segunda-feira, 10 de março de 2008

0159) De Joseph K. a Stanley K. (24.9.2003)




Ainda sobre o filme De olhos fechados de Stanley Kubrick: de todos os críticos que li, acho que apenas Jonathan Rosenbaum, do “Chicago Reader”, apontou a afinidade entre este filme e a obra de Franz Kafka.

Eyes Wide Shut se baseia no conto “Traumnovelle” de Arthur Schnitzler, publicado em 1926. Schnitzler (1862-1931) e Kafka (1883-1924) foram contemporâneos e quase conterrâneos: suas cidades-natal, Viena e Praga, pertenciam ao Império Austro-Húngaro que se esfacelou com a I Guerra Mundial.

O filme de Kubrick lembra muitos momentos de O Processo, em que Joseph K., vagando aos tropeções nos “corredores da justiça”, depara-se com livros pornográficos na mesa de um tribunal, mulheres que se entregam a homens em lugares públicos, a secretária de um advogado que se entrega a ele na ante-sala do patrão, e meninas depravadas que parecem manter comércio sexual com o pintor Titorelli.

Esta última cena, com suas conotações de sexualidade pedófila, tem uma perfeita contrapartida em Eyes wide shut na cena em que Bill Harford flagra a filha do dono da loja de fantasias entregando-se a dois clientes adultos durante a madrugada. Ao espreitar os bastidores do mundo do Poder, o protagonista descobre que ali se pratica sexo o tempo inteiro.

Em Kafka, a atividade sexual é sempre vista de fora, com distanciamento, mesmo quando é o protagonista que está envolvido nela. No contexto do “Processo”, o sexo é uma das muitas atividades humanas cuja realidade o protagonista não pode negar, mas cuja finalidade não entende.

A pergunta que parece flutuar na mente de Joseph K. durante todo o livro (e também na adaptação cinematográfica de Orson Welles) é: “O que está acontecendo? Por que as pessoas estão se comportando assim?”

No filme de Kubrick, Bill encontra a filha de um paciente, que se oferece a ele diante do leito do pai morto enquanto aguarda a chegada do noivo (uma cena totalmente nelson-rodriguiana). Encontra uma prostituta com Aids, que ele só não leva para a cama porque na hora H a esposa liga para seu celular. Encontra a “lolita” que se entrega às escondidas aos fregueses do pai, mas depois é o próprio pai que age como seu cafetão. Vai à orgia; na noite seguinte, encontra uma segunda prostituta que ele só não leva para a cama porque ela lhe revela que a primeira estava doente, e aí ambos ficam com medo um do outro.

Georges Perec, em W, ou a Memória da Infância, diz: "Há dois mundos, o dos Senhores e o dos Escravos. Os Senhores são inacessíveis e os escravos se entredevoram". Quando a magia do seu casamento perfeito se estilhaça, Bill tem um vislumbre do que são as relações de sexo e poder no mundo real, mas o filme tem um relativo happy-end, quando ele e Alice resolvem juntar os cacos e seguir em frente.

O mundo de Kubrick é mais otimista que o mundo de Kafka, onde Bill Harford seria morto a tiros numa rua quase deserta, antes de ter tido tempo de comprar um jornal na banca.





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