sexta-feira, 28 de março de 2008

0316) O xadrez transgênico (25.3.2004)




Quando garoto, eu me admirava ao ver nos livros de xadrez as partidas sendo concluídas com a rubrica: “Abandonam”. Acostumado à ética brutal dos jogos de pelada no campinho das Barreiras, eu perguntava a meu pai: “Ei, que história é essa? As Brancas correram-com-medo?” Aí vinha a explicação de que o xadrez é um jogo de tal exatidão que em certo momento, depois de uma jogada decisiva, ambos os jogadores percebem que não há alternativa possível para evitar o xeque-mate dentro de um, dois ou mais lances. Qualquer que seja o caminho a seguir, o desfecho será um só. Não é preciso continuar. O resultado final é inevitável.

Comecei a pensar no assunto e me ocorreu que à medida que fosse aumentando o poder de antevisão das jogadas (com o uso dos computadores, por exemplo), seria possível prever o fim de uma partida com 10, 20, 30 jogadas de antecedência. Talvez chegássemos ao ponto em que um cara jogaria “Peão 4 de Rei” e o outro diria: “Abandono!” O xadrez perderia a graça. Ficaria parecendo com aquela cidadezinha do interior, onde todas as piadas eram conhecidas e numeradas, e bastava alguém dizer: “187” pra todo mundo rir. (E o forasteiro diz: “126”, ninguém ri, e aí explicam que a graça da piada está no jeito de contar.)

O xadrez é um jogo de multifurcações estratégicas onde cada jogada provoca uma mudança qualitativa radical. Em cada posição temos milhões de jogadas possíveis, milhares aceitáveis, e um punhado de jogadas que nos permitem chegar onde queremos sem que o adversário, que está vendo tudo, nada perceba. Vi há algum tempo uma entrevista na TV com Gary Kasparov onde ele fala que o uso de super-computadores está tornando o xadrez uma simples disputa de velocidade no cálculo de probabilidades, e que por isto Bobby Fischer teria sugerido alterações pequenas mas radicais nas regras, para trazer uma certa novidade e imprevisibilidade ao jogo. Bastaria, por exemplo, mudar a posição inicial das peças – digamos, invertendo as posições relativas do bispos e das torres. Bastaria isso para evaporar quase todas as estratégias provadas e comprovadas até agora, fazendo o xadrez recomeçar quase do zero.

Mais recentemente foi noticiado (em “The Guardian”, 4 de março) que pesquisadores da Suécia e da Austrália têm examinado mudanças nas regras do xadrez, não para serem aplicadas no jogo em si, mas como complemento a estudos de estratégia militar. Uma mudança interessante, para tornar o jogo mais parecido com a guerra, é o que eles chamam “incerteza informacional”. Os jogadores, por exemplo, jogam “às cegas” e são impedidos de conhecer os dois últimos movimentos do adversário. Outra mudança permite aos jogadores vários movimentos simultâneos, como ocorre numa batalha real. Este xadrez “transgênico” talvez não venha a ser assimilado pelos torneios oficiais ou pela teoria ortodoxa, mas pode ajudar a revitalização do jogo entre seus praticantes mais calejados (e entediados).

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