sábado, 27 de setembro de 2008

0558) Some strange music (1.1.2005)



Sou um fotógrafo sem câmera. Numa época saturada de arte conceitual, quem pode me negar o direito de tirar retratos puramente mentais das coisas que vejo à minha volta? Lá vou eu batendo pernas pela cidade, e quando vejo alguma cena interessante não preciso de mais do que alguns segundos para dar uma paradinha, prestar atenção com bem muita força, e depois seguir em meu caminho rumo ao Banco, que fecha daqui a cinco minutos. Pronto: a foto está tirada. O problema é que ainda não resolvi a questão de como criar um “fixador” mental, porque daí a poucos minutos ela volta a se dissolver em moléculas de esquecimento e entropia.

Dias atrás entrei no metrô e, quando o trem partiu, olhei em volta. Num banco próximo, havia um casal de adolescentes. Ambos vestiam o habitual coquetel de incongruências dos jovens de hoje, onde as roupas são cuidadosamente escolhidas para não combinar entre si. Estavam de mãos dadas, e dos ouvidos de ambos pendiam os fios dos fones de dois “walkmen”, o dela dentro da bolsa de pano bordado, o dele fazendo peso no bolso de cima da jaqueta de camuflagem do exército. A moça tinha uma expressão zen, beatífica, olhos entrecerrados, rosto ligeiramente voltado para cima: devia estar escutando as transcendências célticas de Loreena McKennitt ou os móbiles sonoros do Massive Attack. A cabeça dele, no entanto, mexia-se de um lado para o outro, ritmadamente, feito uma lagartixa com soluços, e não me perguntem que banda punk que ele devia estar escutando, pois não faço idéia dessas coisas.

Como diriam os cantores sertanejos: “É o amô-ô-ô!” Cada um mergulhado em seu universo íntimo, em suas próprias sonoridades e fantasias, mas ali, juntos, mãozinha na mãozinha. Para você estar ao lado de outra pessoa não precisa necessariamente estar compartilhando a totalidade de suas experiências. E aqui tiro um chapéu que nunca usei para Akio Morita, o presidente da Sony a quem devemos a invenção do walkman, esta preciosa engenhoca que nos permite escutar música personalizada sem a necessidade de nos isolarmos para isto. Vejo muitos críticos do mundo de hoje (todos eles, como eu, nascidos no mundo de ontem) dizerem que o walkman afasta as pessoas. Pois naquele vagão de metrô carioca tirei uma foto mental da prova em contrário. O walkman permite estarmos juntos ouvindo músicas separadas. Quantas donas-de-casa, mundo afora, não vivem forçadas a escutar o que lhes é imposto por maridos pagodeiros ou filhos heavy-metal?

Julio Cortázar, em Rayuela compara um casal a duas árvores lado a lado, capazes de entrelaçar suas folhagens, mas com os troncos erguendo “duas paralelas inconciliáveis”. Esta é uma metáfora vetorial, cujo sentido depende da ordem da leitura. Sou mais otimista do que Cortázar, inverto a direção, e digo que todo casal consiste, de fato, em duas linhas paralelas, podem estar mil quilômetros distantes, mas desde que estejam de dedos entrelaçados podem ouvir o que lhes dá na telha.

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