quarta-feira, 26 de março de 2008

0294) O sujeito de Porlock (28.2.2004)


(Manuscrito de "Kubla Khan", por Samuel Taylor Coleridge)


O Escritor caminha em seu vasto escritório atapetado, entre as paredes cobertas por estantes de mogno de onde quarenta séculos de literatura o contemplam. 

Nesta manhã, há alguns minutos, ocorreu-lhe a Grande Idéia, aquela por que ansiava há meses e para a qual se preparou por toda a vida. Brotou-lhe na mente, íntegra como uma Mandala, a Obra que irá justificá-lo perante a posteridade. 

Ele julga ouvir um rumor de glórias e de hexâmetros, percebe que de dentro de si emerge algo vasto como uma catedral gótica e rendilhado de informações como um HD de computador. Cada segmento, cada página, cada palavra pode ser vista como nitidez, é só passá-las todas para o papel. 

Ele dá um passo na direção da escrivaninha onde, percebe, terá que debruçar-se durante os próximos anos de sua vida, quando a porta se abre... e a cozinheira diz: “Braulio, o café tá passado, tu vai querer ovos?” A Obra espouca no ar, e se deposita em borrifos e salpicos de bolha-de-sabão sobre o chão de tacos.

Parece uma catástrofe, mas acontece todo dia, para não dizer que acontece o dia todo. Daí a minha preferência pela madrugada, quando o telefone não toca, a porta não se abre, a campainha não brada, o escritório não é invadido por pessoas bem-intencionadas brandindo irrelevâncias. 

Às vezes, um trabalho exige que a gente leve em conta uma dúzia de coisas ao mesmo tempo, para ver se se encaixam, se uma delas não colide com as outras; deve ser mais ou menos o que pensa um músico quando precisa ter a idéia exata do que doze instrumentos diferentes estarão fazendo durante aqueles minutos cruciais de um movimento orquestral. 

Durante a madrugada, é possível desenvolver pensamentos longos e consecutivos, articular uma idéia complexa e mantê-la viva na mente durante uma ou duas horas enquanto a examinamos de todos os ângulos.

É famosa a história do poeta Coleridge, que no verão de 1798, sentindo-se indisposto, compôs, durante um sono profundo, um longo poema inspirado pelo livro que lia pouco antes de adormecer: 

“Em Xanadu, Kublai Khan  / fêz erigir um palácio suntuoso, / onde Alph, o rio sagrado, / percorria cavernas inexploradas pelo homem, / até desaguar num mar sem sol...” 

Ao acordar, tinha composto um poema de cerca de 200 ou 300 versos descrevendo este palácio. Diz ele que as imagens lhe brotavam diante dos olhos, e ele tinha apenas que formar as frases correspondentes. Ao despertar, o poema permanecia intacto, completo, em sua memória. Ele sentou-se à mesa e começou a transcrever os versos. 

A certa altura, contudo, bateu à porta uma pessoa do vilarejo de Porlock, que ficava próximo, com um assunto urgente para tratar. Quando se livrou do visitante, o poeta constatou que o poema tinha voltado para o lugar de onde viera. Sobraram apenas as 54 linhas que hoje figuram em todas as antologias poéticas da língua inglesa, as que ele conseguiu passar para o papel antes que o sujeito de Porlock o interrompesse.





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