segunda-feira, 10 de março de 2008

0156) A amnésia (20.9.2003)




Certa vez meu pai estava lendo um livro policial e dando altas risadas: “Esse tal de Shell Scott é o máximo!...” Olhei a capa do livro, que era A Coisa Esquentou no Cemitério, e lembrei a Seu Nilo que ele tinha lido esse livro um ano atrás. Ele retrucou: “Tanto faz. Se eu não me lembro, é como se fosse um livro novo.” E continuou lendo e rindo. 

Tinha razão. Livro novo é um livro que a gente não ainda leu, não importa se saiu esta semana ou no século passado. E se a gente leu e não se lembra, melhor ainda. Eu defendo a teoria de que tudo que experimentamos fica gravado em nossa mente (ver colunas “O plágio inconsciente”, 23 de julho, e “O mnemonista”, 26 de agosto), mas defendo também a teoria de que esta mente, como os computadores, tem um disco rígido (o inconsciente) e uma memória RAM (o consciente, o Eu).

Já vi referências a muitos escritores ou filósofos que, por terem ficado loucos ou senis, não conseguem reconhecer livros que eles próprios escreveram. Se não me engano, exemplos disto são Nietzsche e George Santayana. 

Deve ser uma experiência desconcertante você ler um livro cheio de idéias impressionantes e ficar sabendo que foi você mesmo quem escreveu aquilo tudo, só que não se lembra. Não creio que seja um fato muito raro. Eu sou um rabiscador inveterado de livros, só sei ler de caneta em punho; e muitas vezes pego nas minhas estantes um livro lido (e copiosamente anotado) há vinte anos... e não reconheço uma frase sequer, mesmo vendo os trechos sublinhados e destacados no meu estilo habitual.

Para onde foi aquilo tudo, que sei que li, mas não me lembro? Foi para o HD, decerto, para alguma parte do cérebro que preserva intacto não apenas o texto lido, mas as circunstâncias que cercaram a leitura: o local, a hora do dia, os móveis que havia em volta... 

Não estou exagerando, porque em muitos casos, quando folheio um livro que não relia há muito tempo, certos trechos me trazem de volta o local da primeira leitura. Ainda hoje, quando leio o conto “O Estrela de Prata”, das aventuras de Sherlock Holmes, o que me vem à mente é a casa em que moramos na Vila dos Motoristas; eu sentado no degrau da porta traseira, tendo ao lado um prato cheio de bagos de jaca, minha mãe lavando pratos e cantando, e a arquibancada coberta do campo do Treze, de costas, a cem metros de distância.

Experiências médicas comprovaram que a estimulação do cérebro através de eletrodos é capaz de desencadear memórias desse tipo, só que isso se dá de forma aleatória. Não existe um ponto do cérebro que corresponda “ao dia 26 de abril de 1960”. 

O dr. Oliver Sacks, em seu livro de casos neurológicos O Homem que Confundiu Sua Mulher com um Chapéu, conta a história de uma garota cujo cérebro, pressionado por um tumor, começou a reviver os anos de sua primeira infância, e a rever a imagem de sua mãe que já morrera. A garota morre, mas o médico se consola pensando que ela conseguiu viver seus últimos dias num passado feliz.








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