segunda-feira, 10 de março de 2008

0162) Crianças cruéis (27.9.2003)

Por que motivo as crianças têm fascinação por histórias de terror e violência? Já me fiz esta pergunta antes (“Crianças e monstros”, 2 de maio), mas acho que nunca vou acabar de respondê-la. Devo ter lido em algum lugar que quando uma criança tem medo de um tigre e passa o resto da infância desenhando tigres isto é uma forma de domesticar o tigre que ficou dentro de seu cerebrozinho. Lá dentro existe a memória ameaçadora de um tigre que um dia a assustou. Se ela desenhar 99 tigres que lhe obedecem e que se deixam transferir, comportadinhos, para a folha de papel, o tigre-contra fica numa tremenda duma inferioridade em relação aos tigres-a-favor.

A literatura de terror que prolifera no mundo, com todos os seus dráculas e frankensteins, é uma extensão desse processo. Mergulhamos a cara num livro de Lovecraft porque sabemos que, quando a barra começar a ficar muito pesada, basta fechar o livro e olhar em volta – o que pode haver de pior à nossa frente é nosso time levando mais uma goleada para o país inteiro ver. O terror literário e cinematográfico é um terror totalmente sob controle. Basta ver a expressão feliz dos adolescentes que se amontoam nos cinemas que exibem as aventuras de Jason e de Freddy Kruger.

Ah, se todos os males do mundo fossem estes!... Mas não são. Existe uma ruindadezinha embutida em cada um de nós, um instinto malévolo que nos levou a cometer, na infância, atos que não cometeríamos hoje, depois que a lavagem-cerebral civilizatória nos transformou nos cidadãos exemplares que agora somos. Lembro-me ainda hoje das manhãs que passei usando um binóculo invertido, como se fosse uma lupa, diante do qual eu decapitava com gilete uma imensa quantidade de saúvas vermelhas, que estoicamente ofereciam suas vidas pelo bem da Ciência. Verdade que a única coisa que a Ciência aprendeu foi que é possível decapitar uma saúva com uma gilete. Se a Humanidade um dia escapar da extinção graças a este detalhe, não se esqueçam de me agradecer.

Talvez meu instinto carniceiro (ou científico) tenha se satisfeito com estas experiências. Mas não me esqueço de um episódio relatado por Stephen King. O cantor Bing Crosby deu de presente ao filho pequeno uma tartaruguinha, e o garoto ficou louco por ela. Tempos depois a tartaruga morreu. O menino ficou inconsolável. Crosby botou o menino na perna, filosofou, explicou-lhe o sentido da vida, falou que a morte é inevitável, propôs fazerem um funeral. Botaram o cadáver numa caixa, prepararam uma sepultura no jardim, fizeram o ritual, rezaram. Na hora de botar na cova a caixa de sapatos que servia de ataúde, o menino pediu para dar uma última olhada. Abriram a caixa... e a tartaruguinha estava mexendo as patas. Não tinha morrido, afinal de contas. Houve um instante de surpresa, e aí o garoto voltou-se para o pai e confidenciou baixinho: “Acho que vamos ter que matá-la.” É a vida, companheiros.

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