é vista apenas como a parte bonita da vida: é um objetivo, uma condição que a ciência, a moda e a indústria farmacêutica procuram tornar permanente. 

Cinema, música, a cultura de massas em geral, tudo pressiona o indivíduo a fazer o possível para não se despregar dessa época em que o indivíduo conquista a liberdade para consumir o que quiser: bebidas, cigarros, automóveis, revistas, CDs, jeans, camisas, sexo, drogas, rock-and-roll, tudo que o Mercado oferece. 

Por outro lado, é a fase da vida em que a energia, a ambição e a audácia são considerados valores absolutos. Epstein cita um empregado da Enron que, após a falência catastrófica da empresa, comentou: “O problema é que ali não tinha ninguém que fosse adulto”.

A publicidade nos faz crer que podemos ser sempre jovens; e mais, que devemos, e que queremos ser sempre jovens. A juventude é definida nos seus aspectos cosméticos: rostos sem rugas, corpos musculosos, roupas da moda, energia para praticar esportes e consumir drogas. 

Voltamos, curiosamente, ao mundo dos alquimistas medievais e suas poções mágicas. Quer ser eternamente jovem? Beba isto aqui. Vista isto aqui. Use isto aqui.

A canção de Dylan, curiosamente, dizia: 

Que Deus te abençoe e te ampare sempre. Que teus desejos se realizem, e que você possa fazer aos outros o que eles lhe fazem. Que você construa uma escada para as estrelas, e possa subir cada degrau. Que você cresça para ser justo, para ser verdadeiro. Que você sempre veja as luzes e perceba a verdade à sua volta. Que você tenha coragem, e saiba manter-se firme e forte. Que suas mãos estejam sempre ocupadas, e seus pés sejam sempre ágeis. Que você tenha alicerces sólidos quando os ventos da mudança soprarem. Que o seu coração seja sempre alegre, e sua canção possa ser sempre cantada... e que você seja jovem para sempre. 

Somente hoje (será tarde demais?) eu percebo que o que Dylan estava nos desejando era que amadurecêssemos sem medo, ficássemos adultos sem remorsos, envelhecêssemos com sabedoria, e recebêssemos a morte com a mesma humildade com que recebemos a vida.





0348) A arte do pênalte (1.5.2004)


A esta altura do campeonato já devo ter visto (ao vivo e na TV) uns mil pênaltes sendo cobrados, e acho que isto me autoriza a falar sobre o assunto, se não como especialista, pelo menos como testemunha ocular. Se o gol é o ponto mais alto do futebol, o pênalte é uma espécie de lance-de-dados onde valem a técnica e a esperteza, mas que jamais abolirá o Acaso. Numa coluna anterior (“O pênalte e o suicídio”, 21.9.2003) comentei alguns dos seus aspectos simbólico-psicanalíticos; hoje falarei da questão propriamente técnica.

Existem dois tipos de batedores de pênalte. Um deles é o da teoria da “pancada”, ou seja, a distância é tão curta e a barra é tão grande que basta acertar um chute forte dentro daquela moldura e o goleiro não vai ter a menor chance, a não ser que o cara chute exatamente em cima dele. Uma atitude tudo-ou-nada, porque tanto nos proporciona chutes indefensáveis quanto bolas que vão às nuvens; é o estilo argentino de cobrar. O segundo tipo de batedor é o que confia mais na finta do que no chute forte: Romário, por exemplo. Ele parte para a bola com um olho nela e o outro no goleiro; faz uma ginga, negaceia, faz de conta que vai jogar a bola de um lado, e, quando o goleiro se resolve e pula, toca com firmeza no outro. O “com firmeza” é um conselho da minha parte, porque tem jogadores, como Marcelinho Carioca, que depois de deslocar o goleiro se limitam a empurrar a bola devagarinho, acintosamente, para o canto oposto. Tomara que um dia dê tempo do goleiro voltar.

Quanto aos goleiros, estão divididos exatamente nos dois tipos acima. Tem os goleiros que “escolhem o canto”, preparam-se, e no momento em que o pé do jogador toca na bola eles se jogam para aquele lado. Se acertarem, tem boas chances de defender; se errarem, estão fritos, só lhes resta contar com a incompetência do cobrador. Estes goleiros partem do princípio que, quando se escolhe o canto certo, a vantagem do pênalte se inverte, está mais do lado do goleiro do que do lado de quem cobra. É, por exemplo, o estilo de Taffarel, grande pegador de pênaltes. O segundo tipo de goleiro é aquele que espera o chute. Em vez de arriscar e saltar “no escuro”, ele prefere esperar para ver de que lado a bola vai de fato, e tentar chegar nela a tempo: é a tática preferida por Dida, que, tanto na Seleção quanto nos clubes que defendeu, já pegou um número respeitável de pênaltes.

Jogador e goleiro que “escolhem o canto” estão, de certa forma, tentando ignorar o que o adversário vai fazer. Contam com a sorte. Mais interessante é a disputa entre um cobrador e um goleiro que estão com os olhos fitos um no outro – Romário chutando contra Dida. O que temos aí é um duelo de talentos, um duelo de personalidades, uma espécie de namoro entre espertalhões, onde cada qual não perde um movimento sequer do outro, e sabe que seus próprios movimentos estão sendo igualmente observados. Balé, xadrez, esgrima, onde ambos confiam que o gesto final será seu.

0347) Os heróis esquizóides (30.4.2004)




Por que tantos heróis da cultura popular têm dupla identidade? Quando eu era garoto e lia quadrinhos, me parecia óbvio que fosse assim. Todos nós sabíamos que Clark Kent e Super-Homem eram a mesma pessoa; que Billy Batson se transformava no Capitão Marvel quando dizia a palavra mágica “Shazam”; que o milionário Bruce Wayne descia à Caverna do Morcego para sair dali disfarçado de Batman. A lista era longa. Durante muito tempo, me pareceu que todo herói tinha que ter uma face pública e pacata, e uma face oculta e sobrehumana.

Depois percebi que não era apenas nos quadrinhos. Nessa época eu era leitor devotado das aventuras do Zorro, bem como das histórias do “Coyote”, pistoleiro mexicano criado por J. Mallorqui, o qual na vida civil era o pacato fazendeiro Dom César Echagüe, mas quando se disfarçava era um justiceiro temido, que deixava um desenho em forma de cabeça de coiote nos locais onde fazia justiça, e costumava marcar os maus elementos arrancando o lóbulo de sua orelha com um tiro, para reconhecê-los depois.

Em seu inestimável volume de ensaios Seis Propostas para o Próximo Milênio, Italo Calvino usa a mitologia grega (inspirando-se em um livro de André Virel) para explicar essa dualidade do ser humano, e, por extensão (esta por minha conta), dos heróis da cultura de massas. Diz ele que o homem tem um lado Mercúrio (que representa a “sintonia”, a nossa troca de informações com o mundo à nossa volta) e um lado Vulcano (que representa a “focalização”, ou seja, o nosso pensamento concentrado e criador). (Sobre Mercúrio, veja-se a coluna “O deus das coisas certas”, 10.3.2004) Um é o nosso lado público, social; o outro o nosso lado íntimo e profundo. O fascínio exercido pelos heróis de dupla personalidade está no aparente paradoxo de que o “rosto oficial” (Bruce Wayne, Clark Kent) fica em segundo plano, enquanto que a personalidade secreta (Batman, Super-Homem) é o verdadeiro foco das atenções.

No fundo, é um retrato do artista criador, que é um super-herói conhecido e admirado por todos, capaz de façanhas espantosas... mas que, quando o encontramos em carne-e-osso, nos surpreende por ter os nossos mesmos defeitos, inseguranças, limitações. Pedimos o autógrafo, tiramos a foto com o braço sobre o seu ombro, e ficamos matutando se foi mesmo esse cara de roupa amassada, olhos cansados e barba por fazer que dirigiu aqueles filmes maravilhosos, escreveu aqueles livros impressionantes, compôs aquelas músicas que ficarão para sempre. O artista é um super-herói ao contrário. É um sujeito banal em público, mas que se transforma em alguém grandioso quando está a sós, no momento da criação. Mesmo que a gente tome um drinque ao seu lado, chegue mesmo a conviver com ele e ter amizade, é sempre o lado Clark Kent que ficaremos conhecendo. Como é ele quando se transforma em Super-Homem, nunca saberemos, mas a transformação ocorre, e a prova disto é o livro, é o filme, é a canção.


0346) Lay, lady, lay (29.4.2004)



(Adriana Lima)


A TV dos EUA veicula um anúncio da Victoria´s Secret, conhecida griffe de lingerie, usando a canção de Bob Dylan “Love Sick”. No anúncio, a modelo brasileira Adriana Lima passeia pelas pontes de Veneza, usando apenas uma lingerie branca e um par de asas (a coleção chama-se “Angel”), sendo observada a meia-distância por Dylan, que usa seu inevitável terno preto, chapéu preto de cowboy, e o seu visual atual: cabelo meio longo e um bigodinho fino que lembra Vincent Price. Enquanto isto, rolam na trilha sonora os ásperos versos da canção: “Estou doente de amor... você me destruiu com um sorriso, enquanto eu dormia.”

Já visitei uns três ou quatro saites dedicados à obra de Dylan, e a discussão come solta. Dylan todo ano produz uma novidade que vira assunto obrigatório durante os meses seguintes. Já foi cantor de música folk-de-protesto (uma espécie de Vandré americano), depois aderiu à guitarra elétrica, depois virou cantor sertanejo, depois virou cristão, depois virou judeu... Sua obra musical é um diário íntimo exposto à visitação pública.

Às acusações de que fazendo clip para a Victoria´s Secret ele teria “se vendido ao poder econômico”, um ouvinte sensato ponderou que ele faz 20 shows por mês pelas capitais do mundo, e se quisesse se vender, se vendia logo a uma IBM, uma Ford ou uma Microsoft. E um outro lembrou uma entrevista dada por Dylan há mais de 30 anos, quando lhe perguntaram para que tipo de produto ele aceitaria fazer propaganda, e ele respondeu: “Roupas femininas”. E o ouvinte pergunta: “Vocês preferiam que ele anunciasse o que: lingerie, ou comida para gatos?”

É meio pretensioso da minha parte querer adivinhar daqui o que um sujeito está pensando. Mas a Victoria´s Secret está para os EUA como a Du Loren, a Triumph e a Valisère estão para o Brasil. Dylan, que vai fazer 63 anos neste maio, escreveu as canções-de-amor mais maduras da música pop, quilômetros além do sentimentalismo encantador mas juvenil dos Beatles e dos Rolling Stones. Aos 25 anos, ele cantava como um sujeito de 50. Escreveu muita bobagem, como qualquer compositor pop; mas os pontos altos que atingiu não foram atingidos por ninguém mais. Nunca foi um cara bonito, e não é agora, que está parecendo um buldogue molhado de chuva, que vai sonhar em ser símbolo sexual. Ele sabe que, aparecendo ao lado de Adriana Lima (que é uma gracinha) vai parecer mais feio ainda. Ao contrário de Michael Jackson, que entrou num delírio de rejuvenescimento, embelezamento e branqueamento, Dylan quer mostrar a cara que tem.

O enorme contraste entre um homem velho e feio e uma mulher jovem e bonita faz parte da matéria-prima de onde ele extrai há 40 anos sua poesia: os contrastes entre o terrível e o sublime, entre a morte e a vida, entre a verdade e a poesia, entre o poder e o saber. É um mero comercial de roupas-de-baixo, mas nesse universo, onde se celebra sempre a juventude e a beleza, é o rosto devastado do Bardo que silencia os espectadores.

0345) Liberdade demais atrapalha (28.4.2004)





Falei ontem sobre o conceito que batizei de “O fantasma da liberdade”, pedindo emprestado o título do filme de Luís Buñuel. O século 20 foi chamado “o século das vanguardas”. Criou-se uma ideologia de romper com as tradições, libertar-se das fórmulas, fazer o que desse na veneta dos artistas. “Vanguarda” e “experimentalismo” foram as expressões mais usadas para descrever essa atitude de procurar novas formas de expressão. O problema é que, quando prestamos atenção em muita coisa que se apresenta como Vanguarda ou Experimentalismo, percebemos que o que acontece ali não é propriamente a busca de novas formas, e sim a mera rejeição das formas antigas. O artista faz um esforço tão grande para ser livre que acaba ficando livre até de si mesmo.

Esse quebra-quebra de fórmulas antigas acabou redundando numa fórmula nova: “tudo é Arte”. O leitor certamente já terá ouvido alguma variante desta fórmula. “Quê que tem? Tudo é poesia”, diz o poeta que amontoa palavras sem sentido. “Tudo é cinema”, afirma o cineasta que liga a câmara, vai para casa dormir, e volta no dia seguinte para ver o que a câmara filmou. “Tudo é música”, diz o pretendente a músico cuja única habilidade sonora consiste em bater-numa-lata-véia. Artistas assim são os maiores defensores da liberdade artística total, porque no momento em que se criar um mínimo filtro de qualidade, uma mínima peneira para distinguir o que presta e o que não presta, a primeira coisa que vai para o espaço são as obras deles.

Não sou contra o experimentalismo. Aliás, gosto mais de maluco do que de quem é certinho demais. Bater numa lata véia não é problema, desde que a lata véia seja uma maluquice criativa, funcione dentro de uma maluquice maior. Quando o sujeito é músico de fato (pense Hermeto Paschoal, pense Jaguaribe Carne, pense Tom Zé) ele pode bater em lata véia, soltar porco e galinha no estúdio, ligar rádio de pilha durante o show. A doidice vem num contexto de criação, de trabalho. O que me desanima é ver gente que, em nome de uma suposta liberdade total, abre mão daquilo que os gregos chamam “poiesis”, e que podemos chamar de técnica, destreza, artesanato, feitura, “craft”, habilidade, perícia.

Os artistas que querem “romper com todas as regras”, “abolir as fórmulas”, etc. são movidos pelo impulso (tão bonito, tão elogiável) de querer criar alguma coisa que os exprima, que seja um reflexo de sua relação direta com o material que estão usando. Tentam afastar-se das regras porque temem que, ficando presos a elas, seu trabalho não passe de um papel carbono ou uma simples derivação do que já foi feito dezenas de vezes por gente mais experimentada e mais competente. Mas uma obra de arte é justamente o resultado de uma tensão entre uma força que quer ir em todas as direções e um conjunto de regras que a comprimem, a concentram, a direcionam, e lhe dizem para onde ela deve ir. Sem essa força e sem essas regras, não existe Arte.


0344) O fantasma da liberdade (27.4.2004)




(David Alfaro Siqueiros, Nuestra imagen actual, 1947)


Peço emprestado o título de um filme de Luís Buñuel para batizar, neste minúsculo artigo, um dos conceitos mais perigosos da arte do século 20. 

O Fantasma da Liberdade é a falsa idéia de que quanto mais liberdade temos, melhor. Como diria Augusto dos Anjos: “Ilusão trêda!”. 

O mundo ocidental experimentou tantos séculos de despotismo, imperialismo, tirania, fascismo, nazismo, ditaduras e todas as suas variantes, que a Liberdade acabou parecendo, num contexto de regimes autoritários e sanguinolentos, um valor absoluto. Hoje em dia você pode falar mal até de Jesus Cristo, que passa. Mas se chegar num jornal e disser que a Liberdade não é um valor absoluto, como eu estou dizendo agora, corre o risco de ser crucificado. 

Pois tragam os centuriões! Estou pronto a me sacrificar pela Verdade. Mas primeiro deixem-me apresentar as provas da defesa.

Prova A: o Verso Livre. Um belo dia, algum Einstein da literatura teve a idéia de dizer: “Vamos abolir essa besteira de métrica e rima, essas coisas que é preciso estudar! Viva o verso livre, e viva o verso branco!” Entendo a intenção de quem fêz isto, e concordo que foi um avanço. Mas serviu de pretexto para que milhares de incompetentes achassem que fazer poesia era escrever qualquer coisa.

Prova B: a Pintura Abstrata. Durante séculos, só era pintor quem soubesse pintar figuras: gente, cavalos, árvores ou navios. Aí um belo dia, alguém disse: “Pintura não é pra mostrar nada. Bastam as cores, as tintas, as formas.” Esta revolução nos deu Kandinsky e Jackson Pollock, mas nos deu também uma legião de borra-botas que acham que basta lambuzar uma tela com qualquer coisa, em nome de liberdade.

Prova C: o Rock de Garagem. Surgiu nos anos 80 como uma resposta da garotada à complexidade barroca e aos excessos de pretensão sinfônica do rock progressivo. Do punk rock em diante, os garotos começaram a dizer: “Para fazer rock não é preciso cantar bem, não é preciso tocar bem. Rock é atitude.” Em poucos anos este lema tinha degenerado em: “Para fazer rock não é preciso cantar, não é preciso tocar, rock é qualquer coisa.” O corolário disso todo mundo sabe: meia dúzia de garotos pulando, soltando uivos inarticulados, espancando instrumentos amplificados ao máximo, e dizendo que estão exercendo sua “liberdade criativa”.

Prova D: o Cinema Experimental (e seu clone, a Video-Arte). Para combater o comercialismo de Hollywood e o intelectualismo do cinema-de-autor, inventou-se um cinema sem interpretação, sem roteiro, sem fotografia, sem produção, sem direção. O seu lema parece ser : “A idéia na câmara, e as mãos na cabeça”, ou seja, aponta-se a câmara em qualquer direção, registra-e qualquer coisa, e o resultado é “arte”. Por que? Porque, para muita gente hoje em dia, “tudo é arte”.

Eu poderia juntar outros exemplos: a Escrita Automática, a Música Aleatória, as Instalações Conceituais, etc. Mas o espaço acabou, e continuo amanhã.






0343) Campos de Carvalho (25.4.2004)




Não sei se posso incluí-lo entre meus romancistas preferidos, porque não sei se os livros dele são romances, tecnicamente falando. Em todo caso, são livros escritos em prosa, contando histórias fictícias, e com uma certa extensão; então chamemo-los assim à falta de outro rótulo, aliás dispensável. Os romances de Campos de Carvalho são apenas quatro, mas me acompanham mundo afora há mais de trinta anos, ao longo de muitas mudanças de casa, de cidade, de profissão. O autor nasceu em Uberaba em 1916, e morreu há poucos anos. Vi-o entrevistado por Pedro Bial no canal GloboNews. Estava velho, amargurado, emergindo de uma depressão, falando na morte o tempo inteiro. O pessimismo latente em seus livros parecia ter tomado conta de seu mundo.

Não importa. Nos livros, o pessimismo de Carvalho em relação à humanidade se transmuta numa prosa de inventividade incessante, num humor cheio de piruetas e acrobacias verbais sempre inesperadas, muito longe das meras graçolas que parecem ser a moeda corrente no humor literário de hoje. O primeiro, deles, A Lua vem da Ásia (1956), já surpreendia o leitor com sua anti-convencional seqüência de capítulos: “Capítulo primeiro”, “Capítulo 18o.”, “Capítulo doze”, “Sem capítulo”... (Mais adiante há um “Capítulo sem sexo”, “Dois capítulos num só”...) É um monólogo alucinatório em que se suspeita aos poucos que o narrador é um preso num campo de concentração ou um louco num hospício.

Também alucinatória é a voz narrativa de Vaca de nariz sutil (1961, título tirado de uma tela de Jean Dubuffet), o monólogo de um soldado traumatizado pela guerra, que é preso por violar a namorada sobre uma lápide no cemitério. A chuva imóvel (1963) é um delírio que tem como pano-de-fundo a ameaça nuclear, e O púcaro búlgaro (1964), seu livro mais engraçado (para alguns críticos, o melhor de todos), mostra como um grupo de malucos se junta numa expedição para tentar descobrir se a Bulgária existe de fato.

Estes quatro livros foram reunidos por Maria Amélia Mello, da Editora José Olympio, num único e precioso volume que pode ser encomendado hoje em qualquer livraria. São o melhor exemplo brasileiro da literatura absurdista, aquelas obras que, inspiradas na tradição de Alfred Jarry, Franz Kafka, Samuel Beckett, Eugene Ionesco e Albert Camus, mostram um universo onde a vida humana é movida e determinada por forças imensas e sem propósito. Os personagens-narradores de Carvalho são indivíduos massacrados pela lei, pelos preconceitos, e pelos grandes conceitos demagógicos (a Pátria, a Sociedade, a Família...) que são mais desmoralizados justamente pelos que os defendem com mais veemência. São livros escritos por um velho pessimista, mas que, por essa alquimia própria da grande literatura, ainda hoje emocionam e arrebatam os jovens rebeldes. Espíritos impacientes com o Passado e o Futuro, que cravam os dentes no Presente, e seja o que Deus quiser.

0342) O movimento dos planetas (24.4.2004)



(Três fotos de Vênus sobre o Sol)

Há quem se comova com a beleza das obras de Arte; eu me comovo com a beleza das obras da Ciência. Achar a beleza na Arte, afinal de contas, é de uma obviedade entediante. Se um Autor fica virando noites a fio para fazer com que um filme, um poema, uma música, um quadro, etc. seja considerado “belo”... ora diabo, mais cedo ou mais tarde alguém vai acabar achando mesmo. Mais sutil e mais despercebida, para mim, é a beleza que nasce de descobertas científicas ou tecnológicas que pretendiam ser apenas uma polaróide de um aspecto do Universo físico que nos cerca. Pensem na tabela periódica dos elementos. Pensem na microfotografia de tecidos vivos, de moléculas minerais. Pensem no estudo geométrico dos cristais-de-neve e das funções fractais. Como diria Biliu de Campina: “beleza pura”.

E por trás das obras da Ciência existem comovedoras histórias humanas, tanto quanto nos salões da Arte. Vejam por exemplo este recente episódio envolvendo a observação astronômica e a moderna tecnologia digital. Em 6 de dezembro de 1882, astrônomos do Observatório de Lick, que estava sendo construído no Monte Hamilton, na Califórnia, reuniram-se sob a coordenação do Prof. David Peck Todd para fotografar uma passagem do planeta Vênus diante do Sol. Devido ao alinhamento da posição dos astros, passagens deste tipo são relativamente raras, e, como Vênus está muito distante, passam despercebidas. (A Lua é muito menor que Vênus, mas como está muito próxima de nós provoca um eclipse toda vez que passa diante do Sol)

O Prof. Todd e seus ajudantes, usando a tecnologia da época, tiraram um total de 147 negativos em placas de vidro, documentando a passagem do planeta de encontro ao disco solar. Ele certamente sabia da possibilidade de que estas imagens sequenciais pudessem vir a ser “animadas” um dia, pois já em 1874 Pierre Jules Janssen havia inventado o seu “revólver fotográfico”, também para documentar um trânsito de Vênus. As placas de Todd foram guardadas e esquecidas.

Em 2002, o astrônomo Anthony Misch, do Obervatório Lick, encontrou as 147 placas feitas por Todd, e, com a ajuda de William Sheehan, transformou-as em imagens digitais que foram postas em movimento através da tecnologia QuickTime, hoje tão comum para divulgar imagens pela Internet. O resultado pode ser visto no saite da revista “Sky and Telescope”, em: http://skyandtelescope.com/observing/objects/sun/graphics/Transit1882Todd640.mov . São apenas quinze segundos, e tudo que vemos é um pequeno círculo negro cruzando um enorme círculo branco. Mas é, como lembra Misch, um fenômeno que ocorreu quando a Rainha Vitória governava a Grã-Bretanha, o presidente dos EUA era Chester Arthur (e, ouso acrescentar, D. Pedro II era nosso imperador). Um filme feito através de um abismo de 120 anos; uma obra que só existe pela paciente parceria de indivíduos que nunca se conheceram. É Arte? Não, não é. Mas é beleza pura.



Em tempo: O novo link para obter a animação em QuickTime é:

0341) Tradição e vanguarda (23.4.2004)




O cinema de Jean-Luc Godard é um exemplo de como Vanguarda e Tradição não são forças antagônicas, e sim complementares. Vou comparar com o futebol: a Tradição é a defesa, aquele conjunto de caras a quem cabe segurar-o-resultado, defender o que foi conquistado até então. E a Vanguarda é o ataque, aqueles caras cuja função é tomar a iniciativa do jogo, abrir terrenos, conquistar novas vantagens. Não prolongarei demais esta metáfora, para que ela não comece a perder o sentido, mas lembro apenas que, assim como no futebol perdoamos dezenas de erros dos atacantes desde que eles consigam fazer 2 ou 3 gols, também na Vanguarda perdoamos milhares de bobagens, desde que aqui e acolá se descubra alguma coisa realmente importante para a Arte.

Foi relançado há pouco Uma mulher é uma mulher, filme que Jean-Luc Godard realizou em 1962, depois de sua estréia em Acossado (1959) e de O pequeno soldado, que ficou preso na censura durante alguns anos. Uma mulher... é uma homenagem ao musical americano, mas é, muito godardianamente, um anti-musical. Neste filme Godard faz experiências sonoras que desenvolveria depois (Made in USA, Alphaville, etc.): um longo silêncio cortado por rajadas bruscas de música estridente, que logo desaparece; uso de música-de-fundo em aparente desacordo com a cena; e muita música direta, ou seja, música que os próprios atores estão ouvindo na vitrola ou no rádio.

O cinema de Godard, que ficou sendo o protótipo do cinema de Vanguarda dos anos 1960, é em grande parte responsável pela onda metalinguística e referencial que tomou conta dessa época. Godard cita o tempo todo. Cita filmes, canções, livros, peças, personagens históricos, filósofos, políticos. A todo instante alguém está se referindo a alguém. Seu cinema é “cinema pop” no sentido de utilizar nomes próprios como matéria-prima, como se fossem griffes ou marcas. Além dessa citações verbais, seus filmes são repletos de citações visuais e sonoras, principalmente ao cinema americano clássico, ou seja, a uma Tradição que existia mas não era levada em conta pelos que vinham fazendo cinema na França até então.

Quem cita está pedindo a bênção à Tradição; e por mais que isto possa se transformar num cacoete irritante, este estilo referencial de arte cria laços entre as obras e os artistas, dá espessura e solidez ao tecido cultural. A Nouvelle Vague francesa entrou em choque com uma Tradição (a do cinema industrial e conservador, tanto da França quanto dos EUA) mas trouxe à luz outra Tradição, a dos autores individualistas que conseguiam criar um cinema próprio dentro dessa mentalidade padronizada: Hitchcock, Samuel Fuller, Jerry Lewis, John Ford, etc. Mais do que “zerar tudo”, o cinema vanguardista de Godard propõe que vejamos com olhos novos o que foi feito antes, que tentemos fazer uma revisão no cascalho da História, porque certamente existem pepitas de ouro que passaram despercebidas. Que homenagem melhor à Tradição?