segunda-feira, 11 de agosto de 2008

0503) O poema incompreensível (29.10.2004)


(Dylan Thomas)

Volta e meia, folheando um livro ou uma revista literária, eu me deparo com esse evento traumático para um sujeito que se auto-intitula poeta ou crítico literário: o poema incompreensível. Quando isso acontece, ressurgem da tumba todos os meus terrores de cineclubista adolescente, quando me encaminhava para ver um dos chamados “filmes herméticos”, como Oito e Meio de Fellini ou Cidadão Kane de Welles. Hoje estes filmes são convencionais, mas, 40 anos atrás, e para garotos que mal tinham sido apresentados aos livros de cinestética do Padre Guido Logger, eram motivo para pesadelos antecipados.

Hoje em dia quem me deixa assim é o poema. Abro um livro ao acaso e começo a ler. “Obstáculos. Crisântemos do porém. / Na aba inimiga, mefisto ulula. A prévia / de um sol quase quando. // Avisas. Olhas. Cai do falível a vastidão que expulsa. / Lâminas sem placa, e o polegar de Van Gogh.” Não, amigo, não estou sendo injusto com nenhum poeta. Isso aí é uma paródia, porque não quero me expor a vinganças por mangar em público dos poemas de Seu Ninguém. Quando me deparo com textos assim, corto o mal pela raiz: largo o livro e vou tocar violão. A esta altura do campeonato, não me sinto mais na obrigação de ler algo que não faz sentido para mim – embora admita a possibilidade de que faça sentido para outras pessoas. Cada escritor tem seu público. Ninguém escreve para todo mundo. E cada sujeito que escreve toma uma decisão, ao botar aquelas frases no papel, sobre que tipo de audiência está tentando atingir.

Sou contra o poema difícil? De jeito nenhum. Vejam por exemplo o caso de Dylan Thomas. Não conheço poeta mais obscuro do que esse rapaz. Abrir caminho ao longo de um poema de Dylan Thomas é como cavar sem lanterna numa mina de carvão. O que nos salva (e nos garante a emoção poética) é que a cada duas ou três linhas brota uma imagem tão poderosa, uma frase de sonoridade tão encantatória, que parece por alguns minutos iluminar, esclarecer e dar sentido, não só a tudo que foi dito antes mas a tudo que virá a ser dito um dia por quem quer que seja. Esses relâmpagos poéticos, de que a poesia de Thomas está cheia, nos dão confiança de que existe um caminho lá dentro, existe “produção de sentido” no concatenar daquelas frases, e de que devemos ter paciência com a treva, porque de tantos em tantos passos esses vislumbres de luz irão se repetindo.

Reconheço que o nome, a griffe “Dylan Thomas” pesa, infunde credibilidade, nos sussurra ao ouvido que alguma recompensa futura está à nossa espera. Mas ocorre também com poetas anônimos, desde que o verso em si traga relâmpago, não importa a assinatura. Inúmeros poemas de Drummond, principalmente do Drummond tardio, são poemas meramente desculpáveis; e já guardei por anos uma revista ou jornal porque tinha um poema brilhante de um cara que até hoje não sei quem é. O poema incompreensível é uma piada que não me fez rir. Passo adiante, e espero a próxima.

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