quinta-feira, 27 de novembro de 2008

0649) A falácia da vanguarda (17.4.2005)


Perguntaram a Charles Baudelaire se ele se considerava um poeta de vanguarda e ele respondeu: “Não gosto de metáforas militares”.

Vanguarda é um conceito defeituoso porque nos induz a uma visualização errada da literatura. Vanguarda é aportuguesamento de “avant-garde”, “guarda avançada” ou “tropa avançada”, aquele pequeno grupo que vai à frente do restante do exército, embrenhando-se no território inimigo, descobrindo caminhos e correndo perigos que os que vêm lá atrás não correm. Ser de vanguarda, portanto, dá a idéia de ser mais audaz e mais corajoso, de não ter medo de correr riscos, e de estar conquistando hoje um território onde indivíduos mais prudentes só terão coragem de pisar muito tempo depois.

Quando se diz: “Fulano é a vanguarda da poesia brasileira de hoje”, a gente fica com a impressão de que a poesia brasileira é um grupo de gente indo numa direção, e que Fulano está centenas de metros à frente de todo mundo. Admiramos e invejamos Fulano pelo seu talento e pela sua coragem de partir na frente sozinho, descobrindo tudo por conta própria. E aí nos vem o maior erro de pensar em termos de vanguarda: achamos que o Poeta Vanguardista está mais adiantado do que nós em algum tipo de maratona, e que precisamos ultrapassá-lo. E a única maneira de ultrapassá-lo é fazer, mais ou melhor do que ele, aquilo que ele está fazendo.

Quando a crítica começou a considerar James Joyce a vanguarda do romance ocidental muita gente se sentiu na obrigação de passar à frente dele. E tentou fazer isto escrevendo romances que eram imitações ao-pé-da-letra dos romances de Joyce. Todo país ocidental hoje em dia tem esses romancistas, indivíduos que tentaram ser aquele escritor que, como diria Shakespeare, “out-joyces Joyce” – o cara que supera em joyceanismo o próprio Joyce.

Joyce fez um mergulho fundo na fusão entre voz e escrita, na colagem de diferentes discursos literários dentro de uma mesma obra, no mergulho nos arquétipos culturais de sua Irlanda natal, e assim por diante. Seu trabalho é monumental e impressionante, mas em hipótese alguma significa que a literatura inteira esteja indo neste rumo, com ele à frente. Cada literatura está indo em mil direções diferentes. Todo mundo está escrevendo livros diferentes, e neste sentido cada escritor só é vanguarda de si mesmo, ou talvez de um grupo de textos com os quais ele deliberadamente dialoga – a novela de detetive, a crônica urbana, o romance histórico, o conto psicológico...

Jovens, em geral, acham que precisam ser de vanguarda, porque sentem-se com a compreensível missão de trazer ao mundo o Novo, o Inédito, o Original. Só que a melhor maneira de conseguir isto não é tentando suplantar o que já está sendo feito, e bem, por Fulano ou Sicrano. Vanguarda é toda vez que um indivíduo descobre sua voz pessoal e uma comunidade literária descobre o quanto esta voz lhe fazia falta.

0648) Bilac e Leandro (16.4.2005)




Gosto de coincidências numéricas, até porque são as únicas indiscutíveis, as únicas que não dependem de uma projeção de nosso ponto de vista sobre os fatos. A cristalina frieza dos números que se encaixam uns nos outros faz um “clic”, e o resto é conosco. Revisando um texto recente sobre poesia, percebi uma coincidência singular: tanto Olavo Bilac quanto Leandro Gomes de Barros nasceram em 1865 e morreram em 1918. Isto faz com que dois dos maiores poetas brasileiros tenham existido precisamente no mesmo nicho cronológico, e por si só já bastaria para que algum estudante de Letras, entre as centenas que se formam anualmente em nossas faculdades, escolhesse como tema de sua futura tese de Mestrado algo como: “Bilac e Leandro: o Brasil Oficial e o Brasil Real através da Poesia”.

Bilac foi eleito em vida “O Príncipe dos Poetas Brasileiros”, foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, e participou de campanhas cívicas como a Abolição da Escravatura e a instituição do Serviço Militar obrigatório. Vivia, portanto, no Brasil oficial. Leandro era um caboclo rude que saiu do sertão da Paraíba e fixou-se no Recife; não sei se algum dia terá sequer conhecido o Rio. Carlos Drummond (num texto reproduzido no livro de Irani Medeiros No Reino da Poesia Sertaneja, João Pessoa, Editora Idéia) compara a poesia dos dois, observa que a de Bilac “correspondia a uma zona limitada de bem-estar social, bebia inspiração européia”; e diz que se alguém merecia o epíteto de príncipe era Leandro e sua poesia “pobre de ritmos, isenta de lavores musicais, sem apoio livresco”.

Não creio que o texto de Leandro fosse tão pobre assim, embora certamente o fosse se comparado à riqueza de nuances que um artesão como Bilac sabia extrair do decassílabo e do alexandrino. Bilac foi o maior artífice de um gênero, de um conjunto de preferências culturais que ele soube enfeixar com harmonia e refinar com perfeição. Quando um gênero cai de moda, é natural que o mestre daquilo mergulhe no esquecimento. Talvez daqui a 50 ou 100 anos surja no Brasil um novo surto de Parnasianismo e ele volte a ser o maior poeta brasileiro, e será a vez de Drummond e Cabral ficarem hibernando nas prateleiras.

Bilac celebrou como ninguém o amor romântico e o erotismo do corpo feminino; Leandro passou a vida descendo a ripa nas esposas, nas sogras e no casamento. Bilac mergulhou fundo na História clássica, na mitologia grega, nas grandes jornadas épicas dos conquistadores e desbravadores; Leandro estendeu-se no campo da sátira, da crônica cotidiana de costumes, da saga dos valentões e cangaceiros, e dos contos de aventura e encantamento. Um estudo minucioso das semelhanças e diferenças entre os dois poderia nos dar uma idéia desse complicado sistema de espelhos em que um poeta olha para o mundo à sua volta e produz textos que não apenas reflitam esse mundo mas também o enriqueçam. Pouco lembrados hoje em dia, Bilac e Leandro ainda explicam bem nosso país.



0647) A noite do Judas (15.4.2005)


(Guy Fawkes)

A tradição de queimar um “judas” no Sábado de Aleluia é um exemplo de como o instinto destrutivo é condicionado socialmente. Dá gosto ver o prazer com que as crianças dependuram no poste aqueles bonecos desengonçados, entopem seus bolsos de rojões e peidos-de-véia, e na hora H incendeiam suas roupas, fazendo-os pipocar em todas as direções. Depois, botam abaixo a carcaça, descem-lhe o porrete, até que um o pega pela corda no pescoço e sai correndo rua afora, enquanto a turba o persegue, danando o cacete nos despojos da vítima. No outro dia, haja donas-de-casa a reclamar que quebraram todos os cabos-de-vassoura da casa.

Na Inglaterra as crianças comemoram em 5 de novembro a noite de Guy Fawkes, ou “Bonfire Night”, noite das fogueiras. Em 1600-e-cocada um grupo de conspiradores católicos, inconformados com as perseguições do Rei Jaime I, teve a brilhante idéia de explodir o Parlamento britânico, com rei, nobres, e tudo o mais. Eles chegaram a estocar dezenas de barris de pólvora no subsolo do Parlamento, o que dá uma boa idéia do que eram os sistemas de segurança daquele tempo. Mas na noite de 5 de novembro rolou uma denúncia e foi feita uma inspeção. Um dos conspiradores foi flagrado junto à pólvora: justamente o tal do Guy Fawkes, que foi torturado e morto. Desde então, a noite-do-judas inglesa é a Noite de Guy Fawkes. Preparam-se bonecos usando um capote e um chapelão (que, ao que parece, era a roupa do personagem), os bonecos são arrastados pela rua, pendurados, têm os bolsos cheios de fogos de artifício, e o resto é todo igual.

Isso me dá duas idéias. A primeira é a constatação óbvia de que as sociedades precisam de bodes expiatórios, de inimigos simbólicos nos quais possam extravasar sua fúria linchatória, protegida e avalizada por uma tradição folclórica. A segunda é uma idéia política. Imaginemos que, cem anos depois do golpe de Guy Fawkes, os católicos tivessem tomado o poder na Inglaterra. Ele passaria de terrorista a herói, o dia 5 de novembro seria feriado nacional, e haveria uma estátua dele em frente ao Parlamento. Sua efígie estaria em notas e moedas, e talvez quem estivesse sendo queimado nas ruas na Noite das Fogueiras fosse o rei que mandou matá-lo.

Porque é mais ou menos isto que temos aqui no Brasil, com um sujeito como Tiradentes. Fosse isto aqui, ainda, uma monarquia, e o pobre do inconfidente mineiro estaria sendo enforcado, queimado e esquartejado alegremente pelas nossas crianças, todas imbuídas do mesmo espírito cívico que hoje as faz homenagear o herói. Não sabemos muito bem porque queimamos uns e celebramos outros; ou melhor, sabemos, sim. Fazemos isto porque é o que nos foi ensinado no lar, na escola e no bairro, com o aval das autoridades civis e eclesiásticas. Mas ninguém me impede de matutar, daqui do meu canto, que o conceito de “terrorista” e de “herói” muda quase tão depressa quanto o de “campeão brasileiro de futebol”.

0646) O construtivismo em Rayuela e Avalovara (14.5.2005)


Certas experiências literárias, embora tenham lá sua importância, recebem uma valorização que às vezes acaba por atrapalhar uma leitura mais ampla, prejudicando a “chegada” do leitor à obra. Vou pegar como primeiro exemplo O Jogo da Amarelinha (Rayuela) de Julio Cortázar. Se for feita uma enquete por aí entre críticos e leitores, a grande maioria irá lembrar este romance como sendo aquele livro em que os capítulos devem ser lidos numa ordem diferente da ordem numérica. Cortázar propõe um sistema de leitura parecido com o próprio sistema do jogo da amarelinha (que na Paraíba chamamos de “academia” ou “cademia”), onde uma criança pula num pé só por entre os quadrados de um esquema desenhado no chão, impelindo com o pé uma pedrinha.

O autor sugere que a gente comece o livro pelo capítulo 73, depois leia o 1 e o 2, aí salte para o 116, volte para o 3, e assim por diante. Não é por mera excentricidade, ou pelo cacoete de ser diferente dos outros. O livro se organiza um pouco como um currículo universitário, que tem cadeiras obrigatórias e cadeiras optativas. Os capítulos de 1 a 56 seriam os obrigatórios, os que contam a história propriamente dita; os de número 57 a 155 são os capítulos optativos, que não modificam o enredo mas ajudam a enriquecer a história.

Infelizmente, este “gimmick” acabou se superpondo a tudo o mais no livro, o que é uma pena, pois provavelmente alguns leitores se sentem desconfortáveis com esses zig-zags, que imaginam muito mais complicado e incômodo do que é de fato. E com isto se afastam de um livro que tem imensas riquezas a oferecer. Rayuela é um desses romances sinfônicos em que se misturam diferentes histórias, diferentes vozes narrativas, diferentes visões-do-mundo, tudo construindo uma notável história de intelectuais argentinos exilados em Paris durante os anos 1950.

Um caso semelhante corre com Avalovara de Osman Lins, recentemente reeditado pela Companhia das Letras. Sob uma certa influência de Cortázar, mas obedecendo à sua própria índole estética, muito mais “construtivista” do que a do argentino, Osman Lins estruturou a leitura dos capítulos de seu livro em torno do deslocamento de uma espiral que gira no interior de um quadrado dividido em 25 quadrados menores, a cada qual corresponde uma letra. Para um leitor não-construtivista, um leitor que deseja apenas pegar um livro e lê-lo de A a Z, a perspectiva de encarar um livro assim deve ser atemorizante. Ele recua, e com isto está perdendo também um romance com imensa beleza estilística, uma múltipla e bela história de amor, e um retrato sutil do Brasil sob a ditadura militar.

Meu conselho: esqueçam os palíndromos, os zig-zags, o simbolismo gráfico e cabalístico. Ler estes livros pela sua história, seus personagens e sua voz narrativa é uma experiência enriquecedora, da qual não devemos nos privar pelo simples receio do desconforto de uma leitura não-linear.

0645) Mangueira x Portela (13.4.2005)




Em 1968, o poeta Hermínio Bello de Carvalho fez uma visita ao Morro da Mangueira. Deslumbrado com a belíssima visão do casario, das pessoas e da paisagem carioca, começou a escrever um poema sobre o que tinha visto. 

Aí recebeu a visita de Paulinho da Viola, portelense de coração. Ao ler os versos, Paulinho se emocionou tanto que pediu para musicá-los, mesmo sendo eles em homenagem à escola rival. Nasceu assim um dos sambas mais bonitos de todos os tempos, “Sei lá Mangueira”: 


“Vista assim do alto, mais parece um céu no chão... Sei lá... Em Mangueira a poesia feito um mar se alastrou, e a beleza do lugar, pra se entender, tem que se achar que a vida não é só isso que se vê. É um pouco mais. Que os olhos não conseguem perceber, que as mãos não ousam tocar, que os pés recusam pisar...”

Fast-forward no botão do Tempo. Em 1981, o poeta Paulo César Pinheiro é casado com a cantora Clara Nunes. Mangueirense de coração, ele precisa atender a um pedido da esposa, que é Portela: um samba para a escola azul-e-branca. 

A idéia salvadora lhe vem ao olhar o pequeno oratório para Nossa Senhora Aparecida que a própria Clara tem em casa. Ele nota que as cores da santa são o mesmo azul-e-branco da Portela, e que a imagem do Espírito Santo é uma “rima” perfeita para a águia, símbolo da Escola. 

E aí surge “Portela na Avenida”, um samba belíssimo que hoje é, ao lado de “Foi um rio que passou na minha vida”, de Paulinho da Viola, uma espécie de hino não-oficial da Escola: 


“Portela, eu nunca vi coisa mais bela, quando ela pisa a passarela e vai entrando na avenida... Parece a maravilha de aquarela que surgiu: o manto azul da Padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida...”

No Rio, essa coisa de Escola de Samba é levada a sério mesmo, tanto quanto o futebol. É como uma religião ou um patriotismo. O que leva um portelense roxo como Paulinho da Viola a querer participar, por pura emoção, de um samba que exalta a sua maior rival, a Mangueira? O que leva um mangueirense como Paulo César Pinheiro a louvar a escola rival de uma tal maneira? 

É como um vascaíno compor uma música exaltando o Flamengo, ou vice-versa. Pode-se dizer que são compositores profissionais e vêem a possibilidade de emplacar um grande sucesso, e por outro lado estão atendendo a pedidos de pessoas queridas. Mas isto não explica tudo.

Creio que ambos os compositores amam suas escolas, mas acima delas amam o samba e tudo que o samba representa. Mangueira e Portela são imagens visíveis de algo que não se vê mas que está presente na teia de relações humanas e afetivas, nos laços de parentesco e de vizinhança, na história de um bairro ou de uma rua, na memória racial compartilhada por uma comunidade inteira. 

Garotos descobrem isto através das cores de suas Escolas de Samba, e elas deixam de ser simples escolas, tornam-se portas para uma Pátria que é possível ver e compreender por inteiro.







0644) Treze x Botafogo (12.4.2005)



De passagem por João Pessoa há duas semanas, caiu-me do céu no colo a oportunidade de ir ao Estádio Almeidão matar as saudades dos velhos tempos, vendo a decisão do 1º. Turno do campeonato paraibano. Era um sábado de Aleluia, e na arquibancada as piadas giravam em torno de temas como “jejum de títulos”, “malhar o judas”, etc. Achei o jogo ótimo, mesmo não tendo gostado de como o Galo se portou. Tendo ganho o primeiro jogo por 3x0, o Treze entrou em campo com aquela postura idiota de quem tenta perder por 2x0 para ficar com o título. No primeiro tempo, levou 40 minutos de sufoco, e só ameaçou duas vezes, no finzinho. No segundo tempo, a mesma coisa.

O Botafogo sofreu o Calvário dos Afobados, dos que têm a obrigação de fazer 3 gols e vão se desesperando a cada chance perdida e a cada minuto mastigado pelo relógio. Quando um time nessas condições perde um pênalte aos 30 minutos de jogo, a vontade que dá é ajoelhar no meio-fio e bater com uma lata na cabeça, não é mesmo? Méritos para o time do Bota, que não se abateu, conseguiu um gol no começo do segundo tempo e chegou a acreditar, com razão, que poderia fazer o placar de que precisava. O gol de empate do Treze decidiu o jogo. O segundo foi só para começar a festa.

O placar moral do jogo teria sido 2x1 para o Botafogo, que atacou mais, demonstrou mais organização em campo, perseguiu o resultado, tomou a iniciativa do jogo em todos os momentos. O Treze teve uma defesa impecável que ganhou 100% das bolas altas e perdeu muito poucas por baixo. O ataque é muito elogiado, mas nesta tarde, pelo que vi, foi uma nulidade. Toquezinho pra lá, toquezinho pra cá, evitando a área como a polícia do Rio evita os morros. Só se salvou o Raphael, que entrou no fim e fez dois gols de artilheiro, de quem pega a bola e emburaca: ”Sai do meio que agora eu vou fazer um gol!”.

O Treze aparentemente queria recuar, chamar o Bota, e decidir o jogo nos contra-ataques. Só que o Botafogo, ao perder a bola no ataque, matava imediatamente a jogada para se recompor atrás, o que lhe valeu alguns cartões amarelos. As virtudes maiores do time do Galo me pareceram a calma, o toque de bola sem afobação, um goleiro seguro, uma zaga quase imbatível (excetuando a incrível pixotada no lance do gol). Faltou um lançador rápido que enfiasse, antes do impedimento, a bola em profundidade que os atacantes esperaram o jogo inteiro.

Treze x Botafogo são o clássico que melhor exprime a rivalidade Campina x João Pessoa, uma rivalidade saudável quando fica apenas no terreno do jogo, da gozação, do “Mas teu time é ruim, Fulano!”. A lamentar alguns arranca-rabos à saída do estádio; será que chegou aqui a praga das pseudo-torcidas que usam a camisa dos clubes como disfarce para brigas de gangs? Em todo caso, eu, que não piso mais no Maracanã nem por um decreto, matei as saudades de um bom jogo de futebol. E o Galo é o Galo, o resto é conversa.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

0643) O jardim de infância do Rock (10.4.2005)



Vendo certa vez um documentário de TV sobre a história do rock, algumas cenas me comoveram tanto que deixei de prestar atenção à música e à narração para ficar olhando apenas aquelas imagens. Eram cenas de algum daqueles concertos de rock ao ar livre no fim dos anos 60, quando a “swinging London” estava a todo vapor. Já se viam algumas calças bocas-de-sino, algumas garotas com saias psicodélicas arrastando no chão, e cabeleiras que pareciam arbustos selvagens; mas era ainda no início do processo, e a maior parte do grupo era de rapazes de terno ou pulôver, e moças com os vestidos “tubinho” típicos da época, ou usando jeans, que eram o máximo da ousadia. Ao som de um rock qualquer, eles brincavam de roda no meio de um gramado. Alguns dos rapazes traziam pastas de documento na mão, e não as largavam: a pessoa seguinte na roda segurava com ele na alça, e assim iam dançando. Mocinhas de saia justa faziam o possível para acompanhar o ritmo cada vez mais rápido da roda que girava. Teriam todos eles entre 18 e 25 anos, e a expressão que havia em seus rostos era de êxtase, felicidade, deslumbramento e descoberta.

O rock foi muitas coisas e desempenhou muitas funções, mas uma delas, e não a menos importante, foi proporcionar a rapazes e moças da insuportavelmente repressora sociedade britânica um vislumbre do que é a infância em outras culturas. Qualquer criança de sete anos gosta de pular, virar cambalhotas, tomar banho de chuva, espadanar na lama. Qualquer criança gosta de berrar a plenos pulmões, bater em objetos que produzam barulho, desfilar por dentro de casa vestindo o roupão-de-banho da mãe e o chapéu e os óculos do pai. A imensa energia da explosão biológica que são os nossos primeiros dez anos de vida precisa dessas manifestações externas. Criança precisa produzir em volta de si mesma ecos que confirmem sua existência.

O sistema educacional inglês consistia nos prédios soturnos e asfixiantes dos colégios internos, nos terninhos militarmente impecáveis, no sistema sadomasoquista de castigos e espancamentos. Eu jamais trocaria a infância livre e solta que tive na Paraíba por uma dessas infâncias de Primeiro Mundo que reprimem, massacram, intimidam. Chamo o rock como testemunha. Assistam o The Wall do Pink Floyd, assistam Tommy do The Who para ver o seu lado negro. Já para ver o seu lado luminoso, utópico, tipo “a-infância-que-não-tivemos”, assistam Help com os Beatles. O rock serviu, para essas crianças de paletó educadas à base da vara-de-marmelo, como uma libertação provisória do sadismo de pais, monitores e professores. De repente era possível vestir roupas espalhafatosas, dançar no meio da rua, fazer barulho sem ficar de castigo. Mais do que a permissividade sexual, ou bem antes dela, o rock trouxe para aqueles jovens a percepção de que ter um corpo pode ser uma coisa agradável, e de que todo mundo tem o direito de ter sido criança em algum momento da vida.

0642) Os aventureiros e os exploradores (9.4.2005)


(O Flâneur)

Num prefácio a um romance de Arthur Machen, David Trotter vê a literatura policial inglesa do século 19, como outros a viram antes dele, como um produto da vida nas grandes cidades, da efervescência social urbana, que gera não apenas o crime, mas todo o entrecruzamento de ações, motivações e interesses ocultos que cabe a um detetive deslindar, para entender o Quem, o Como e o Por Quê de um crime. O detetive é alguém que percorre a cidade, mistura-se a todas as classes, entende como pensam e como agem, é capaz de interpretar todos os sinais da mecânica social que vê à sua volta.

Trotter faz uma comparação interessante entre o detetive e o “flâneur”, o caminhante despreocupado, tipo criado por Baudelaire para definir o homem urbano sofisticado, culto, dotado de sensibilidade poética e de curiosidade insaciável. Para Baudelaire, cabia ao poeta e ao “flâneur” a tarefa de “registrar o surgimento da modernidade nas ruas da metrópole”. Trotter vê no detetive alguém que vai um pouco mais longe: “O flâneur quer apenas observar e ser observado. Ele não se propõe a fazer o que quer que seja com as informações que reúne. Ele se detém no umbral do significado, constantemente instigado a pensar, mas não querendo, ou não podendo, transformar esse seu pensamento em ação”. O contrário disto é o detetive, conforme se auto-descreve um personagem de “The Dynamiter” de Robert L. Stevenson: “Aqui, todas as nossas qualidades importam. Nosso comportamento, nosso conhecimento do mundo, talento para a conversação, vastas quantidades de informações dispersas, tudo que somos e possuímos vem se somar para compor o caráter de um detetive. Esta é, para resumir, a única profissão indicada para um cavalheiro”.

Esta pequena, sutil e essencial distinção é equivalente à que li há pouco tempo numa entrevista do espeleólogo Bill Stone para a revista Wired. Stone é engenheiro, inventor, e sua ocupação principal é explorar cavernas subterrâneas, muitas delas cheias dágua. Nadar num lago a 1.500 metros de profundidade, na treva total, sem saber o que há do outro lado, faz parte do dia-a-dia dele. Stone já perdeu 16 colegas nestas expedições e em pelo menos sete casos teve que resgatar seus corpos pessoalmente.

Stone diz ao entrevistador que não se considera um aventureiro, e sim um Explorador. A diferença, diz, ele, reside numa única palavra: Informação. “Se você não volta da aventura trazendo dados, não fez nada”, diz ele. “É uma simples façanha. Uma simples história para contar. Mas você não realizou nada”. O Detetive nos nebulosos anos 1850 exprimia um novo tipo de relação entre o Homem e sua Cidade, mas o Explorador nestes anos 2000 mostra que esta é a antiqüíssima relação entre o Homem e seu Universo. O Explorador é aquele que arrisca a vida para descobrir um continente, descobrir a nascente de um rio, trazer uma pedra da Lua. E o que ele busca não é continente, rio ou pedra: busca o Conhecimento.

0641) O poder do dinheiro (8.4.2005)


A gente classifica as pessoas pelo que elas ganham ou pelo que gastam, mas não vejo na revista Forbes nenhuma lista de “Os 50 Indivíduos que Melhor Aplicam Seu Dinheiro”. Talvez porque, se pesquisassem mesmo, iriam descobrir que 40 dessas vagas seriam preenchidas por donas-de-casa de bairros operários, que fazem o milagre-dos-pães todo dia, antes do café da manhã.

Muita gente critica os livros de auto-ajuda que abarrotam nossas livrarias. Que tem muita besteira, tem. (Em qualquer estante ou balcão de livraria, metade é besteira. Não é questão de gênero.) Pois a auto-ajuda mais importante que eu vejo são esses livros do tipo “Aprenda a lidar com dinheiro”, “Como ganhar e como gastar”, “O segredo da inteligência financeira”... Estou inventando os títulos, porque na verdade nunca li nenhum livro desses. Se um livro ensina a lidar com muito dinheiro, não me interessa, nunca vou precisar mesmo. Se ensina a lidar com pouco, não preciso: sou PhD no assunto.

Passo cerca de um terço do meu tempo acordado pensando em dinheiro. Adoro dinheiro. Não tem melhor sensação na vida do que quando a gente passa no caixa e recebe um cheque pesado, daqueles que se a gente botar no bolso da camisa vai andar meio “penso” para um lado. E não tem sensação melhor para a auto-estima do que abrir o extrato do Banco e ver aquele saldo que parece um CEP. Dá uma sensação de super-poderes. Eu começo logo a me achar bonito.

Digo isto porque nós, os poetas, os artistas, os filósofos, temos fama de sermos indivíduos espiritualizados, que não dão atenção a essas mesquinharias da vida prática: deixamo-las para raças mais rudimentares, como os comerciantes e empresários. Pois em verdade vos digo, amigos, que nenhum comerciante acaricia um centavo recém-ganho com mais volúpia do que este modesto filósofo. Freud dizia que o dinheiro não traz felicidade porque não é um desejo de infância. Concordo que não traz a Felicidade, mas traz para mim algo mais importante do que a Felicidade: a possibilidade de comprar livros e CDs importados, a possibilidade de liquidar as malditas contas que jazem enfiadas entre a CPU e a impressora, a possibilidade de passar um ou dois meses escrevendo e lendo apenas o que me dá na telha.

Uma vez me perguntaram por que nunca fiz sucesso, e respondi de improviso que é porque estou satisfeito com a classe social a que pertenço. Todo mundo que persegue o sucesso quer ficar mais rico do que seus pais foram; eu nunca quis. Pense num “cába” com DNA de classe média! A ânsia de riqueza impele para o estrelato os sertanejos que vão para a cidade grande, os suburbanos cujo sonho é uma cobertura na Zona Sul, os filhos de operários que não sentem propriamente inveja do destino paterno. Todo esse pessoal corre atrás do dinheiro pensando em subir para o andar de cima. Eu, curiosamente, me acostumei com este lugar aqui onde meus pais me deixaram, só quero é poder curtir a janela e a paisagem.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

0640) Autobiografias (7.4.2005)



“Resuma sua vida em umas poucas palavras”. É um desafio inquietante, mas milhares de indivíduos já o enfrentaram, quando tiveram de colocar um título em suas autobiografias. Não direi que o título de um tal livro define a personalidade de quem o escreveu, até porque na confecção desses títulos influem também a vaidade, a arrogância, a falsa modéstia. Em todo caso, é como dizem os psicanalistas: “Tudo que não vale como verdade vale como sintoma”.

Minha Vida é de todos o título mais invisível, mais anódino, um título-placebo que todo mundo já escolheu, do incendiário Leon Trotsky ao vaselinoso Bill Clinton. Mais sutil é o título escolhido por Rudyard Kipling, que intitulou suas discretas memórias Something of Myself, título que para Jorge Luís Borges era justo mas podia ser melhorado para “Very Little of Myself”. Robert Bloch, o autor de Psicose, recorreu a um trocadilho, Once around the bloch, que numa possível tradução brasileira poderia ser adaptado para O Bloch do eu sozinho.

A primeira autobiografia que li foi Pelos caminhos de minha vida, de A. J. Cronin (sim, amigos, era um de meus autores prediletos na adolescência, e ainda gosto); a segunda foi Meus verdes anos de José Lins do Rego. Títulos com um sentimentalismo à beira da pieguice, o que deve ser evitado. Gosto de títulos presunçosos mas bem-humorados como o My wicked, wicked ways (algo como “Minhas sacanagens”) do grande mulherengo que foi o ator Errol Flynn. Mas acima de tudo prefiro os títulos misteriosamente poéticos como The Motion of Light in Water (“O movimento da luz na água”) do escritor de ficção científica Samuel R. Delany, ou A Postillion Struck by Lightning (“Um cocheiro atingido por um raio”) do ator Dirk Bogarde. O filho de Charles Chaplin, Michael, intitulou seu livro de memórias I couldn´t smoke the grass on my father´s lawn (“Nunca fumei maconha no jardim de meu pai”), mas, dadas as propriedades notoriamente amnesíacas do THC, pode ser que ele esteja equivocado.

O escritor Medeiros e Albuquerque tem um título autobiográfico encantador: Quando eu era vivo. Com sutileza, ele admite, num mesmo gesto, sua morte e sua imortalidade. José Américo de Almeida intitulou suas memórias com o precavido Antes que me esqueça, enquanto o diretor de TV Daniel Filho optou pelo angustiado (e talvez profético) Antes que me esqueçam.

O cineasta Roger Vadim produziu um dos títulos de autobiografia mais surpreendentes (embora, em retrospecto, previsível, e até inevitável): Bardot, Deneuve, Fonda. Ninguém perdoou ao grande conquistador resumir sua própria vida ao nome de suas ex-esposas mais belas e mais famosas – como já não lhe tinham perdoado a conquista de cada uma das três. Calma, colegas. Tiremos o chapéu com respeito para um sujeito que, não importa se seus filmes eram bons ou maus, foi contemplado não apenas uma, mas três vezes consecutivas, com o Paraíso.

0639) A dor e a delícia (6.4.2005)




(Pablo Picasso)

Algum tempo atrás falei aqui que escrevo esta coluna “com um pé nas costas”, e que ela não me exige nenhum esforço mental. Gostaria de corrigir esta leviandade, se ainda der tempo. Na verdade eu devia estar me referindo ao próprio texto que eu escrevia naquele momento, feito provavelmente enquanto eu bebericava um café e esperava um telefonema. 

Nem tudo é assim tão fácil. Já houve muitos casos em que comecei a escrever sobre um determinado assunto, percebi que não estava tão bem informado sobre o tema como imaginara, e fiquei das duas da tarde às dez da noite lendo alguns livros a respeito. Depois, escrevi o artigo em uma hora, e mandei.

Alguém irá me cochichar que a relação custo-benefício desse trabalho é meio deficitária, mas este linguajar de economês me lembra uma história de meus tempos de estudante. Meu guru João Antonio de Paula, que dirigia o cineclube de escola de Economia, comentou certa vez: 

“Rapaz... Marx era fogo. Ele só falava de um assunto se ele entendesse mesmo. Se ele queria escrever um artigo sobre operários de usina siderúrgica, ele ia no Museu Britânico e lia todos os livros sobre siderurgia que tivesse lá.” 

Por alguma razão misteriosa, esta informação incrustou-se em meu cérebro como um Projeto de Vida, um Estatuto de Conduta. Eu senti naquele exato instante, numa fria tarde belorizontina de 1971, que a vida humana só fazia sentido se um sujeito se comportasse exatamente daquela forma. E continuo achando, embora esta certeza esteja hoje temperada pelo bom senso.

Escrever é pensar em voz alta, é improvisar, mesmo quando a gente pesquisa até cair de sono. Nunca sabemos se dez horas de estudo nos renderão uma idéia sequer que se aproveite. O resultado às vezes é inversamente proporcional ao esforço, mas isto não é pretexto para que a gente se esforce menos. 

As boas idéias sempre nos dão a impressão de terem caído do céu. Dizia um poeta francês: “On ne cherche pas, on trouve”. A gente não procura: acha. (Fui dar uma peruada no Google: a frase é atribuída a Picasso, mas eu pensava que o autor era Alfred de Musset, Alfred de Vigny, um desses caras.)

Todo trabalho envolve a dor de ficar procurando em vão e a delícia de ver uma idéia genial cair do céu no colo da gente. Mas mesmo quando a idéia cai do céu o sujeito ainda tem trabalho. É preciso levantar da poltrona, pegar o caderno, pegar a caneta, e ficar prendendo a idéia no papel para que ela não saia voando pela janela e vá pousar no juízo de alguém mais disposto. 

Sabem por que os grandes cantadores de viola improvisam aqueles versos tão geniais? Porque improvisam o tempo todo. Quando você vir um cantador calado, o olhar perdido no teto, ou paradão no ponto de ônibus, ou fumando um cigarro no terraço, pode ter certeza de que ele está fazendo sextilhas, está glosando motes que ele mesmo inventa, está produzindo pepitas de ouro e jogando-as de volta ao rio, para procurar por elas quando alguém um dia lhe pedir uma.







0638) Monteiro Lobato (5.4.2005)



Cresci devorando os livros infantis de Monteiro Lobato. Li cada um deles mais de trinta vezes. Alguns, como História do Mundo para as Crianças ou Emília no País da Gramática, não menos de cem. Por que? Acho que porque eu era meio burrinho e acabava me esquecendo. Só sei que a releitura sempre me deu tanto prazer quanto a leitura inicial.

Nunca me dei bem com a literatura adulta de Lobato, que mesmo assim tem vários contos bons. Mas o linguajar era pomposo, o que nos mostra que as crianças de 1930 eram mais contemporâneas nossas do que os adultos. Sessenta, setenta anos depois de escritos, os livros do Picapau Amarelo mantêm uma fluência espantosa de narração, de descrição, de diálogo, de peripécias. Claro que alguns livros são meras dramatizações para fins didáticos, de ensino de história, geografia, física, astronomia. Mas mesmo no interior destes há episódios de enorme originalidade. Não posso imaginar melhor introdução à mitologia grega do que O Minotauro e Os Doze Trabalhos de Hércules.

Sua trilogia de ficção científica é muitíssimo original. Viagem ao Céu (1932) daria um belo filme de animação, com o seu São Jorge, seus marcianos cheios de crocotós, a cena da patinação nos anéis de Saturno. A Chave do Tamanho (1942) é talvez nosso primeiro livro sobre miniaturização de seres humanos, e um livro curiosamente cruel e sombrio, refletindo talvez a época da Guerra. A Reforma da Natureza (1941) mostra Emília fazendo alterações absurdas no mundo natural, agigantando insetos, tudo que o cinema americano faria na década seguinte.

Os seus livros com temas especificamente rurais são deliciosos: O Saci (1921), Caçadas de Pedrinho (1933). Sem falar no mais rico de todos, Reinações de Narizinho, de 1931, mas cujas histórias isoladas já vinham sendo publicadas desde 1920. Nos livros de Lobato, os garotos do Sítio contracenam com Dom Quixote, Tom Mix, heróis da Mitologia grega, cientistas americanos, São Jorge e Peter Pan. Sua salada cultural tem a impressionante credibilidade das histórias escritas por quem escreve pensando na história, e não em si mesmo ou no mercado editorial.

Monteiro Lobato foi um entusiasta da civilização norte-americana, embora tivesse dela uma visão distorcida, como mostrou em seu livro adulto de FC, O Presidente Negro. Vivendo num Brasil rural, que saía da hibernação do Império para a modorra da República, ele via nos EUA um sonho futurista de eficiência, seriedade, pragmatismo e espírito científico. Fico imaginando como veria o Brasil de hoje, que está se americanizando da pior forma possível, absorvendo a negação dessas qualidades com que ele sonhava.

Existem bons autores de livros infantis hoje em dia, mas foram Lobato e Malba Tahan os escritores que formataram a cabeça de sucessivas gerações de brasileiros. Graças a eles, dezenas de milhões de garotos como eu escaparam da burrice. Um país que tem dois escritores como estes não pode dar errado.

0637) As horas vagas (3.4.2005)




(gravura de Hokusai)

Tenho olho para perceber padrões recorrentes, eventos que se repetem de forma regular. Fiquei sabendo que o ator John Travolta gosta de pilotar aviões, e é dono de vários – estou falando de Boeings, não de jatinhos. E já sabia que o ex-técnico da Seleção, Carlos Alberto Parreira, pinta paisagens marinhas a óleo, as quais são até boas, considerando que as possibilidades de inovação no gênero andam por uma peínha de nada. Arthur C. Clarke é conhecido como escritor de ficção científica, mas a maior parte de sua vida foi dedicada ao mergulho submarino, e por isto mesmo foi morar no Sri Lanka, onde a água é mais confortável do que a da Inglaterra.

Einstein adorava tocar violino, e o fazia pessimamente, mas quem era doido de dizer que o maior gênio da humanidade não sabia fazer isso ou aquilo? Muito mais sorte têm músicos como Paulinho da Viola e Geraldo Azevedo, que são extremamente jeitosos com o serrote e o formão, e fazem trabalhos de marcenaria elogiado por todos. Nem todas as ocupações paralelas são tão louváveis como estas: descobrimos há pouco que o publicitário Duda Mendonça se dedica à briga-de-galos, um esporte absurdo e brutal cuja idéia só pode ter ocorrido a uma alma raposeira. Cadeia nessa galera!

Muitos indivíduos têm uma face pública, profissional, que os define aos olhos da sociedade, e muitas vezes essa atividade é a que eles escolheram para definir sua missão na Terra. É o que eles vieram fazer aqui. Mas as pressões profissionais são tão grandes que eles começam a inventar uma outra atividade, uma missão paralela desconhecida do público, e por isto mesmo mais pacífica, sombreada, amadorística, com aquele gosto relaxante de arte-pela-arte.

O que fazemos nas horas vagas nos define, tanto quanto o que fazemos nas horas de trabalho. Estas horas são “vagas” não apenas porque são “vazias”, mas porque são “imprecisas, indefinidas”, ninguém nos ordena coisa alguma, ninguém nos pressiona a fazer isto e não-fazer aquilo, e muitas vezes é o mundo que um sujeito cria nas horas vagas que acaba resgatando-o, depois que o que fez em sua profissão se dilui em irrelevância. O chefe-de-gabinete do Ministro Capanema costumava rabiscar nas horas vagas poemas como “A máquina do mundo” ou “A flor e a náusea”. O professor de Geografia e Corografia no Colégio Pedro II dedicava suas horas vagas a produzir poemas como “Monólogo de uma Sombra” ou “Versos Íntimos”. E nem todo mundo sabe que o humorista Jaguar dedicou apenas as horas vagas ao cartum, ao humor e à boemia, visto que seu “tempo oficial” sempre foi dedicado aos fluorescentes cenários do Banco do Brasil.

As horas vagas são muitas vezes as nossas horas mais importantes, e permitam-me um último trocadilho: são vagas porque são ondas, retornam como o mar e nos reconfortam. Elas nos convencem de que precisamos dessas oscilações rítmicas entre o que o Mundo nos exige que façamos e aquilo que nós mesmos resolvemos fazer e não tem Mundo que empate.


0636) O falso bis (2.4.2005)



Não agüento mais o tal do “falso bis” que virou uma moda nos shows, de uns 20 anos pra cá. Depois de uma hora e meia de show, a gente sente que está perto do fim. As músicas vão num “crescendo”, aí depois da mais animada delas a banda finaliza, tira os instrumentos do pescoço, acena, se despede, “Aí galera, valeu, brigadão, vocês são maravilhosos, té a próxima”, e sai do palco. Luzes do palco se apagam, som é desligado.

Aí, duas coisas podem acontecer. Uma delas é a platéia estar tão animada, ou ter gostado tanto do show, que quer mais, mais, mais. Não arreda pé dali, e tome palma, e tome a bater com os pés no chão, e a esmurrar as mesas, gritar, pedir. E os minutos estão se passando. Os músicos já voltaram ao camarim, jogaram no chão as camisas empapadas de suor, passaram uma toalha ou tomaram um chuveiro rápido, um acendeu um cigarro, outro abriu uma cerveja... Aí chega alguém da produção: “Olha, vocês vão ter que voltar ao palco, senão eles quebram tudo, o pessoal tá enlouquecido. Volta lá e faz um bis”.

Quando isso acontece, tudo bem. Mas, pasmem. Em 99% dos shows que ocorrem no Brasil, não é assim. A banda encerra, sai do palco, some nas coxias, e aí as palmas vão morrendo. Todo mundo volta sua atenção para a mesa, as cervejas, os pratinhos, a conta. Todos gostaram do show, estão satisfeitos. Ninguém está batendo palma. Ouve-se apenas o zum-zum-zum da conversa, dos comentários, “adorei aquela música nova”, “você viu aquele solo de bateria, que coisa”, todo mundo feliz com um show que satisfez a expectativa. Aí... de repente... as luzes do palco se acendem! A banda está voltando! O vocalista pega o microfone, “Tudo bem, galera, já que vocês insistem...” Aí cantam duas ou três músicas que não tinham cantado até então. Ninguém pediu que voltassem. Mas eles não querem ir embora sem mostrar aquelas músicas que visivelmente estavam ensaiadas para fazer parte do show.

Se não me engano foi Rita Lee no fim dos anos 1970, na época de “Mania de Você”, quem inventou essa moda: no bis, em vez de repetir uma música, mostrava um pequeno bloco de canções que não tinham sido cantadas ainda no show. Era uma surpresa, uma delícia para a euforia da platéia. Na época foi vanguarda, foi inovação. Hoje, virou cacoete insuportável, repetição mecânica e idiota de um ritual sem sentido. Acabem com isso, coleguinhas. Não tem nada a ver. A gente concede “bis” a uma platéia quando ela pede, e pede muito, depois de dez minutos ininterruptos de gritos e sapateios. Não paguem o mico de voltar ao palco sem ninguém ter chamado. Sabem o que se diz nas mesas? “Oxente, lá vem o besta de novo, não me diga que vai recomeçar tudo...”

Músicos voltam ao palco porque o bis, em vez de ser uma exceção, virou uma obrigação, uma regra besta. Na mentalidade idiota de hoje, show sem bis é porque não prestou. Tá errado. Façam o show de A a Z, e se acharem que ainda não satisfizeram a platéia, então é porque o show é ruim mesmo, arrumem uma lavagem-de-roupa e esqueçam esse negócio de música.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

0635) A culpa é da cerveja (1.4.2005)



Se juntassem toda a cerveja que eu já bebi, e a derramassem toda num só lugar, resultaria em algo parecido com o Mar Cáspio ou o Lago Titicaca. E não me arrependo, porque devo a esta simpática bebida alguns dos momentos mais agradáveis que já vivi. Não por causa dela propriamente dita, mas porque beber cerveja sempre foi para mim um mero complemento da presença de amigos, amigas, violão, muita conversa, muita alegria de viver. A cerveja é como o celofane e a fita colorida no presente de Natal: ajuda a criar um clima, mas não é A Coisa Em Si.

Compulsando velhos cadernos meus, encontrei uma estatística interessante, do tempo de quando o Brasil vivia naquela inflação desesperadora. Toda vez em que eu mexo nesses papéis antigos, eu encontro aqueles cálculos domésticos de fim-de-mês. E está lá: “Aluguel, 15 milhões. Luz, 2 milhões e 500. Gás, 1 milhão e 800. Supermercado, 12 milhões e 300”. E assim por diante. E não me perguntem a moeda: era cruzado velho, cruzeiro novo, sei lá o quê.

Vai daí que para me lembrar do valor das coisas eu associava produtos. E essa anotação que achei era um parâmetro para fixar preço de show. Em 1990-e-pouco eu fiz dois shows na Paraíba, um no Paulo Pontes e outro no Teatro Municipal em Campina. E anotei: “O ingresso custa o mesmo que uma passagem Campina-João Pessoa e que uma cerveja em garrafa”. Quanto seria um ingresso de show hoje? Uns 15 reais. Quanto está a passagem da Real? Da última vez que viajei, estava a uns 12. E agora me respondam quanto custa num bar da Paraíba uma garrafa de cerveja.

Não há coisa mais barata do que cerveja. Aquela latinha pela qual você paga 2 reais num show de rock custa 0,70 no supermercado. Vejam esta resultado da Pesquisa Industrial Anual de Produto (PIA/Produto), feita em 2001. Ela fornece uma lista com os 100 produtos mais vendidos no país. A cerveja, em 1980, estava em 41o. lugar; em 2001 tinha passado para quarto. A substituição da velha garrafa (“leva ali dez cascos na bodega...”) pela latinha contribuiu para este salto, mas acima de tudo eu acho (isto aqui é mera suposição minha) que o que houve foi uma enorme “expansão da base consumidora”.

Qualquer pirralho de 14 anos hoje em dia já está encarando uma desce-redondo, uma boa ou uma número um. No país da economia informal, muita gente descobriu que comprar latinhas a menos de um real e vender pelo dobro é bom negócio, quando você leva um isopor prum show de rock e vende 200 numa noite. Milhares de pais e mães de família sobrevivem catando latinhas de alumínio para reciclagem. Isto é o lado positivo desta curiosa situação econômica em que aumenta a demanda de um produto e o preço, em vez de subir, cai. Se me perguntassem: “Queres um Ministério? Queres uma ilha no Caribe? Queres um campo de petróleo no Oriente Médio?”, eu responderia: “Não quero nada disso, ó tetrarca. Eu quero uma cervejaria, e todo esse resto vem na seqüência”.

0634) O leitor Borges (31.3.2005)



A obra de Jorge Luís Borges vem sendo editada no Brasil com uma minúcia digna de aplausos, mas ainda espero ver à disposição do leitor brasileiro um livrinho que tenho achado essencial para entender o escritor argentino. Trata-se de Textos Cautivos (Madrid, Alianza Editorial, 1998). É um volume de bolso, com 342 páginas, que reúne os textos publicados por Borges entre 1936 e 1939 na revista El Hogar de Buenos Aires. Neles já estão presentes as idéias e as influências do futuro ficcionista: a noção da metafísica como literatura, as indagações sobre o Espaço e o Tempo, a identificação com a novela britânica e com os romances policiais. São 13 pequenos ensaios sobre temas gerais, 48 biografias sintéticas de escritores que vão de Benedetto Croce a Virginia Woolf, 130 resenhas de obras variadas, e 16 fragmentos curtos.

O livro dá uma visão geral de Borges no momento decisivo de sua vida. Àquela altura, ele era conhecido como poeta, e já tinha publicado alguns de seus melhores livros de ensaios (Discussão, História da Eternidade). Em 1938 seu pai morreu, deixando-o (pelo menos nominalmente) como o chefe da família; e no Natal daquele ano Borges sofreu um acidente, um corte na cabeça que infeccionou, deixando-o por duas semanas em perigo de vida. Estes fatos podem ter contribuído para que, ao se dedicar à prosa de ficção a partir daí, ele tenha concentrado nela todo o seu projeto literário – com os resultados que já sabemos.

Um mito que estes artigos desmontam é o de que Borges era um leitor preguiçoso, que não gostava de ler romances. Ele se queixava, com certa ironia, de não ter podido ler até o fim Madame Bovary ou Os irmãos Karamazov; dizia ser um leitor de contos, tendo lido alguns poucos romances “apenas por um senso de obrigação”. Tenho visto esta citação sendo repetida a torto e a direito, e gostaria de fazer-lhe uns pequenos reparos. Vejo, por exemplo, o que diz Borges em 19 de maio de 1939 sobre o romance policial The Four of Hearts de Ellery Queen: “Li em duas noites os vinte e três capítulos que compõem ‘The Four of Hearts’ e nenhuma de suas páginas me entediou”. Comentando o romance sentimental Maria do colombiano Jorge Isaacs, ele contesta os críticos que consideram o romance ilegível, e depõe: “Só posso dar meu testemunho de haver lido ontem sem dor as trezentas e setenta páginas que o compõem, suavizadas por gravuras em zinco. Ontem, no dia vinte e quatro de abril de 1937, das 2:15 da tarde às 8:50 da noite, o romance Maria era bastante legível.”

Borges era um leitor capaz de devorar romances populares e obscuros tratados metafísicos em alemão ou latim, mas desistia, impaciente, na metade de alguns clássicos do romance psicológico e realista. Longe de ser um leitor preguiçoso, era um leitor calejado e, ao que parece, com aquele imenso poder de concentração mental reservado aos míopes e tímidos. Um leitor temível, a quem não era fácil agradar.

0633) O mundo como matemática (30.3.2005)


(Quadro digital de Ray Caesar)

O artista gráfico Ray Caesar http://www.raycaesar.com/pages/GalleryIndex.html) diz que toda vez que desliga seu computador fica imaginando para onde foram todos os seus trabalhos. Isto me lembra Jorge Luis Borges, que quando era pequeno ficava maravilhado com o fato de as letras dos livros não se embaralharem todas durante a noite, depois que apagavam-se as luzes da biblioteca e todo mundo ia dormir.

Como tanta coisas que as crianças dizem, a idéia de Borges faz sentido. Mais do que a “fisicalidade” dos livros e das letras ele percebia, intuitivamente, que aquelas superfícies brancas com pequeninas manchas de tinta negra não eram “a coisa em si”, eram uma mera representação gráfica de sons. As sílabas escritas “cachorro” representam a palavra falada, que por sua vez representa a criatura propriamente dita. Daí é somente um passo para acreditar, como acreditava Borges seguindo a batuta de Platão, que as criaturas físicas do nosso mundo também são meras representações de idéias abstratas, “arquétipos platônicos” que existem numa super-realidade que nos é inacessível.

Aí, é claro, entra uma outra discussão, que não vou resolver aqui porque a Humanidade inteira não resolveu nestes milênios todos: no mundo dos arquétipos platônicos existe o arquétipo Cachorro, representando todos os animais desse tipo, ou há arquétipos específicos – o Pitbull, o Galgo, o Lulu da Pomerânia? Porque se admitimos que há um Modelo Metafísico para cada um, é apenas um passo para admitirmos a possibilidade de que haja um Arquétipo para meu cachorro, e outro para o cachorro do vizinho. Ou seja: uma diluição e multiplicação que acaba por tornar desnecessário o próprio conceito de Arquétipo.

Voltemos ao artista gráfico. O que faz ele? Produz cenários e bonecos virtuais, em 3-D, moldando imagens com o mouse e o teclado. É como lidar com massinha-de-modelar, só que virtual. Depois de modelar as formas, é só selecionar uma textura (pele humana, pedra, madeira, palha, etc.) e aplicá-la sobre a forma. Tudo isto é visível no monitor, e resulta em curiosas (e um tanto mórbidas) casas de bonecas onde é sugerido um clima de inquietação e ameaça. Mas o comentário do artista é: “Para onde vão todas as minhas obras, quando desligo o computador?” Porque elas não têm existência física. São um mero conjunto de instruções matemáticas que, no interior do programa de design que ele utiliza, são reproduzidas no monitor como imagens coloridas. No momento em que o monitor é desligado, a imagem se evapora, e tudo que sobra são as instruções matemáticas gravadas no HD. Arquétipos platônicos, fórmulas abstratas, equações gravadas em bits numa superfície de silício.

Diz Ray Caesar: “Me fascina saber que este espaço tridimensional continua a existir noutro nível de realidade quando desligo o computador. Ele existe, mas como uma probabilidade matemática, e me inquieta pensar que este universo onde também existimos possa ter a mesma natureza.”

0632) A vida gosta de mim (29.3.2005)



Está em cartaz no Rio um musical sobre Braguinha, ou “João de Barro”. Muita gente não lembra, muita gente nunca ouviu falar, mas o teste da fama de um compositor não é seu nome nem sua foto, é cantarolar alguma música sua. No caso de Braguinha, são centenas. Pode-se começar com “Existem praias tão lindas, cheias de luz / nenhuma tem o encanto que tu possuis...” Era a voz de Dick Farney, cantando as belezas de Copacabana; uma época romântica do Rio de Janeiro, um Rio sensual onde as mulheres usavam maiô completo e Copacabana ainda não era submundo. Ou poderíamos cantar “Eu fui às touradas em Madri / e quase não volto mais aqui, i-í...” Foi a música que o Maracanã inteiro cantou quando o Brasil enfiou 6x1 na Espanha, na Copa de 50.

Vou ficar por aqui, porque o repertório de Braguinha é vasto (não esqueçamos as canções infantis: “Pela estrada afora eu vou tão sozinha / levar estes doces para a vovozinha...”). O que eu quero lembrar aqui é o título deste espetáculo em cartaz, uma frase que ouvi Braguinha dizer numa entrevista à TV, há cerca de vinte anos, e que nunca me saiu da cabeça: “A vida só gosta de quem gosta dela”.

Fala-se muito em auto-ajuda hoje em dia, e meus amigos intelectuais costumam ridicularizar os livros de auto-ajuda, achando que quem ajuda a si mesmo é um idiota. Bem, eu me acho tão intelectual (e tão idiota) quanto qualquer um que vocês botarem na minha frente, mas o intelecto nunca me salvou de, neste ou naquele momento, ficar deprimido, pessimista, arrasado, com vontade de dormir e não acordar mais (dizem que os intelectuais se suicidam pouco porque nunca conseguem produzir um bilhete-de-despedida que considerem à altura da própria reputação). E em muitos momentos que me senti assim, em momentos em que ficava me considerando “a mosca que pousou no cocô do cavalo do bandido que morre no trailer dum filme nacional”, nesses momentos me vinha à mente a insinuação melíflua de Fernando Pessoa (“Se te queres matar, por que não te queres matar?”), e me vinha a vozinha miúda e quase infantil de Braguinha, na TV, com sua cabeleira já branca, dizendo com singeleza: “A vida só gosta de quem gosta dela”.

Parece um truísmo, uma obviedade, uma tautologia. Mas eu olhava em volta e via divergências. Me lembro da banda recifense “Devotos do Ódio”, título inspirado num livro de José Louzeiro. Parece que esse nome deu problema, e a banda agora se chama somente “Devotos”. Me lembro de um livro do grande contista João Antonio, já falecido, e que tinha este título arrepiante: “Abraçado ao meu rancor”. Eu não sei que tipo de sentimentos levam os caras a botar títulos assim em seus livros, mas pressinto nisto um azinhavre da alma, um travo de dor e de amargura mal resolvida, um sofrimento tão entranhado que a única maneira de manter a cabeça erguida é orgulhar-se de sofrer. A frase de Braguinha, no entanto, sempre me aconselhou a gostar da vida... e a achar que sou correspondido.

0631) O sorvete quente do rock (27.3.2005)



Eu estava conversando com amigos sobre momentos históricos que tínhamos presenciado sem lhes dar, no momento, a devida importância. Falávamos do rock brasileiro, e cada qual trazia suas lembranças. Eu lembrei que estava presente ao show de Caetano Veloso no Canecão quando ele cantou ao violão “Todo amor que houver nesta vida”, disse que Cazuza era um poeta fenomenal, e praticamente deslanchou ali a carreira do Barão Vermelho. Vi Cazuza e o Barão cantando Bete Balanço no Morro da Urca quando o filme de Lael Rodrigues tinha acabado de entrar em cartaz. Dei uma entrevista num programa de TV em São Paulo na mesma noite em que um jovem guitarrista chamado Lulu Santos também era entrevistado, lançando seu primeiro elepê.

Eu estava no Circo Voador na noite em que Tancredo Neves foi eleito no Colégio Eleitoral; foi logo após o Rock in Rio 85, e vi James Taylor cantando para um Circo onde tinha gente pendurada até no teto, e vi quando um idiota jogou uma lata de cerveja no gringo e quase foi linchado. Também no Circo Voador vi Renato Russo cantando “Come Together” e percebi que afinal de contas eu não era tão velho assim. Vi os Titãs tocando na boate Mamute da Tijuca, no que talvez tenha sido seu primeiro show no Rio, quando seu grande sucesso era “Sonífera Ilha”.

Momentos históricos? Em retrospecto, sim, porque é só em retrospecto que a História existe. Joguei no ar umas lembranças, meus amigos jogaram as deles, elas foram se entrecruzando umas às outras e se encorparam num tecido de vivências recíprocas, de memória coletiva, e só este tecido é que nos produzia a sensação de ter presenciado a História. Nossas recordações pessoais não são História, são a mera lembrança de uma noite em que a gente saiu para se divertir e viu uns caras tocando, tirando um som legal.

A História é como algodão-de-açúcar (que os cariocas chamam algodão-doce). Vocês lembram como se faz algodão-de-açúcar. Aquele troço quente vai girando, girando, queimando o açúcar, e os fiozinhos brancos vão aparecendo magicamente no ar, se entrecruzando, formando uma teia suspensa entre as paredes curvas de metal. Essa teia vai ficando mais espessa, até que uma nuvem branca se materializa ali, parecendo brotar do nada. Quando ela está sólida a ponto de poder ser cortada de faca, o cara corta um pedaço pra gente, pega ele com o auxílio de um quadradinho de papel-de-embrulho, e nos entrega: “É um cruzeiro...” A gente morde: o algodão-de-açúcar está quente, pegando fogo, mas se derrete na boca da gente como se fosse um sorvete. Assim são as memórias do rock. É tudo muito efêmero, tudo muito voltado para o momento a ser vivido, sem dar a mínima para a posteridade. Quem transporta aquilo para a posteridade somos nós, que ficamos décadas depois tentando explicar às pessoas a natureza estranha desse remédio contra a melancolia, desse sorvete quente que ao se desmanchar na nossa boca deixa uma boca um pouquinho mais feliz, e mais nada.

domingo, 2 de novembro de 2008

0630) A maldição da Internet (26.3.2005)


(cartum de Jules Feiffer)

A Internet enterrou minha carreira literária. Meu último livro de contos saiu em 1996, o mesmo ano em que me conectei pela primeira vez à Grande Rede. Isto significa que há quase uma década dedico minhas noites e madrugadas a ficar lendo de graça as obras alheias, em vez de escrever minhas próprias obras e ganhar dinheiro. Estou arrependido? Nem um pouco.

Não me arrependo porque qualquer sujeito de bom senso sabe que é possível dividir de forma equânime suas oito horas regulamentares de trabalho: quatro horas surfando no ciberespaço, quatro horas martelando no teclado para inventar a história de um sujeito que surfa no ciberespaço. Uma coisa não tem necessariamente que atrapalhar a outra.

Alguém há de lembrar que ultimamente tenho publicado muitos livros. Concordo, mas não são obras de literatura, obras que exijam audácia criativa e fôlego executante. São livros de ensaios, de poemas, de estudos cinematográficos, artigos de jornal... besteiras que eu faço com um pé nas costas, ouvindo rock e tomando café. Acreditem, escrever esta coluna todos os dias não me exige o mínimo esforço mental. Já está tudo pronto, é só tocar a ponta dos dedos no teclado e o restante simplesmente acontece.

Literatura é diferente. Escrever um romance é fogo. Já tentei escrever uns dez, escrevi dois, publiquei um. Comparo a escritura de um romance à composição de uma sinfonia, em que o sujeito tem que pensar uma obra inteira com umas duas horas de duração, e depois escrever o que 50 instrumentos diferentes estarão fazendo ao longo dessas duas horas. A gente tem que ficar dando polimento em detalhes mínimos, que provavelmente passarão despercebidos, mas que se não estiverem certos não nos deixarão dormir em paz; e ao mesmo tempo tem que ter sempre em mente o “desenho geral” da coisa. É como projetar por inteiro um prédio de vinte andares e ficar horas escolhendo um modelo de maçaneta para o armário do banheiro.

Escrever um livro tendo a Internet ao alcance de um clique? Impossível. Me lembra esses caras muito compenetrados que vão para a praia de Ipanema e ficam tentando ler a página de investimentos financeiros no meio daquele mar de bundas. Precisa muita força de vontade, muito sacerdócio para não se deixar cair em tentação. Meu deslize preferido é o seguinte. Eu penso: “Vou escrever um romance ambientado na época de Lampião. Será a história de dois irmãos, um que virou cangaceiro, outro que se alistou na volante. Em vez de levar os dois a um confronto final, que seria o lugar-comum mais óbvio, vou fazer com que os dois fiquem passando informações um para o outro, sobre os respectivos grupos, de tal modo que eles dão um jeito de nunca se enfrentarem”. Aí abro o Google e começo a fazer pesquisa: “almocreves”, “Raso da Catarina”, “armas de fogo da década de 1930”, “volantes”... Minha cultura geral vai às alturas, mas romance que é bom, babau Tia Chica.

0629) Michael Fox de olho no futuro (25.3.2005)



Vi uma entrevista do simpático Michael J. Fox no programa de David Letterman. Todo mundo conhece Fox pela trilogia De volta para o futuro. Ele agora está metido numa história de ficção científica verdadeira. Doente há 14 anos com o Mal de Parkinson, está servindo de garoto-propaganda para as instituições e os grupos de pesquisa que trabalham para encontrar uma cura para esta doença. Aparentemente, está resistindo bem. O Mal de Parkinson deixa o sujeito com tremores incontroláveis pelo corpo, e Fox por enquanto dá apenas a impressão de estar um pouco nervoso. Mas o mal é progressivo, e sem retorno.

O retorno pode vir através de pesquisas de laboratório, que possam curar a doença ou pelo menos retardar seu avanço. Aqui entramos noutro tema atual, que é a liberação jurídica para as pesquisas com células-tronco. E não há como não lembrar de outro ator de Hollywood, o super-homem Christopher Reeve, que caiu de um cavalo, partiu a espinha e ficou tetraplégico. Reeve passou seus anos de vida restante (morreu ano passado) fazendo campanha em favor das pesquisas de célula-tronco. E não foram poucos os jornalistas como eu, que têm a obrigação de pegar um mote antes que caia no chão, que escreveram colunas inteiras sobre a ironia daquele situação: o sujeito que interpretou Superman, o homem mais forte do mundo, o homem de aço, o homem que voa... imobilizado numa cadeira de rodas.

Agora a situação se repete meio diluidamente com Michael J. Fox, o rapaz que pegou a máquina-do-tempo, voltou ao passado, paquerou com a própria mãe, inventou o rock, depois voltou ao tempo do faroeste, foi ao futuro... Enfim: permitam-me a liberdade literária de dizer que se existe hoje em dia um sujeito consciente do quanto o Tempo se ramifica em direções opostas a cada decisão que tomamos, esse cara é MJF. E ele está literalmente correndo contra o Tempo, porque Parkinson é uma dessas doenças degenerativas do tipo “devagar e sempre”. Ele recebeu o diagnóstico em 1991, e hoje, perto de fazer 44 anos, continua indo à luta. “É possível descobrir uma cura por volta de 2010”, diz ele, otimista e inquieto.

Quem quiser saber mais pode ir ao saite: http://www.michaeljfox.org/. Há cerca de um milhão de pessoas nos EUA com o Mal de Parkinson, para não falar em outras doenças neurológicas como Alzheimer (que matou Ronald Reagan) ou o Mal de Huntington (que matou Woody Guthrie). É uma pesquisa delicada, porque mexe com o cérebro e o sistema nervoso central, mas é o tipo da coisa em que americano gosta de investir, porque no dia em que descobrirem um remédio o dono dele vai encher o bolso de grana.

É animador saber que a Fundação Michael J. Fox conseguiu, desde o ano 2000, mais de 50 milhões de dólares em doações para pesquisa e desenvolvimento de remédios. Confesso, por outro lado, que é meio desanimador saber que os EUA gastam 4 bilhões de dólares por mês com a Guerra do Iraque.

0628) Eu vou estar enviando (24.3.2005)



É a mais recente praga que se alastra pela língua portuguesa do Brasil, e seu principal grupo de risco são os executivos empresariais e suas secretárias. “Pois não, senhor... Eu vou estar enviando o seu contrato amanhã cedo...” Esta construção tão desajeitada é uma tradução aproximada do inglês “I shall (ou “I will”) be sending you the contract tomorrow morning...” Se você quiser que a língua inglesa desmorone como as Muralhas de Jericó é só retirar-lhe os verbos auxiliares (e os pronomes também, aliás), e ninguém conjuga mais nada. Português não é assim. Se você disser: “Enviarei seu contrato amanhã cedo”, todo mundo entende. Mas não, o pessoal acha que é um defeito usar uma palavra só quando podem-se amontoar três ou quatro, e em razão disto eles vão estar amontoando esses monstrengos até o dia do Juízo Final.

O linguajar “burocratês” tem uma longa folha-corrida de delitos cometidos contra a beleza, a funcionalidade ou a simplicidade do idioma; às vezes, contra os três numa tacada só. A razão principal disto é a tentativa de parecer chique. Se vocês prestarem atenção, verão que no linguajar dos escritórios existe uma separação tipo “casa grande & senzala” entre verbos sinônimos; sempre existe um verbo “chique” para substituir um sinônimo “vulgar”. Por exemplo: em burocratês as pessoas não esperam: elas aguardam. Ninguém manda uma carta: envia, ou remete. Na burocracia, ninguém pede: solicita. Em caso de dúvida, não se deve perguntar, e sim indagar. Os chefes não mandam: eles determinam. E assim por diante.

Faço esta crítica porque acho que a razão dela está muito próxima à de uma outra batalha que se trava por aí: a do uso indiscriminado de aportuguesamentos de palavras em inglês. Eu não tenho preconceitos nacionalistas, como aliás deve ser óbvio para quem lê esta coluna. Acho normal dizer saite, draive, acessar, deletar, deu um bug. Ainda não acertei a dizer mause em vez de “mouse” mas um dia eu chego lá. Qual é o problema, então? O problema é que estes termos não foram criados por submissão colonizada à língua do imperialismo, mas por simplicidade, atalho, encurtamento de caminhos para a expressão. Não é o caso das expressões no parágrafo acima, em cujo uso eu detecto uma angústia freudiana de parecer chique, de se distanciar da classe social imediatamente abaixo.

O problema não é aportuguesar palavras em inglês, é escrever em português como se fosse um inglês mal traduzido. Sou um leitor de histórias em quadrinhos, mas a qualidade da tradução dos álbuns é constrangedora. Prefiro pagar o triplo e ler no original, porque pelo menos vou ter uma idéia do que os personagens estão dizendo. Quando deformamos, diluímos e sub-aproveitamos o português, aí sim, estamos abrindo caminho para que outras línguas o suplantem, porque tudo que dizemos nessas outras línguas parece fazer sentido, e a nossa própria língua parecerá sempre uma tradução mal-feita.

0627) O recado na pedra (23.3.2005)



Minha mãe contava uma história que não sei se ouviu contar, ou se sucedeu com alguém conhecido, no seu tempo de infância. Numa localidade qualquer havia uma pedra grande e pesada, à beira de um caminho, com uma inscrição já meio apagada, que, soletrada com paciência, dizia: “Aquele que me virar, grande cabedal achará”. Quando um sujeito lia aquilo, seus olhos enchiam-se de cifrões, ele botava mãos à obra, pegava um galho de aroeira para fazer alavanca, e, com algum esforço, conseguia virar a pedra. Na face de baixo podia-se ler outra inscrição: “Deus te ajude a quem me virou”. A gente se divertia muito com esta anedota, e acho que uma das primeiras idéias próprias que tive na vida foi imaginar que a peça pregada pelo humorista anônimo só seria possível se a vítima virasse a pedra de novo, deixando a primeira inscrição para cima, para pegar o próximo besta.

Isto me veio à mente agora, quando li a história da maldição de Pedra de Carlisle, uma pequena cidade inglesa. Em 2001, um artista plástico local, Gordon Young, produziu uma obra para um museu da cidade. Ele pegou uma pedra enorme, da altura de uma pessoa, pesando 7 toneladas e meia, e nela copiou um texto antigo: uma maldição proferida em 1525 pelo Arcebispo de Glasgow. (Não me perguntem a finalidade disto, é coisa de artista plástico, e pronto.) Desde sua instalação, a pedra foi violentamente combatida pelos evangélicos locais. E agora tem gente atribuindo à pedra tudo de ruim que têm sucedido a Carlisle: desemprego, surtos da doença da vaca-louca, um incêndio, inundações, e até mesmo a má campanha do time local no Campeonato Inglês.

A maldição do século 16 se voltava contra os “reivers” (forma antiga de “reavers”): assaltantes, estupradores, malfeitores em geral. Dias atrás, o Conselho Municipal se reuniu e decidiu que a pedra não seria destruída, pois não havia nenhum motivo sensato para responsabilizá-la por problemas que acontecem no país inteiro. A verdade é que inscrições em pedra têm uma credibilidade enorme, justificando aquele provérbio de que o escrito na areia passa, e o escrito na pedra fica. Dizem que o túmulo de Shakespeare, em Stratford-upon-Avon, tem escrito na lápide: “Maldito seja quem tocar nestes ossos”, e que até hoje não teve ninguém que ousasse desobedecer. Isso me faz pensar que no túmulo de Tutankamon devia haver algo parecido, só que escrito em hieróglifos egípcios. Ninguém se deu ao trabalho de traduzir, foi logo botando a porta abaixo, e eis aí a “Maldição do Faraó”.

A história da Pedra de Carlisle é curiosa: sugere que uma praga rogada contra criminosos do passado possa prejudicar, hoje, os descendentes de quem a proferiu. Se é para acreditar na eficácia dessas coisas, acho que seria mais sensato considerar a Pedra um talismã, uma proteção contra os bandidos. A reação que houve é típica de quem crê no poder do Desconhecido mas não tem capacidade de dialogar criativamente com ele.



0626) “Desventuras em Série” (22.3.2005)



Literatura infantil é uma das formas mais difíceis de literatura, pela simples razão de que é feita por adultos, e a esmagadora maioria dos adultos não tem a menor idéia de como uma criança pensa. É natural. Tornar-se adulto significa fazer em si próprio uma lavagem cerebral para eliminar da memória todo o pesadelo que é ser criança num mundo que pertence aos adultos. Me lembra aquele conto de ficção científica onde os astronautas terrestres num planeta remoto vivem cercados de criaturas monstruosas, e concluem que sua única chance de sobreviverem ali é transformando-se nelas. Toda criança inteligente experimenta um dia um calafrio de terror ao perceber que para se tornar adulta talvez tenha que se tornar uma pessoa tão hipócrita e obtusa quanto alguns dos adultos que a cercam.

Os três órfãos Baudelaire do filme Desventuras em Série entram na longa linha de heróis da literatura (e agora do cinema) infantil que podem ser descritos como As Crianças Jogadas na Jaula dos Adultos. Um incêndio destrói a mansão de seus pais e os deixa órfãos, à mercê do terrível Conde Olaf, um canastrão caricato que a partir daí fará de tudo para livrar-se das crianças e herdar sua fortuna. O Conde Olaf é interpretado por Jim Carey, careteiro como sempre, mas perfeitamente sintonizado com o tom do filme. A direção artística, fotografia e cenografia do filme são nota dez. O roteiro tenta resumir três livros numa só história, e o resultado é um tanto atropelado e descontínuo.

Ao que parece, a série completa de livros de Lemony Snicket terá 13 volumes. São divertidos, caricaturais, sombrios, melodramaticamente pessimistas. Por outro lado, qualquer leitor sabe que tudo aquilo vai acabar bem, tal como acontece nos filmes da Família Adams, nos livros ilustrados de Edward Gorey ou nas histórias de terror de Tim Burton. São produtos semelhantes para leitores/espectadores de faixas de idade um pouco diferentes. Dirigem-se àqueles garotos e garotas, um pouco sádicos mas fundamentalmente bem-humorados e otimistas, que têm uma queda pelo nosso lado monstruoso, ameaçador, gótico. Gente que adora vampiros e lobisomens, porque sabe que não existem, mas vê com repulsa os serial-killers e outros monstros demasiado reais.

Falo com conhecimento de causa, porque fui (e de certo modo ainda sou) um desses garotos, gosto de mansões empoeiradas cheias de passagens secretas e armadilhas maquiavélicas. Gosto de vilões caricaturais que se disfarçam tão bem que nenhum adulto é capaz de reconhecê-los. Lemony Snicket batiza seus órfãos de Baudelaire; o inepto tutor das crianças é Mr. Poe. Fico com a vaga esperança de que meu filho, que já está no nono livro da série, reencontrará estes sobrenomes quando crescer, sentir-se-á afeiçoado a eles, e terá neles duas portas para o mundo sombrio de verdade, para o que de fato acontece na mente de quem foi um dia uma criança obrigada a enfrentar sozinha as armadilhas do mundo e a obtusidade dos adultos.