quarta-feira, 6 de agosto de 2008

0492) O dia sem fim (16.10.2004)

(Fredric Brown)

























(Cornell Woolrich)


Em Ulisses, James Joyce descreve um único dia na vida de Leopold Bloom, um judeu irlandês que vive em Dublin. É um romance com cerca de 800 páginas, e quando eu tinha dezessete anos costumava imaginar os prodígios de encheção-de-lingüiça do escritor para esticar a tal ponto os acontecimentos de um dia humano. Vai daí que, quando a gente folheia o livro e se familiariza com seu estilo e seus episódios, percebe que o objetivo ficou longe de ser atingido, e que se o livro tivesse o dobro da extensão ainda faltaria muita coisa lá dentro. A sensação que a gente tem é de que um dia humano é inesgotável. É impossível escrever um romance “em tempo real”.

Claro que muitas tentativas foram feitas. Peço desculpas aos colegas mais sofisticados, mas um exemplo que me vem à memória é Night of the Jabberwock, um romance policial de Fredric Brown que me produziu uma das minhas experiências de leitura mais notáveis. É uma história de crime que se passa numa cidadezinha do interior dos EUA, começando no início da noite, entrando pela madrugada adentro, e terminando ao amanhecer. Por coincidência foi justamente o que me ocorreu na leitura: li a história durante uma noite inteira, sem parar, e quando terminei, o dia amanhecia nas páginas finais do livro e nas vidraças da janela. O tempo da ação e o tempo da leitura coincidiram, e talvez por isto este romance tenha me produzido uma impressão que obras mais “artísticas” não conseguiram.

É uma tática do romance de suspense, talvez, porque Deadline at Dawn de William Irish é exatamente isto: um rapaz e uma moça interioranos, que comem em Nova York o pão que o diabo amassou, decidem voltar juntos para sua cidadezinha no primeiro trem da manhã, mas vêem-se envolvidos num crime e têm que provar sua inocência ao longo da madrugada. “William Irish” é pseudônimo de Cornell Woolrich, um dos escritores de suspense mais adaptados pelo cinema: entre outros filmes baseados em histórias suas estão A noiva estava de preto de Truffaut e Janela indiscreta de Hitchcock. A terrível e inesgotável madrugada que ele descreve em 200 páginas parece que de fato nunca vai terminar.

Imagino que uma resposta possível para isto está no conto “O Aleph” de Jorge Luís Borges, quando o protagonista consegue por fim avistar o Aleph, o ponto onde são visíveis todos os lugares do Universo, e diz, ao se preparar para descrevê-lo: “O que os meus olhos viram foi simultâneo; o que transcreverei será sucessivo, pois a linguagem o é.”

Descrever tudo que nos acontece em um dia, uma hora, é como querer reproduzir em uma única pista de som a gravação de uma sinfonia em dezenas de canais: teríamos que ouvir cada instrumento, de um em um, executando sua parte. Estímulos sensoriais, lembranças fugazes, monólogo interior, diálogos, ações, descrição extensa de impressões visuais instantâneas... Cada pequena experiência real que temos é a ponta da meada de um fio sem fim.

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