quarta-feira, 13 de agosto de 2008

0510) O autista e o amor (6.11.2004)




(Greg Egan, Klein's Quartic Curve, http://math.ucr.edu/home/baez/KleinDual.gif)

Uma característica comum a vários tipos de autismo é a incapacidade de perceber subtextos, segundas intenções. Jovens ou adultos autistas têm a tendência de interpretar ao pé da letra o que ouvem; não conseguem entender uma ironia. 

Um autista vê um sujeito suado, carregando nas costas uma pedra de 50 quilos, e pergunta: “Como vai?”. “Estou ótimo,” diz o outro, “nunca me senti melhor em minha vida.” E o autista vai embora satisfeito, acreditando piamente no que ouviu. 

Um autista não consegue jogar pôquer direito. Ele absorve com rapidez as regras do jogo, porque tem sempre uma habilidade espantosa para números, séries, etc. Mas não entende o que é um blefe.

Vai daí que muitos autistas não têm senso de humor, porque o senso de humor depende muitas vezes de um duplo sentido, depende da nossa capacidade de interpretar uma frase ou uma situação, e, uma fração de segundo depois, perceber que no contexto específico daquela historinha aquela frase ou situação admite uma interpretação completamente diferente, que inverte por completo o significado da cena. O riso é uma descarga nervosa causada pela surpresa diante dessa reviravolta mental e do contraste entre as duas interpretações. O autista é incapaz de perceber essa duplicidade de leituras, e, se a percebe, isto o deixa indiferente. Ele nasce geneticamente vacinado contra a ironia, o sarcasmo, a insinuação, a mentira diplomática.

Greg Egan imagina em seu romance Distress (1995) uma organização intitulada Voluntary Autists Organization. É uma entidade de autistas que querem ter o direito de ser como são, porque estão satisfeitos assim. As pessoas “normais” (dizem eles) têm uma capacidade inata para observar as outras e imaginar o que estão pensando a partir de seus gestos, palavras, etc. “Modelamos” em nossa mente, sem parar, a mente das pessoas que nos cercam, e nos comportamos de acordo com isto. Ao longo da evolução humana, essa capacidade se funde ao comportamento afetivo instintivo dos mamíferos e ao impulso reprodutivo, e dá origem ao sentimento chamado “empatia afetivo-sexual”, ou “amor”.

No livro de Egan, o autismo é atribuído a uma lesão cerebral que anula essa capacidade para se identificar emocionalmente com outras pessoas. E os indivíduos que têm uma lesão parcial querem que a Constituição lhes dê o direito de aumentá-la, cancelando por completo sua capacidade para a empatia. Eles invocam o mesmo direito alegado pelos transexuais: “Quero ter o direito de ser como sou, por inteiro.” Identificar-se com outro ser humano (alegam eles) é uma ilusão, uma mentira. Deveríamos nos comportar de acordo com regras e valores morais, não com uma ilusão de afeto mútuo. A noção de empatia, de intimidade psíquica com outro ser humano, é uma premissa falsa. E aí eu pergunto: se um transexual tem o direito de mudar de sexo, um semi-autista tem o direito de amputar suas próprias emoções, e viver em paz, sem ser obrigado a fazer algo que considera uma mentira?






Nenhum comentário: