domingo, 31 de agosto de 2008

0536) Exoterismo e auto ajuda (7.12.2004)



Não, amigo, não está errado não, é “exoterismo” mesmo. Todo dia, em algum órgão da imprensa, um redator sem assunto resolve explicar esta importante diferença, e hoje é minha vez. Conhecimento esotérico é aquele que é reservado a grupos fechados (“eso” significa justamente “por dentro”, ou “nas internas” como se diz na gíria). São aqueles segredos cruciais a que os sócios não têm acesso, só a Diretoria. Por outro lado, conhecimento exotérico é justamente o contrário: aquele que é divulgado para informação de todos, que é acessível a todos. “Exo” quer dizer “por fora, ou para fora”: “exorcizar” é expulsar o demônio, “exoesqueleto” é o esqueleto exterior dos crustáceos, “exogamia” é a prática de casar com pessoas de fora do clã.

Dito isto, determino que todos os órgãos de imprensa do Brasil eliminem imediatamente de suas páginas a expressão “livro esotérico”, substituindo-a pelo termo correto, com “x”. O próprio conceito de “livro esotérico” é uma enorme contradição, pois um conhecimento verdadeiramente esotérico é por sua própria natureza um conhecimento oral, transmitindo pessoalmente entre gerações de iniciados. No máximo, existe aqui ou acolá um papiro ou pergaminho com anotações cifradas, mas a idéia de um livro, impresso industrialmente em grande quantidade, com conteúdo esotérico, é tão absurda quanto a de um cofre-forte sem porta.

Aliás, é bem sintomático que em todas as listas do mais vendidos, nos catálogos das editoras e nas prateleiras das livrarias vejamos estes dois rótulos sempre lado a lado: “Esoterismo e auto-ajuda”. Porque em princípio, pelo menos para mim, uma coisa não tem nada a ver com a outra. A relação entre os verdadeiros conhecimentos esotéricos e os manuais de auto-ajuda é a mesma que existe entre o ouro puro e as bijuterias de camelô. Mas o exoterismo cumpre uma importante função social. Sob a aparência de sabedoria oriental, medieval ou renascentista, ele dissemina entre a população uma porção de mensagens positivas, com uma aura de autoridade conferida pelo mistério.

Qualquer livro de auto-ajuda está cheio de coisas certas. É difícil eu folhear um deles e discordar de alguma coisa, porque eles só reiteram o óbvio. Seja otimista. Trate bem os outros. Não esquente demais a cabeça. Procure se dedicar ao que gosta. Se uma coisa estiver lhe fazendo mal, afaste-se dela. Comunique-se: procure saber o que os outros estão pensando, procure explicar o que você mesmo está pensando. E assim por diante. Tudo isto é óbvio, tudo isto são verdades que intuitivamente reconhecemos, mas precisamos da chancela de uma autoridade qualquer. Daí que os livros de auto-ajuda se dividam entre os da área científica (psicologia, medicina, nutrição, educação física) e os da área mística (astrologia, tarô, runas, ocultismo,, etc.). Tudo que dizem é verdade, é claro, é evidente, mas parece tão simples que só valorizamos se vier avalizado por alguma Sabedoria remota e imponente.

0535) O assassinato de Lee Oswald (5.12.2004)



Na cidade de Dallas (Texas) foi aberta uma exposição intitulada “Jack Ruby: Voices from History”, dedicada à elusiva e contraditória figura do sujeito que matou a tiros Lee Oswald, o suposto assassino de John Kennedy, em 1963. A verdadeira história do assassinato de Kennedy talvez nunca seja contada, embora fragmentos da verdade estejam espalhados pelas centenas de livros e filmes já produzidos sobre o assunto. Ruby e Oswald, protagonistas do atentado mais caótico do século 20, são personagens que hão de ser investigados para sempre, sem que se saiba com certeza quais as suas motivações.

Eu tenho uma teoria. (Sempre tenho uma teoria. Dêem-me dez minutos, e eu produzo, sobre qualquer tema, uma teoria tão redonda quanto uma sextilha de Pinto do Monteiro.) Para mim, não há dúvida de que houve uma conspiração para matar Kennedy; de que Lee Oswald era um dos instrumentos desta conspiração; de que tudo foi organizado para fazer parecer que Lee Oswald era o único atirador. A tese conhecida como “Oswald Agiu Sozinho” é a parte mais mirabolante e implausível de todas as discussões sobre Kennedy.

Kennedy era odiado pela direita conservadora, pelos fundamentalistas cristãos (que não engoliam um presidente católico, o primeiro da História), e desprezado pelas elites “rednecks” e rurais que o viam (com bastante realismo, aliás) como um sujeito vaidoso, mulherengo, metido a aristocrata, populista, pertencente a uma elite de galãs arrogantes que vivem com um pé na política e outro na mídia. Tramaram sua morte, e deu tudo certo. Aí apareceu Jack Ruby.

Houve um histórico Treze x Campinense, em 24 de novembro de 1974, onde (reza a lenda) as diretorias combinaram um empate. Seria bom para ambos: o Treze seria praticamente campeão do último turno, iria para a decisão com o Campinense, que entraria com vantagem, por ter ganho os turnos anteriores. Todo mundo combinou, mas esqueceram de avisar para Marcos de Itabaiana, um crioulo parecido com Viola (ex-Corinthians, ex-Vasco). Faltando dez minutos para terminar, Gil Silva (meio-campista, canhoto, craque, de estilo semelhante ao de Felipe, do Flamengo) enfiou uma bola entre os zagueiros do Campinense, Marcos entrou como um miúra, e fez o gol da vitória. Os jogadores do Campinense se revoltaram e alguém quebrou o nariz dele com um soco. Naquela noite, durante a comemoração, fomos, um grupo de 8 ou 10, visitá-lo no Hospital Antonio Targino.

Jack Ruby foi o Marcos-de-Itabaiana do assassinato de Kennedy. Estava tudo combinado, inclusive os depoimentos pseudo-verdadeiros que Lee Oswald, um bode expiatório cevado durante anos, daria ao FBI e aos tribunais. Todo mundo combinou, mas esqueceram de avisar a Jack Ruby, um sujeito que vivia de pequenos golpes e que, como todo americano, sonhava com notoriedade e manchetes. Ruby surgiu do nada para turvar águas que já eram turvas. Foi aquele elemento aleatório que nem mesmo o crime mais perfeito consegue prever.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

0534) Ao traduzir um poema (4.12.2004)




("Poema", de Joaquim Cardozo)

Traduzir é mais difícil do que escrever. Traduzir uma obra é criar numa língua um equivalente aceitável ao que foi dito em outra, a um texto já existente. Escrever é criar a partir do não-dito, de uma idéia com a qual só o autor tem contato. 

Quando eu traduzo um texto de Shakespeare, estou diante do mesmo problema com que Shakespeare se deparou há 400 anos, o problema de expressar aquelas idéias em palavras. Ele tentava dizer aquilo em inglês, eu estou tentando dizer em português. Ele tinha um pouco mais de liberdade, porque estava produzindo um texto original, fiel apenas à idéia informe e difusa que se agitava em sua mente. Eu, no entanto, tenho que ser fiel a um texto inglês universalmente conhecido. 

É neste sentido que é mais difícil traduzir do que escrever, e um tradutor de Shakespeare enfrenta problemas técnicos que Shakespeare não precisou enfrentar.

Paulo Rónai, um dos nossos maiores tradutores, costumava citar uma frase de Heine, segundo a qual “traduzir poesia é como empalhar raios de sol”. E comentava ele: “Mas, será que escrever poesia também não será a mesma coisa?” 

A tradução poética é a mais difícil de todas, porque lida com a mais conotativa das linguagens. Dêem-me para traduzir um manual técnico da Microsoft ou um guia de trens britânico, mas não me dêem um poema, que é muito mais trabalhoso! (Estou brincando, claro. Mil vezes o poema.)

Ao traduzir poemas de forma fixa, temos que reproduzir uma série de elementos: 

1) a estrofe; 

2) o esquema de rimas; 

3) o ritmo silábico no interior de cada verso; 

4) a sonoridade dos fonemas; 

5) o conteúdo do texto. 

É coisa demais para se transpor, e há de haver uma perda em algum desses departamentos. Um dos nossos melhores tradutores de poesia, Augusto de Campos, se destaca justamente pelo fato de procurar sempre atender a todos estes requisitos ao mesmo tempo, e de geralmente conseguir um nível impressionante de aproximação em todos eles. 

Mas em geral é preciso decidir: reproduzo as idéias do poema original, ou a sua bela alternância de sílabas fortes e fracas, e de palavras que rimam no meio e no fim dos versos?

Parece muito com aquele problema da Física, o de definir uma partícula em função de sua velocidade e de sua posição. Para medir a velocidade, temos que observar seu deslocamento e abrir mão de saber sua posição exata. Se queremos saber sua posição exata num dado momento, é preciso “fechar” a observação nesse momento, mas aí não podemos saber a que velocidade ela estava se deslocando. 

Na tradução de poesia, cada vez que queremos reproduzir o sentido dos versos temos que sacrificar os detalhes rítmicos e melódicos com que o poeta se exprimiu originalmente. E quando ”fechamos” a nossa atenção para reconstruir em português essas minúcias, é possível que o sentido comece a se dissipar. 

Traduzir é perder. A arte consiste em trabalhar simultaneamente em todas essas frentes, e tentar perder o mínimo possível em cada uma delas.





0533) O Iraque é aqui (3.12.2004)



(Faixa de Gaza ou Zé Pinheiro?)

Toda vez que aparecem na TV aqueles carros-bomba de Bagdá, atentados terroristas aos ônibus israelenses, garotos palestinos apedrejando tanques de Israel, é muito fácil para a gente pensar que tudo isso ocorre do outro lado do mundo, não tem nada a ver com a gente. A gente pega o controle remoto, muda de canal, e vai se preocupar com catástrofes mais suportáveis, como a queda do Flamengo para a Segunda Divisão.

Pois eu tenho um método pessoal para ver guerra na televisão. Não sei se vocês já perceberam o quanto o Oriente Médio parece com o Nordeste. Nem me refiro à semelhança étnica que faz esses árabes todos, a começar pelo falecido Yasser Arafat, parecerem dublês de Geraldo Azevedo e Alceu Valença. O que parece é o jeitão das cidades, ou pelo menos da parte moderna delas, com seus caixotes-de-cimento, seus caminhões velhos, seu calçamento irregular, suas lojinhas de dois andares, seus sobrados com um mercadinho no térreo e um apartamento no andar de cima, toda aquela paisagem que encontramos com poucas modificações em qualquer subúrbio de cidade nordestina (ou nos subúrbios das nossas grandes metrópoles, que estão “assim” de nordestinos).

Eu fico tentando me identificar com os dramas alheios que vejo na TV, e não é difícil perceber o quanto essas cidades parecem com as nossas. Quando penduraram os americanos nas vigas de aço da ponte, em Fallujah, eu não pude deixar de pensar: “Eita, isso foi no Recife: olha só, a Ponte da Boa Vista!” Dias atrás vi um atentado a bomba em Bagdá que me deu um aperto no coração, porque aconteceu numa daquelas ruas do São José que levam ao campo do Treze. Todos aqueles enterros de militantes palestinos, com o caixão coberto pela bandeira, e o pessoal gritando e erguendo fuzis no ar, acontecem em Zé Pinheiro. É impressionante como a Faixa de Gaza ou a Cisjordânia parecem com o Zepa. E houve um atentado a um ônibus israelense, ano passado, que era num lugar igualzinho à Avenida Canal, ali perto do Ipiranga.

Fallujah, Mossul, Tikrit, Nablus, Jerusalém, Tel-Aviv: não precisa muita imaginação para reconhecer como nossa aquela paisagem de sol impiedoso, horizontes empoeirados, rodovias precárias onde se cruzam ônibus, jegues, carroças e veículos militares. Alguns especiais da TV esquecem um pouco a guerra e se detêm sobre as pessoas, seu dia-a-dia, seus medos e suas esperanças. Eles têm rostos morenos de meninos e meninas na nossa zona-da-mata ou do nosso cariri. Falam uma língua incompreensível, mas não precisamos entender o que falam para saber o que estão dizendo. Todas as vezes que um carro-bomba faz essas pessoas em pedaços, fico pensando que isso aconteceu ali no Ponto Cem Réis, na subida do Alto Branco; ou que aconteceu na pista que leva para o Campestre; ou que aconteceu em qualquer um desses lugares comuns e sagrados de Campina, que é sempre meu ponto de referência para checar se uma coisa existe de verdade, se uma coisa é real.


0532) A Ciência e a Fé (2.12.2004)




(casa dos índios Pueblo)

Um dos maiores equívocos das discussões filosóficas de mesa-de-bar é imaginar que a ciência se baseia apenas na Lógica e a religião apenas na Fé. 

Concordo quanto a esta última: todas as religiões procuram desdobrar-se em argumentações para mostrar que estão certas, mas a essência da atitude religiosa é a Fé, a certeza de algo inexplicável, a crença em algo transcendente e impossível de codificar.

O problema é que a ciência procede de um modo muito parecido. A ciência se baseia na Razão, mas um grande problema da Razão é que ela é incapaz de se sustentar por si mesma; ela sempre precisa se apoiar em algum tipo de Fé. 

Suas premissas podem se basear no empirismo mais pragmático, ou nas deduções mais impecavelmente lógicas: mas sempre precisam da Fé.

A primeira Fé de um cientista é: “O Universo faz sentido”

Ele pode achar que não existe um mundo espiritual, pode achar que não há Deus, e que o Universo inteiro é um simples agregado de átomos que se organizam em estruturas de matéria e energia. Mas ele acredita que tudo isto faz sentido, obedece a leis – ou, para ser mais científico, “organiza-se em padrões de regularidade que é possível medir e prever.” 

Quando está diante de algo caótico, contraditório, absurdo, o cientista balança a cabeça, teimoso, e continua insistindo em busca de uma lei, uma ordem, um sentido. E geralmente encontra.

Uma outra Fé, ou uma variação da anterior, é: “O Universo é sempre o mesmo.” 

O cientista tem uma crença religiosa na continuidade dos fenômenos. Ele acredita piamente que o sol vai nascer amanhã de manhã, e tem mais: vai nascer no Leste, e nunca no Oeste. Quem garante? Para ele, quem garante esta regularidade é justamente o fato de não existir um Deus sujeito a venetas e caprichos, como o Deus bíblico que mandou o sol se deter no céu durante três dias para que Josué pudesse invadir Jericó. 

Os cientistas têm uma fé absoluta na inexistência de venetas desse tipo. Pergunte a qualquer um, e ele vai confirmar que sim, o sol vai nascer amanhã, nem que a vaca tussa; e ele dirá isto com uma Fé tão sólida quanto a fé do Papa.

Há uma tribo, acho que são os índios Pueblo, do México, que toda madrugada acorda cedinho e entoa cânticos “chamando” o sol. Eles crêem que o sol só nasce devido a esse seu chamado, e que é responsabilidade deles fazer com que o sol nasça todos os dias, ilumine o mundo, aqueça os corpos, estimule as colheitas. 

Os cientistas têm uma fé igualmente sólida no fato de que a matéria-em-movimento se comporta hoje como se comportou sempre, e se comportará amanhã como se comporta hoje. 

Daí a enorme crise dos cientistas quando alguém lhes provou que não existe o tempo absoluto, ou que o sol não gira em torno da Terra, ou que era possível desintegrar a matéria e transformá-la em energia. Nada disso era possível antes, mas todas as suas crenças tiveram que ser reformuladas para incluir estes fatos novos, para que estes milagres impossíveis não desmentissem sua fé.






0531) A máquina pensante (1.12.2004)


(do saite "Thinking Machine")

Uma das características mais interessantes do jogo de xadrez (como da maioria dos jogos, mas, concentremo-nos num só) é o fato de existir uma hierarquia estratégica que se sobrepõe à mera probabilidade matemática dos movimentos. Essa hierarquia se refere aos movimentos que deixam o jogador mais próximo de derrotar o oponente. Antes de cada movimento, existe um número gigantesco (embora finito) de possibilidades, em função do movimento de cada peça e das casas disponíveis para ela. Matematicamente, todos estes movimentos se equivalem. Estrategicamente, uns são mais relevantes do que outros.

Podemos então dizer que há três tipos de jogadas. Primeiro, a jogada possível: qualquer movimento para a frente, para trás ou para o lado, que seja permitido pelas regras, independentemente de sua utilidade. Segundo, a jogada obviamente útil: a jogada que tem mais probabilidade de ameaçar o oponente ou de conquistar para o jogador uma posição vantajosa. E terceiro, a jogada surpreendente: uma jogada pouco óbvia, que à primeira vista parece totalmente absurda, mas que pode desencadear uma combinação improvável de movimentos e dar a vitória ao jogador.

Quando um computador é programado para jogar xadrez, os movimentos do primeiro tipo são facilmente programáveis: o bispo pode ir para estas e estas casas, mas não pode ir para aquelas. Os movimentos do segundo tipo também podem ser programados, desde que se possa prever, para cada situação possível no tabuleiro, quais os caminhos mais rápidos para obter a vitória. Os movimentos de terceiro tipo são os mais difíceis. Eles são mais elegantes, mais ricos, mais surpreendentes, e possuem não apenas um valor estratégico, mas um valor estético. São o pulo-do-gato.

O saite “Thinking Machine 4” (em: http://turbulence.org/spotlight/thinking/chess.html) oferece um interessante recurso para ilustrar o modo como uma máquina pensa o xadrez. A cada jogada, linhas coloridas vão surgindo na tela indicando os movimentos mais prováveis para responder à jogada feita pelo adversário. À medida que a máquina “pensa”, algumas linhas vão ficando mais encorpadas, mais nítidas, porque um número maior de manobras passa por ali, até chegar o momento em que a máquina responde à jogada que fizemos.

Assim como no campo verbal podemos distinguir uma linguagem mais previsível e mais “pobre” (a linguagem normal do dia-a-dia) e uma linguagem menos previsível e mais “rica” (a linguagem poética), os movimentos no xadrez podem ser classificados em graus de previsibilidade e riqueza. Os melhores movimentos são os que cumprem uma função estratégica, possuem uma simplicidade estética (como a “elegância” das fórmulas matemáticas) e guardam um grau maior de imprevisibilidade. Escrevem por linhas tortas. Criam um atalho imprevisto. São inexplicáveis à primeira vista, mas na seqüência das jogadas o adversário percebe qual era a armadilha – quando já é tarde demais.

0530) A lei de Zezim Torneira (30.11.2004)


(vítima civil em Fallujah)

Zezim Torneira era um garoto que tinha lá no Alto Branco, nos velhos tempos. Segundo a lenda, um belo dia ele estava sentado em cima de um muro, aí escorregou e caiu lá de cima. Por azar, caiu sentado em cima de uma torneira que tinha no pé do muro, uma dessas torneiras baixas onde as pessoas lavam os pés antes de entrar em casa pela porta dos fundos. Zezim caiu sentado em cima da torneira, que não era uma dessas torneiras modernas, redondas, mas daquelas que têm uma haste horizontal, do tipo “borboleta”. A borboleta entrou com tudo no fedesqüepe de Zezim, que sofreu cirurgia, pontos, convalescença, e teve que passar o resto da adolescência ouvindo a toda hora um pirangueiro gritar: “Zezim!... Pega aqui na minha torneira!”

O mais interessante do episódio é que Zezim tomou-se (compreensivelmente) de um verdadeiro ódio ao apelido, e à simples menção da palavra torneira. Ficou como aquele doido chamado Garapa, que quando surgia um cara gritava de um lado: “Água!...” e outro respondia lá adiante: “Açúcar!...” e ele ficava esbravejando no meio da rua: “Se misturar eu mato um!” Pois Zezim era a mesma coisa. Ele vinha pelo Ponto Cem Réis, chegava ali à altura do canal, tinha três ou quatro garotos sentados na ponte, conversando futebol. Quando Zezim se aproximava, havia um certo silêncio... e aí ele enchia a mão de pedras e saía correndo, furioso, cobrindo todo mundo na pedrada. A galera gritava: “Mas ninguém disse nada!” E Zezim Torneira: “Mas pensou!”

Parece familiar, caro leitor? É o conceito georgebushiano de “pre-emptive war”: defender-se antes mesmo do ataque acontecer. Como toda deformação bárbara de conceitos, este se baseia numa verdade indiscutível. No caso, um princípio básico da Medicina (“é melhor evitar a doença do que tentar curá-la depois que acontece”), o qual passou para a sabedoria do povo na forma enxuta e lapidada de “É melhor prevenir do que remediar”.

Transposto para o mundo militar, esse conceito se transforma no que um oficial dos Marines americanos aconselhou aos seus comandados, antes da invasão de Fallujah, dias atrás: “O inimigo pode vir vestido de mulher, pode estar se fingindo de morto. Atirem em tudo que se mexer, e em tudo que não se mexer.” O massacre americano no Iraque não é monstruoso pela quantidade de mortos, mas pela gratuidade da guerra, pela absoluta desnecessidade de uma invasão como esta, e pelo fato de que está se criando naquele país um celeiro de terroristas muito mais perigoso do que o que poderia crescer embaixo da asa de Saddam Hussein.
Atirar primeiro e perguntar depois é uma atitude de quem está desesperado. Não importa se quem está desesperado é justamente o exército mais forte, mais numeroso e mais bem equipado. O desespero deles reside justamente em saber que não têm outro exército pela frente, têm uma população violentada e ressentida, onde é preciso atirar até nos cadáveres. Sabe-se lá no que um iraquiano morto pode estar pensando!

0529) A importância das gárgulas (28.11.2004)




(Catedral de Sevilha)

George Orwell, comentando os romances de Charles Dickens, os definiu assim: “Uma arquitetura horrível, mas com gárgulas maravilhosas”. 

A fórmula se aplica a muita coisa na literatura. Se entendi bem, Orwell queria dizer que os livros de Dickens têm defeitos de estrutura, são mal planejados, não têm unidade, mas estão repletos de passagens brilhantes, descrições vívidas, personagens inesquecíveis. 

É uma tendência do romance em estilo folhetinesco, aquele texto que vai sendo planejado à medida que vai sendo escrito. Não se pode exigir dele a clareza apolínea de um romance de Osman Lins, de Georges Perec ou de Autran Dourado, esses planejadores contumazes. 

O escritor folhetinesco não planeja: escreve aos arrancos. Assim era Alexandre Dumas, assim era Henry Miller, e assim era Jorge Amado. Nenhum destes jamais teve vocação arquitetônica.

Alguns colegas mais sofisticados hão de torcer o nariz diante destes exemplos (nenhum destes três é considerado um “grande escritor”), portanto deixem-me recorrer a outros: Dostoiévski, Balzac. Estes, se minha bolsa-de-valores não está desatualizada, são considerados escritores de primeira linha, mas não pela sua arquitetura, e sim pelas suas gárgulas. 

Eu diria que o gênero “romance” é por natureza mais propício às gárgulas do que ao planejamento arquitetônico. O romance, pelas suas dimensões, parece ser uma obra de engenharia; mas a sua tendência mais natural é para ser uma obra múltipla de escultura.

Pego como exemplos o Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna e Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa. São dois livros imensos, desconjuntados, excessivos. 

Em matéria de arquitetura dramática, não têm a elegância de um Niemeyer ou de um Frank Lloyd Wright. Parecem-se mais com a Catedral de Sevilha, uma geringonça de blocos superpostos por cristãos e muçulmanos ao longo de séculos. Uma estrutura produzida por simples acreção, sem planejamento, sem que em momento algum de sua construção alguém tivesse em mente a totalidade do conjunto, ou uma intenção final. 

Grande Sertão é o terror de muitos leitores que recuam diante daquele linguajar bárbaro, e se perdem naquele labirinto de palavras que parece não estar levando a lugar algum. Por sorte, apesar do começo do livro ser totalmente aleatório, por volta da página 150 a narrativa pega um rumo e daí em diante flui toda na mesma direção.

O livro de Ariano também é cheio de idas e vindas, flash-backs longuíssimos, incontáveis episódios interpolados. É quase impossível ler o livro de A a Z e ter uma idéia clara da história que foi contada; é preciso voltar atrás, botar as peças na ordem, esquecer as numerosas e intermináveis citações de livros alheios... 

Mas no meio disso tudo, quantos episódios brilhantes de humor, de visionarismo sertanejo, de erotismo sacrílego e tentador, de sátira política e literária. Com uma gárgula dessas por capítulo, quem liga para a forma da catedral?






0528) O ônibus da Prata (27.11.2004)




(prédio do Correio, foto atual)

O ponto do ônibus da Prata, que nos levava todas as noites para as aulas no “Gigantão” era junto ao prédio do Correio, naquele trecho da calçada hoje cheio de fiteiros e barracas. 

A época a que estou me referindo é 1967, quando comecei o Curso Clássico e entrei para o turno da noite. A aula começava às 19:00, de modo que a partir das 18:30 aquilo já ficava intransitável de tanta gente fardada. 

Me lembro como se fosse hoje da farda das meninas, que era uma blusa branca de manga curtas, com o monograma do colégio bordado em verde, no bolso; as saias eram cáqui, pregueadas, com fitas verdes ao longo da barra, e foi essa a época em que começaram a subir, segundo a lei de Mary Quant, que fez mais pela nossa vida sexual do que Fritz Kahn e o Padre João Mohana juntos.

O ônibus saía do Correio e virava à direita na Getúlio Vargas, descia pela frente do antigo Cine Avenida, virava à esquerda na Nilo Peçanha. O primeiro ponto de descida era na esquina em frente à Igreja do Rosário. Os pontos correspondiam aos três portões de entrada do Colégio, situados ao longo de dois quarteirões inteiros. 

Depois que descarregava os alunos, o ônibus enchia com os que estavam voltando para o centro, e seguia rumo à Rua da Independência, onde virava à esquerda e descia até a Praça do Trabalho, passava em frente ao Cine São José e descia para o balde do Açude Novo. 

Ali, não me lembro se subia a 13 de maio, ou se já virava à esquerda para subir pela Floriano Peixoto até em frente ao Capitólio, onde rodeava a Praça da Bandeira e encerrava a “circular” na calçada do Correio.

O interior do ônibus era uma versão eufórica do caos. A cada curva, todos os corpos masculinos, de acordo com a Lei de Isaac Newton, eram pressionados de encontro aos corpos femininos. Quem estava sentado empilhava no colo bolsas, pastas, pranchetas e livros de quem estava por perto. Descidas e freadas bruscas eram saudadas com gritos de provocação: “Tira o pé do bolso, motorista!” “Motorista, bateram minha carteira!” Havia um motorista chamado Taba Lascada que era alvo permanente de gozação.

Quem sofria muito também era o cobrador. Naquele tempo não havia roleta, o cobrador andava pelo ônibus recebendo o pagamento e dando uma senha como comprovante, senha que ele destacava de um talãozinho que trazia na mão. Era um sistema de controle, convenhamos, fadado a uma rápida extinção, porque ninguém colocava a senha na urnazinha ao sair, e todo mundo brandia uma senha velha: “Oxente, rapaz! Já paguei!” 

O cobrador tinha que se esgueirar entre os corpos de todos, empurrar, meter o cotovelo, firmar-se do melhor jeito possível enquanto recebia o dinheiro e passava troco. Ele pegava as notas, dobrava-as ao meio do sentido do comprimento, e as prendia entre os dedos. Jean-Luc Godard, em viagem ao Rio nos anos 1950, encantou-se com este detalhe nos ônibus cariocas. 

Eu olhava para aquilo sem prestar atenção, achando que ia durar para sempre.





terça-feira, 26 de agosto de 2008

0527) A definição do amor (26.11.2004)


(desenho de Tomi Ungerer)

Dizem que Jacques Lacan definiu assim o amor: “Amar é dar algo que não se tem a uma pessoa que não quer receber.” As definições de amor são tão subjetivas quanto preferências culinárias ou futebolísticas. Vai daí, proponho uma variante: “Amar é dar algo que a gente não sabia que tinha a uma pessoa que não sabia que precisava.” Porque se a gente prestar atenção vai perceber que o amor é assim: um enriquecimento emocional e espiritual para ambos os envolvidos, uma expansão do que eles tinham sido até então. Como se cada um descobrisse facetas de si mesmo que desconhecia, novas maneiras de ser, de reagir e de pensar.

Se não for assim, não adianta muito, não é mesmo? A tragédia dos grandes conquistadores, como Don Juan ou Casanova, é o fato de que eles são imunes a esse tipo de convivência, que exige em primeiríssimo lugar um enorme interesse pela outra pessoa. Casanova, ao “traçar” uma madame da corte atrás da outra, estava interessado apenas no ato e no fato, e para ele a mulher era um mero complemento. Colin Wilson, em Origins of the Sexual Impulse (1963) descreve argutamente Casanova e seus epígonos como indivíduos dotados de muita vitalidade e baixa auto-estima. As conquistas sucessivas servem-lhe como reposições momentâneas para esse amor próprio que lhes é eternamente deficitário. Existe, como observa Wilson, uma semelhança essencial entre o conquistador e o “serial killer”. É a reiteração daquele ato que lhe interessa, e a pessoa que dele participa é o que menos importa.

O amor, essa atitude de interesse inesgotável pela pessoa que está “do outro lado” é, aliás, a mesma relação recíproca que deve existe idealmente entre um escritor e o leitor. A relação literária é uma relação amorosa, sem sexo, sem corpo, mas impregnada de um profundo e inesgotável interesse pela outra pessoa. Eu sinto esse interesse pela pessoa de Jorge Luís Borges ou de Philip K. Dick, pela pessoa de Augusto dos Anjos ou de Agatha Christie. Tudo que esses indivíduos sentiram, pensaram, experimentaram e viveram me interessa. O que eu sinto por eles é amor, não o amor-desejo, amor-erótico, mas o amor-de-almas. Por razões misteriosas e inexplicáveis, eu me identifico com eles, por mais diferentes que possam ser uns dos outros.

Amar um autor, contudo, é muito fácil. Um autor é visibilíssimo, através de livros, entrevistas, biografias. Mais complicada é a relação inversa, o amor que um escritor sente pelo seu leitor. Como sentir amor por essa coisa abstrata e sem rosto? Muitos autores tentam escrever para um “leitor ideal” (ver “Cinqüenta anos falando sozinho”, 20 de outubro) que eles próprios constroem em sua mente. Muitas vezes, o ato de escrever envolve esse esforço de dedicar algo a alguém cuja presença só podemos imaginar. Escrever, nesses casos, é dar algo que a gente não sabe se vai ter ou não, a uma pessoa que a gente nem sequer sabe que existe.

0526) Gêneros literários (25.11.2004)



Dias atrás, comentei aqui (“O Modelo e o Produto”, 3 de novembro) o modo como a indústria cultural, além de fabricar livros em massa, fabrica também fórmulas em massa para produzir textos literários. Isso não foi uma invenção da indústria, foi uma invenção dos escritores. E é um mecanismo natural da criação artística. Se você for analisar os poemas religiosos dos sumérios e caldeus, vai ver a mesma coisa acontecendo. Um sacerdote com veleidades poéticas fazia um hino agradecendo aos deuses pela bênção da colheita, e o hino fazia o maior sucesso. Aí tempos depois outro sacerdote esperto pegava o mesmo modelo e fazia um hino agradecendo pela chuva. Surgiam aí os gêneros literários, obras que compartilham um certo conjunto de características, que se pode reconhecer de imediato, mas que trazem elementos novos: novas abordagens, sub-temas, variações de linguagem.

Quando os poetas concretistas de São Paulo (os irmãos Campos e Décio Pignatari) criaram no Brasil o movimento da Poesia Concreta, muita gente começou a fazer poemas seguindo os mesmos princípios: cancelamento quase total do verso discursivo, da estrofe e da rima tradicionais; exploração da visualidade das palavras, da sua disposição no branco da página; jogos com a sonoridade das palavras, e com sua aparência visual, etc. Toda vez que você cria obras de arte que pretendem quebrar um modelo já existente, você está criando um modelo novo. E outros artistas irão utilizar esse modelo para criar novos produtos. É o movimento natural da criação artística. Não interessa aqui discutir se o modelo é bom ou ruim, ou se os produtos são bons ou ruins, até porque esses conceitos são subjetivos. Mas esse processo de surgimento constante de Modelos e Produtos ocorre na poesia de vanguarda, no filme de faroeste, na pintura abstrata, na comédia teatral, na literatura de cordel, no rock, na música sacra orquestral, nas histórias em quadrinhos. Existe em todo canto.

Fala-se que os gêneros são típicos da literatura de massas (policial, terror, romance, espionagem, etc.), mas eles existem também na literatura erudita. Há por exemplo o Bildungsroman, o romance de formação, que narra a trajetória de um personagem da infância à maturidade, como em A Montanha Mágica de Thomas Mann e o Retrato do Artista Quando Jovem de Joyce. Eu diria que o “Triângulo Amoroso” constitui um gênero literário à parte, tal a solidez de sua estrutura básica, que permite, sem sofrer alterações, incontáveis variantes, de Dona Flor de Jorge Amado a Dom Casmurro de Machado. A “Saga Familiar”, história de uma família ao longo de décadas ou séculos, é um gênero literário à parte, não é mesmo? O mesmo pode-se dizer do “Romance Marítimo”, que vai de Moby Dick às obras de Joseph Conrad. A chamada literatura erudita não é mais imune aos modelos repetitivos (ou seja, aos gêneros) do que a literatura popular.

0525) Abaixo os gregos (24.11.2004)



Das leituras marxistas do meu tempo de estudante, não aproveitei nada das obras políticas, mas as leituras filosóficas me rendem assunto até hoje. Lembro-me dos manuais de Materialismo Dialético, o qual sempre achei muito mais consistente do que o Materialismo Histórico. A teoria marxista é uma beleza. Quem a estragou foi Lênin, com aquela mania de aplicá-la na prática.

Os autores dialéticos que eu lia aos 20 anos criticavam a filosofia aristotélica. Para Aristóteles, diziam eles, “A” é “A”, e “B” é “B” – ou, como diria Tim Maia, “uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa”. Para Aristóteles, “A” não pode ser ao mesmo tempo “não-A”. Ora, para a filosofia dialética, “A” pode ser “não-A”, sim senhor, por que não? Muitas coisas podem conter em si a sua negação, o seu contrário. Os seres (e mais que eles, os grupos sociais) estão muito mais próximos de entidades complexas e heterogêneas do que de entidades simples e homogêneas. Esta verdade me parece tão óbvia que me pergunto como é que a fórmula simplória de Aristóteles conseguiu sobreviver durante tantos milênios.

Os gregos são ainda o ponto de referência principal de nossa Filosofia, de nossa Ciência e de nossa Arte, o que me parece o maior dos equívocos. Não que eles fossem tapados, mas a sua percepção do mundo era limitadíssima. Vejam o caso de Ptolomeu e sua concepção do Universo (baseada em Aristóteles) tendo a Terra como centro. À primeira vista, correspondia ao mundo observado, pois é fácil notar que o sol, a lua e as estrelas giram todos em volta da Terra. O problema é que à medida que a observações iam se tornando mais detalhadas, os dados não batiam com a teoria. Mil e quatrocentos anos foram consumidos pelos astrônomos tentando adaptar os fatos à teoria de Ptolomeu, criando sub-teorias como a dos “epiciclos” e dos “deferentes”, etc. Aí um dia chegou Copérnico e disse: “Esquece os gregos.” No momento em que esqueceram os gregos e organizaram os dados de que dispunham, os astrônomos entenderam tudo.

Quer outro exemplo? Euclides, o pai da geometria, criou todo um edifício teórico baseado na demonstração de seus postulados. A geometria euclidiana era tida como algo tão sólido e tão cristalino quanto a aritmética dos números inteiros, algo que não foi questionado durante 2.200 anos. Aí no começo do século 19 apareceu um russo, Lobatchevsky, que questionou o Quinto Postulado, o das paralelas, e mostrou que a geometria de Euclides era apenas uma entre várias geometrias possíveis. Em vinte e dois séculos ninguém tinha percebido. Por que? Porque ninguém questionava os gregos.

Questionemos os gregos, meus amigos. Não necessariamente os naturais daquele simpático país que nos deu tantas coisas boas. Os "gregos" a que me refiro são os autores que ninguém discute, que são sempre tomados como ponto de partida. Na ciência e na arte não há verdades indiscutíveis. Quando uma coisa estiver grega demais, desconfiem.

0524) Cirurgia contra virose (23.11.2004)


(a guerra em Falluja)

A ofensiva norte-americana contra a cidade de Falluja, no Iraque, foi mais um desses episódios de Absurdo Organizado típicos desta guerra. O método do governo Bush para combater o terrorismo equivale a tratar uma virose através de cirurgia: pegar um bisturi e sair arrancando todos os tecidos onde haja suspeita de localização de vírus. O Iraque foi invadido em março de 2003, o fim da guerra foi oficialmente anunciado no mês de maio seguinte, e agora, mais de um ano depois, estão acontecendo batalhas que deixam no chinelo as da guerra propriamente dita.

Fallujah é a cidade onde alguns seguranças americanos foram mortos meses atrás, arrastados para fora do carro, pendurados numa ponte, ensopados de gasolina e incendiados, enquanto a multidão agitava bandeiras e batia em latas velhas (v. “Os postais do linchamento”, 7 de abril). É um perigoso reduto de partidários de Saddam Hussein. Um oficial americano anunciou, depois do linchamento: “Vamos conquistar os corações e mentes em Fallujah, livrando a cidade dos insurgentes.” E é exatamente isso que o exército americano fez. Entraram lá e botaram a cidade abaixo. Fallujah é chamada a “cidade das mesquitas”, porque lá existem mais de duzentas. Não sei se restou alguma, depois que o exército de Bush passou a britadeira em tudo.

Quem quiser saber um pouco mais sobre a cidade, pode ver em: http://en.wikipedia.org/wiki/Fallujah . Fallujah tem cerca de 350 mil habitantes, ou seja, é uma cidade “do tope” de Campina. Uma estatística divulgada no New York Times diz que a operação de invasão da cidade está oficialmente encerrada, restando agora as tarefas de “limpeza” (extermínio dos últimos focos de resistência) e ocupação. Para tomar esta cidade de 350 mil habitantes, onde havia cerca de 10 mil combatentes inimigos, os americanos tiveram 51 mortos, 425 feridos, mataram cerca de 1.200 combatentes inimigos e fizeram 1.025 prisioneiros. Ou seja: eles botaram Campina Grande abaixo, fizeram mais da metade da população ir embora, e dos 10 mil combatentes que havia na cidade, eles se livraram de apenas 22%.

Isto é o que o governo Bush chama de “uma operação militar bem sucedida”, assim como houve quem considerasse bem-sucedido o massacre do Carandiru, porque os presos tiveram mais baixas do que a polícia paulista. A guerra que os americanos travam contra os iraquianos é ainda mais desproporcional do que a que travaram com os vietnamtias 30 anos atrás. Para cada americano morto, morrem 20 inimigos (sem contar os civis), e isto é contabilizado como um sucesso. Mas os EUA não param de despejar dinheiro e consultores militares no Afeganistão (invadido no fim de 2001), e ainda não controlam o país, que voltou a ser dominado pelos “barões da papoula” (os traficantes da matéria prima para fabricação da heroína). Che Guevara lançou um dia um grito de guerra: “Precisamos criar 10, 100, mil Vietnams!” George Bush parece decidido a realizar o seu plano.

0523) A pior canção dos Beatles (21.11.2004)





Uma votação recente na Internet elegeu “Ob-La-Di, Ob-La-Da” como a pior canção gravada pelos Beatles. “Disconcordo”, como se diz por aí, mas é para isto mesmo que essas votações são feitas. 

O que me surpreende não é a escolha desta divertida e irrelevante canção pseudo-jamaicana. É que eu sempre achei que “Revolution 9” seria eternamente a escolha mais óbvia para esse título (embora, na minha opinião, seja uma excelente faixa). 

Por outro lado, acho que qualquer beatlemaníaco de bom-senso reconhecerá que os garotos gravaram uma porção de besteiras, no meio de várias dezenas de obras-primas. Que besteiras seriam essas?

A primeira que me vem sempre à cabeça é “Wild Honey Pie”, uma bobagem de McCartney com menos de um minuto (graças a Deus) que por motivos insondáveis mereceu ser uma das faixas do Álbum Branco. Segundo Ian MacDonald em Revolution in the Head (a melhor análise em livro das canções dos Beatles), foi uma brincadeira utilizando um recurso bolado por McCartney para a gravação de “Mother Nature´s Son”: a colocação da bateria no corredor do estúdio, para mudar a sonoridade. A música consiste apenas nas palavras “Honey Pie” esgoeladas ao fundo, com uma linha decrescente de guitarra, e... ah, chega.

Outra forte candidata é “Dig It”, aquela curtição que aparece em Let it Be: “Like the FBI... and the CIA... and the BBC... B. B. King…” São 50 segundos de “pura maluquice emaconhada”, como dizia um amigo meu. Sempre a escuto com prazer, porque me lembra uma época divertida de minha vida. Mas é o tipo da coisa que eu jamais colocaria num disco meu.

Aí chegamos a “You Know My Name (Look up the Number)”. Se você não é músico profissional, caro leitor, se nunca entrou num estúdio de gravação, e tem curiosidade de saber o que é que aqueles músicos tão talentosos fazem entre uma sessão de trabalho e outra, não precisa ir muito longe. Coloque o CD Let It Be e deleite-se com estes quatro minutos de pura bobagem. É o equivalente musical àquilo que os jogadores de futebol fazem no gramado antes do jogo começar: equilibrar a bola na nuca ou nas costas, fazer embaixadas, trocar passes de cabeça... 

O próprio Ian MacDonald, um crítico severo, diz que “o resultado, graças ao senso de humor espontâneo da banda, é bastante engraçado”.

Os Beatles têm numerosos rockzinhos banais (“Little Child”, “What You´re Doing”, “Thank You Girl”...) mas que não são piores do que os rockzinhos análogos que eram feitos na época. Em seus primeiros discos, os piores momentos eram do mesmo nível do que se fazia na época; os melhores momentos eram rockzinhos inovadores como “A Hard Day´s Night”, “I Wanna Hold Your Hand” ou “She Loves You”. 

Mas nos seus álbuns de fim de carreira, o caos econômico e emocional desse período os levou a chamar de canções um material de estúdio que somente um grau muito alto de egocentrismo e desorientação mental faria levar a público.





sábado, 23 de agosto de 2008

0522) A arte de caçar talentos (20.11.2004)




A Google Inc., empresa criadora do instrumento de buscas pela Internet (ver “O Hiper-Google”, 21 de outubro) está recrutando funcionários de uma forma criativa e eficaz. A companhia possui a mais poderosa rede privada de servidores no mundo, e de dois anos para cá passou de 700 para 2.700 funcionários.

A Google precisa de técnicos jovens, espertos, cheios de energia e de competividade. O que faz? Bota um anúncio?

Sim, mas não um anúncio qualquer. A empresa publicou em meia dúzia de revistas científicas (Mensa, Physics Today, o Linux Journal, etc.) um teste de 21 perguntas, espécie de vestibular para candidatos a um emprego.

Algumas perguntas são de natureza matemática (“De quantas maneiras diferentes é possível colorir um icosaedro, cada face de uma cor, com três cores à escolha?”) até questões sem resposta específica, onde vai valer a criatividade do candidato: “Escreva um hai-kai descrevendo possíveis métodos para predizer as oscilações de tráfego na rede”, ou “Qual é a mais bela equação matemática derivada, e por quê?”

Algum tempo atrás, pessoas que passavam de carro pelo Silicon Valley, o reduto da indústria informática, viam out-doors mostrando apenas uma linha de texto: “(o primeiro número primo de 10 dígitos encontrado em dígitos consecutivos de “e”).com”.

Ou seja: o sujeito teria que encontrar esse número primo para ter o endereço correto de um saite. Ao chegar lá, ele se deparava com outras perguntas do mesmo nível e, se as respondesse, recebia um pedido de currículo.

Isto me lembra O homem demolido, de Alfred Bester (1953), onde ele descreve um futuro próximo onde uma pequena percentagem da humanidade é de pessoas telepatas. Estes “ledores de pensamentos” acabam constituindo uma elite intelectual extremamente fechada, que se comunica à revelia de nós, pobres mortais.

Acontece que a maioria dos telepatas não sabe que o é, pois é um talento que precisa ser descoberto e desenvolvido. E Bester descreve uma cena no saguão do edifício de recrutamento de telepatas. Filas enormes de pessoas esperançosas solicitando um exame, um diagnóstico, para saber se pertencem ou não a esse grupo privilegiado.

A certa altura, o protagonista (que é telepata) começa a captar uma mensagem que repete sem parar, baixinho: “Dirija-se para a porta verde, ao fundo do saguão...” Um rapaz negro que está na fila titubeia, e com passos hesitantes se dirige para essa porta, gira a maçaneta, entra. Do outro lado, é abraçado festivamente pelos outros telepatas, que estavam enviando a mensagem.

Moral da história: quando precisamos de pessoas com determinado talento, basta soltar “no ar”, à vista de todo mundo, uma mensagem que só pode ser entendida usando-se esse talento. Para os demais, é um recado sem sentido, mas para Os Que Sabem, é a senha de acesso para um mundo onde aquilo que eles sabem e aquilo que eles são será valorizado na justa medida.








0521) O tamanho do Tempo (19.11.2004)




Para organizar o mundo, inventamos uma ficção poderosíssima (mas ficção, mesmo assim): a de que o Tempo é algo linear, constante, matematicamente divisível. 

Relógios e calendários servem para domesticar nossa mente nesse sentido, fazendo-nos crer que é próprio da natureza do Tempo ser medido, e de que ele é de fato composto por tijolos grandes, que se dividem em tijolos menores, que por sua vez se subdividem em tijolinhos minúsculos, e assim por diante. 

É um artifício intelectual; útil, mas limitado. Os conceitos de ano, mês, dia, segundo, etc. não são conceitos arbitrários, porque se referem a aspectos físicos que de fato existem; mas não são suficientes para descrever nossa relação com o Tempo.

Existe o Tempo do corpo e o Tempo da mente. 

Relógios e calendários são nossa maneira de fazer a mente pensar de acordo com o Tempo do corpo, o Tempo do universo físico, onde a Terra, o Sol, as Estrelas e a Lua, que se movem em ciclos regulares, nos dão um ponto de partida, pontos de referência comuns a todas as pessoas. 

Isto, contudo, é o Tempo externo, o Tempo do mundo, que pode ser medido com uma régua. 

O Tempo da mente, o Tempo da nossa memória emocional e intuitiva, teria que ser medido com um pedaço de elástico, porque ele se estica ou se encolhe de acordo com a maior ou menor energia psíquica que aplicamos nele. Daí os “relógios moles” de Salvador Dali, uma das grandes sacadas da Arte para exprimir essa flexibilidade de nossa percepção.

Jorge Luís Borges admirava-se de ser capaz de recordar com nitidez um fato ocorrido há cinqüenta anos e não poder adivinhar o que sucederia no dia seguinte, “que estava muito mais próximo”. 

Este pequeno paradoxo nos mostra a inutilidade de tentarmos sempre espacializar o Tempo, vê-lo como uma régua, uma escala linear onde nossa consciência se move sempre na mesma velocidade, na mesma direção, e na mesma ordem: 1, 2, 3, 4, 5... 

Nosso Tempo mental é o contrário. Se estamos conversando com um amigo de infância, podemos passar cinco minutos conversando em tempo real, depois nos calamos por dez segundos enquanto avaliamos “de fora” um período de anos de nossa vida, e em seguida passamos cinco minutos rememorando momentos que, somados, ocupariam meses de tempo cronológico.

O Tempo mental se parece com esses websites onde imagens aumentam de tamanho ou se transformam em outras no momento em que passamos o mouse sobre elas. Quando alguma coisa nos evoca um fato emocionalmente relevante, ele cresce, invade nossa mente por inteiro, distorce o tempo real que nosso corpo está experimentando. 

A evocação de um minuto traumático ou de intenso prazer pode se reiterar durante um dia inteiro, como um disco enganchado. 

Em vez de vermos o Tempo como uma linha reta, com o Presente situado entre o Passado e o Futuro, poderíamos visualizá-lo como um cacho de bolhas de espuma em ordem não-cronológica, cada uma delas se expandindo ao ser tocada pela nossa consciência.






0520) O protagonista invisível (18.11.2004)




(René Magritte)


Algum tempo atrás comentei aqui (“O inimigo oculto”, 18 de julho) o recurso narrativo de se manter fora do texto o seu personagem principal, que existe de forma indireta, visto pelos demais personagens. Dei como modelo algumas canções de Chico Buarque, mas a dramaturgia em geral é farta em exemplos. 

Minha irmã Clotilde Tavares acaba de estrear uma peça, que escreveu e dirigiu: Alguém lá fora, a história de três mulheres que moram num lugar afastado. Uma noite, um homem chega lá e é hospedado pelas três, fica dormindo num quarto fora da casa; e a presença desse estranho começa a alterar o comportamento delas. O detalhe é que o personagem masculino nunca é visto, não há um ator para interpretá-lo. Ele existe apenas através das reações das mulheres, que vão “lá fora”, conversam com ele, voltam, etc.

O que me lembra um pouco Rebecca, o romance de Daphne du Maurier filmado por Hitchcock. Quando o filme começa, Rebecca já morreu, e o que acompanhamos é o casamento de seu viúvo, Max de Winter, com uma jovem que aos poucos começa a perceber a presença opressiva dessa ex-esposa que exercia um domínio inexplicável sobre todo mundo. 

Morta e invisível, Rebecca é o “motor” de tudo que acontece no filme, e um dos grandes personagens de todos os tempos, mesmo sem aparecer sequer numa cena de “flash-back”. Uma colcha-de-retalhos de depoimentos e memórias de pessoas que a odiaram ou que eram apaixonadas por ela.

Há casos de personagens menos centrais mas igualmente interessantes, como o espião Kaplan em Intriga Internacional de Hitchcock, que no final ficamos sabendo tratar-se de um personagem fictício, cujas bagagens são enviadas de avião e remetidas para hotéis sem que ninguém jamais o veja. Ele serve somente para despistar os espiões inimigos. 

E há os personagens parcialmente visíveis (há um ator que os interpreta), mas ainda assim misteriosos, como o motorista do caminhão que em Encurralado, filme de estréia de Spielberg, persegue um pobre coitado ao longo de uma rodovia.

Em todos estes casos, o personagem “em si” não aparece, e tudo que sabemos dele é a reação que as pessoas têm à simples menção de seu nome, ou as histórias que contam ao seu respeito. 

Criar um personagem assim é um bom desafio pra um autor, porque ele pode explorar ao máximo as nossas diferentes maneiras de reagir a uma mesma coisa. 

Em seu conto “A aproximação a Almotásim”, Jorge Luís Borges conta a história de um estudante que ouve falar num tal de Almotásim, indivíduo de muitas virtudes, e dedica sua vida a tentar encontrá-lo, sem o conseguir. É a história, diz Borges, da “busca insaciável de uma alma através dos tênues reflexos que esta deixou em outras”. 

Rastrear esses reflexos, dar-lhes substância narrativa, jogar com as contradições e os paradoxos que irão se formando entre eles, é um teste para o bom narrador, e um prazer para o leitor que gosta de saborear sutilezas.







0519) A Perna Cabeluda (17.11.2004)




(ilustração: H. D. Mabuse)

Entre as lendas urbanas mais curiosas do Nordeste está sem dúvida a da Perna Cabeluda, uma entidade sobrenatural que teria assombrado as ruas do Recife durante a década de 1970.

Aparecendo onde menos se esperava (e por falar nisso, onde é que alguém esperaria que aparecesse?), esta criatura era o oposto-simétrico do Saci Pererê. Ou seja, era uma perna-sem-pessoa, em vez de uma pessoa-sem-perna.

Surgia pulando (eu já ia dizer “pulando num pé só”), atacava os transeuntes, dava chute em todo mundo, e depois fugia pulando.

Foi cantada em verso e em prosa. Apareceu como protagonista em folhetos de cordel como A Perna Cabeluda de Tiúma e São Lourenço de José Soares, inclusive um em que ela enfrentava outra criatura mítica: A Véia debaixo da cama e a Perna Cabeluda de José Costa Leite.

Apareceu também em um vídeo de Marcelo Gomes, A Perna Cabeluda (1995). Figurou em shows de Chico Science & Nação Zumbi: Chico dançava com uma perna de pano estufada, e depois a jogava no meio da platéia.

Eu próprio a utilizei como tema num curta para TV de 40 minutos para o programa Viva Pernambuco, em 1996, dirigido por Romero de Andrade Lima e Cláudio Assis.

A Perna Cabeluda é um bom exemplo de como surgem essas criaturas folclóricas. Uma vez eu estava em Recife conversando com o escritor Raimundo Carrero, que me deu uma versão para o surgimento dessa lenda. Ele e Jota Ferreira tinham um programa de rádio (pelo que me lembro ele era redator e Jota Ferreira o apresentador, mas posso estar enganado). E uma noite, entre uma música e outra deram uma notinha humorística, mais ou menos assim:

“Pois é, meu amigo, a vida no Recife não anda nada fácil!... Chega agora à nossa redação a notícia de que Fulano de Tal, guarda-noturno, chegou em casa depois de uma jornada de trabalho e deitou-se para dormir ao lado de sua esposa. Ouviu um barulho, e ao olhar para baixo viu uma perna cabeluda embaixo da cama!”

A intenção era sugerir, com a imagem da perna cabeluda, a presença do “urso”, do amante da esposa. A nota provocou muitos risos, e no dia seguinte, ele voltaram à carga.

“E atenção, minha gente... Sicrano de Tal, morador da Imbiribeira, chegou em casa de viagem, e para sua surpresa viu a perna cabeluda fugindo pela porta da cozinha!” 

E aí não parou mais. Usada inicialmente como uma sinédoque visual (a parte pelo todo), a perna acabou ganhando vida própria.

Isto não quer dizer que qualquer coisa inventada vire automaticamente uma lenda. Neste caso específico virou porque a imagem resultante ficou ao mesmo tempo absurda e engraçada, ou pelo menos assim pareceu à galera onde a história começou a circular (ouvintes de rádio dos subúrbios recifenses).

Imagens e figuras semelhantes são lançadas diariamente no caldeirão cultural. É um processo aleatório. Umas pegam, outras não. “Cultura popular” talvez se defina por este aspecto aleatório, onde não se pesquisa, não se planeja, e as criações dão certo meio que por acaso.






0518) As Pedras do nosso Reino (16.11.2004)




(Foto: Dantas Suassuna)

Somos dois Estados vizinhos e rivais, embora de uma rivalidade meio promíscua, meio misturada com xamego, como a de dois irmãos com pequena diferença de idade. Os pernambucanos consideram seu Estado mais importante do que a Paraíba, certamente por ser maior, mas a verdade é que a maior presença de Pernambuco não se deve ao seu tamanho, e sim à presença do Recife, uma metrópole que sozinha tem população equivalente a metade do nosso Estado, e que é uma das três capitais “de fato” do Nordeste (juntamente com Salvador e Fortaleza).

Tirando isto, sempre achei que os dois formam um Estado só, porque é enorme a homogeneidade geográfica, corográfica, econômica e cultural entre os dois. Desdobre o mapa, leitor. Existe aos meus olhos uma continuidade nítida entre as duas zonas-da-mata; entre as duas metades da região dos Cariris, ali pela parte central dos dois Estados; e entre os sertões profundos, principalmente no trecho em que a Paraíba se interrompe na direção Oeste, dando lugar à parte Sul do Ceará, a qual, vista do ângulo da Geografia e da História, poderia perfeitamente pertencer tanto à Paraíba quanto a Pernambuco.

Anos e anos de convivência com cordelistas e repentistas reforçaram no meu espírito esta impressão de unidade cultural entre os dois Estados. No dia em que uma revolução qualquer obrigar o Brasil a redesenhar suas fronteiras internas, enviarei moção ao Congresso Nacional propondo a anexação, ao território paraibano, daquele triângulo territorial que tem início em Serra Talhada, subindo na direção de Triunfo, alongando-se via Tabira até São José do Egito e voltando a descer rumo Sul até Sertânia, onde (tirem os chapéus, caros leitores) está sepultado meu avô materno, o velho Pedro Quirino. Tudo isto é território de Cantador, e, para ser sincero, é território independente; tem pouco ou quase nada a ver com Recife e João Pessoa.



Tudo isto me vem à mente ao contemplar a capa do Romance da Pedra do Reino, de Ariano Suassuna (4a. edição, 1976), onde Eugênio Hirsch, um dos nossos maiores capistas de livros, estilizou a imagem das duas Torres de Pedra que concentram o sonho de grandeza de Dom Pedro Dinis Quaderna. As Pedras se situam em São José do Belmonte, na fronteira entre Pernambuco e Paraíba; uma delas é ligeiramente maior do que a outra, assim como o território de Pernambuco é ligeiramente maior que o nosso. As duas Pedras podem servir como metáfora visual dos dois Estados, unidos como duas bananas-filipinas, ou, como intuiu a genialidade de Eugênio Hirsch, como dois dedos, indicador e médio, erguidos num sinal de bênção. O Romance da Pedra do Reino, que neste final de ano será relançado em nova edição pela José Olympio, mostra este território simbólico profundo, retalhado ao meio pelas convenções políticas e cartográficas, mas que não perdeu até hoje a unidade de espírito e a consciência de si próprio.





sexta-feira, 15 de agosto de 2008

0517) Claríssimo espectro (14.11.2004)




Era ininteligível à maneira das plantas, dessas trepadeiras que se expandem buscando a luz, que parecem imóveis, mas basta a gente ir lá dentro tomar um copo dágua que na volta ela já avançou mais um ladrilho. 

Perguntava um pouco o tempo inteiro. A caligrafia era tumultuada, evitava as linhas do caderno como se evita um tiroteio, as palavras dispersadas em várias direções por um terremoto silencioso.

Ainda hoje seu rosto é um mistério de olhos amendoados e malares salientes, cercado por penteados e roupas dos anos 50. Erguia o cigarro como se não lhe pertencesse. Escrevia em transe, aos arrancos, aos ziguezagues. 

Deus a definiu um dia como um círculo cuja circunferência estava em toda parte e o centro em nenhuma. Debatia-se na gosma espessa do tempo, retida no insuportável presente, vendo o calendário fluir à sua volta, escorrer sem remissão. Sua vida foi um afogamento. Suas mãos eram arcos e eram cordas.

Passou entre nós como um fantasma para o qual fôssemos nós os transparentes, nós e as forças que nos movem: paixão, coração, prazeres. Através da matéria, enxergava o balé das forças, a hierarquia inconstante das vontades, a fatalidade serena que impele a gota de chuva rumo ao chão e o chão rumo à gota de chuva. 

O destino descascou sua vida, enxaguou-a de tempestades, esboroando tudo menos a pedra lavrada das palavras.

Em volta dela, aonde fosse, movia-se aquele umbral. Falava de coisas ausentes como se estivessem sentadas ali naquela mesma sala. Óculos, xícara, leque, biscoito, batom: tudo isto era feito da mesma substância cristalina das mãos que os tocavam. Seu comércio com o mundo era solerte, na cumplicidade que as meras coisas mantêm entre si quando não estão sendo observadas.

Criava a loucura como quem cria um cachorro num apartamento. Aceitava o fato de que crescemos como uma árvore ao contrário, onde cada galho ramifica-se em outros galhos mais grossos, e estes em outros mais grossos ainda. Aceitava o gigantesco desperdício que é viver. 

Quando tinha insônia, aconchegava-se ao travesseiro e ao consolo de não estar numa madrugada fria, levando chuva num ponto-de-ônibus deserto. Tinha um corpo sem terra, uma mente sem teto. Escutava os pensamentos de todo mundo o tempo inteiro e não conseguia se concentrar nos seus. Pensava que ser todo mundo era uma obrigação, e que não estava sabendo se desincumbir direito.

Para ela, o ser e o não-ser eram as duas asas do ser. Via numa parede o que se vê nos espelhos, e via no espelho o que se vê nas janelas. Viveu separando com um bisturi as fibras do melodrama. 

Sobreviveu à própria infância. Passou a vida com um anzol cravado na língua da alma. Todas as noites um anjo a visitava, mas nunca lhe disse nada. O mundo passou por ela como o sol por uma peneira. Um sorriso oblíquo morava em sua boca, como se ela não soubesse que era apenas uma mulher feita de cacos de vidro.








0516) O ensaio incompreensível (13.11.2004)





Falei há alguns dias sobre o poema incompreensível, mas por uma questão de eqüidade devo falar também da crítica incompreensível. O estudo acadêmico da literatura tem ficado, a cada década que passa, mais invadido por uma mentalidade que pretende analisar textos literários com instrumentos teóricos abstrusos, manipulados através de um jargão dos mais obscuros.

A impressão que tenho (e não só eu) é que as faculdades, depois que foram tomadas pelo vírus pernicioso da Lingüística e do Estruturalismo, só sabem ensinar uma meia-dúzia de recursos de análise lingüística, e mais nada. Os alunos passam quatro anos queimando as pestanas para aprender a usar esses recursos, e quando se formam saem a aplicá-los às cegas em qualquer texto que lhes apareça pela frente. É como um estudante de Medicina que aprendesse a usar o bisturi, o escalpelo, o fórceps, etc., e ao se deparar com um doente se sentisse na obrigação de usar nele todos esses instrumentos, por ter sido a única coisa que lhe ensinaram na faculdade.

Hoje, abri ao acaso um livro de análise sobre um romance brasileiro, e o crítico iniciava um parágrafo da seguinte forma:

“Observamos no início desta análise a fusão actancial resultante da irrupção do actante da enunciação na narração, que se confunde desta maneira com o actante do enunciado, indicando ser esta fusão inevitável, dado o projeto do actante da enunciação de discursivizar, reproduzindo-a, a travessia vivida. Como dar a esta, que se constitui numa desintegração da identidade subjetiva, uma forma, se reproduzi-la implica não só um retorno ao que aconteceu, mas um retorno ao que instaura uma identidade, ao que a gera e garante enquanto tal, isto é, um retorno à linguagem, necessariamente afetada em seu ser nesta experiência?”

Entendeu, caro leitor? Pois vá a janela e solte um foguetão. Você merece. Não estou dizendo que o texto não faz sentido, porque provavelmente faz. É a linguagem que me incomoda. Parece aquelas brincadeiras em que a gente pega frases como “Pode tirar o cavalinho da chuva” e a transforma em “Digne-se trasladar seu eqüino de pequeno porte da intempérie”. Fujam todos. Corram, pelo amor de Deus. São monstros terríveis que estão vindo por aí. É o Ranço do Beletrismo! O Fetichismo das Prosopopéias! A Reiterância dos Proparoxítonos! A Recidiva Polissilábica! A Tecnologização da Discursividade Conceitual mascarando o Não-Ser da Coisa-Em-Si!

Esse pedantismo patético que acomete uma parte (felizmente só uma parte) da crítica literária pode ser combatido com doses generosas de textos inteligentes analisando textos inteligentes. Toda vez que se deparar com uma monstruosidade como aquele parágrafo acima, leitor, basta ler sem perda de tempo algumas páginas de O Castelo de Axel de Edmund Wilson, ou de Gregos e Baianos de José Paulo Paes, ou de Por que ler os clássicos de Ítalo Calvino, ou de No Bosque do Espelho de Alberto Manguel. Nem tudo está perdido.

0515) “O casamento de Romeu e Julieta” (12.11.2004)



O novo filme de Bruno Barreto, que deve estrear neste fim de ano, é uma divertida comédia onde a situação clássica de Romeu e Julieta (amantes que pertencem a famílias rivais) é transposta para a São Paulo de hoje. Julieta (Luana Piovani) pertence a uma família de torcedores roxos do Palmeiras, e ela própria é jogadora. Acaba se apaixonando pelo corintiano Marcus Ricca, que, para poder ter acesso à amada, finge torcer pelo Palmeiras, o que desperta a ira de sua própria família, toda ela de corintianos roxos. O filme tem bons momentos de comédia e bons momentos de captação do espírito do futebol, principalmente nos primeiros dez minutos, em que os personagens principais são as torcidas do Palmeiras e do Corinthians.

É engraçado que o futebol, uma das atividades mais definidoras do conceito de brasilidade, não tenha nem um grande filme nem um grande livro aqui no Brasil. Existem, é verdade, grandes documentários e grandes ensaios literários. Mas não temos um grande filme de ficção sobre futebol, e não temos um grande romance. Nunca entendi por que. O filme de Bruno Barreto, aliás, não é sobre o jogo de futebol, e sim sobre a psicologia do torcedor, o fanatismo, a rivalidade de torcidas. É sobre o futebol em volta do campo, e não dentro do campo.

O problema parece ser dentro do campo. A coisa mais difícil do mundo é encenar um jogo de futebol que pareça de verdade. O futebol é rápido demais, atravancado demais, muito cheio de esbarrões, de quedas, de coisas mal-feitas. Quando um roteirista descreve uma jogada e os atores-jogadores a ensaiam longamente, sai tudo tão certinho que parece videogame. Não engana ninguém. O espectador sabe, de cara, que aquilo não é um jogo, é uma porção de caras fingindo que estão jogando.

Isto é visível até em algumas tentativas mais ambiciosas, como o filme de John Huston Escape to Victory (1981), que imagina um jogo entre prisioneiros aliados e oficiais nazistas, durante a II Guerra. O time dos aliados é um “misto quente” de atores (Michael Caine, Sylvester Stallone) e jogadores (Pelé, o inglês Bobby Moore, o argentino Ardiles). O clímax do filme é um gol de bicicleta, mas como sempre acontece, tudo é ensaiadinho demais; falta aquela sensação de imprevisibilidade e de improviso que é um dos charmes de um verdadeiro jogo de futebol.

Mostrar futebol no cinema é como mostrar repentistas fazendo versos na literatura. Se um escritor escreve um conto onde acontece uma Cantoria de Viola, como passar para o papel aquela sensação de obra-se-criando, de coisa feita-na-hora, que é o cerne de uma cantoria? Os versos acabam saindo bem-feitinhos demais, não parecem improvisados. O leitor sempre fica com a sensação de que foi tudo ensaiado, tudo combinado, tudo preparado pelo autor para resultar da forma que resultou. Falta aquela vertigem da coisa acontecendo na hora, pela primeira e única vez, que é a grande magia da Cantoria e do Futebol.