segunda-feira, 10 de março de 2008

0152) A sopa de pedras (16.9.2003)

Pedro Malazarte vinha pela estrada e parou numa casa para pedir comida. A mulher disse que não tinha. Aí ele pediu um prato com água quente para fazer uma sopa de pedras; a mulher ficou curiosa, e trouxe. Ele colocou na água umas pedrinhas miúdas que lavou na torneira do jardim, aí pediu um pouco de sal. A mulher trouxe. Pediu cebola. Ela trouxe. Ele foi pedindo e ela trazendo: tomate, coentro, um macarrãozinho, um arrozinho, um pedaço de carne pra dar gosto... Depois, ele jogou as pedras fora e tomou a sopa.

A sopa de pedras usa o princípio do “indez”, o ovo verdadeiro ou falso que o pessoal bota num ninho para que as galinhas fiquem sugestionadas pela presença dele e comecem a pôr ovos ali. Num certo sentido, corresponde também ao grão de areia que, infiltrado dentro da ostra, começa a ser isolado como um cisto, sendo coberto por camadas protetoras de nácar que dão origem à pérola. Em todos estes casos existe a figura do elemento falso que serve como catalisador de um processo onde ele próprio acabará sendo descartado em favor de elementos verdadeiros.

Nada aterroriza mais um escritor do que um pedido do tipo “escreva qualquer coisa aí”. Diante da página em branco, a maioria das mentes literárias fica em branco também. A imaginação precisa de um mínimo de apoio para se lançar no espaço. Em vez de “escreva qualquer coisa”, prefiro mil vezes alguém dizer: “Escreva qualquer coisa que envolva... um elefante e um grampeador”. Pronto. Todas as luzes da mente são acesas, e o motorzinho começa a zumbir. Existe um claro ponto de partida, uma semente de idéia. Pode ser que no final a gente acabe escrevendo algo que não tem muito a ver com tema proposto, mas, paciência: separa-se o texto já pronto, para ser usado no momento oportuno, e volta-se ao ponto de partida: o elefante e o grampeador.

Na poesia popular, é essa a função do mote que se dá aos repentistas. Quando pedimos que ele “cante alguma coisa” teremos versos decorados, ou teremos uma série de sextilhas em que os poetas estarão flutuando ao sabor dos próprios ventos mentais, à procura de assunto. Muito melhor é rabiscar num papelzinho uma idéia forte – por exemplo, os versos de Zé Ramalho: “Vi o lombo da serra Borborema / reluzindo o calor do Cariri” – e deixar por conta deles. É uma proposta clara de assunto, que os poetas glosarão por alguns minutos. Depois, com o embalo adquirido, passarão para outros assuntos, mas quem “passou primeira” no carro foi o pedido inicial.

Quanto ao elefante e ao grampeador, é muito simples. Posso imaginar que na Índia colonial todos os escritórios do governo eram forçados a ter em seu interior um filhote de elefante cuja função era colocar a pata em cima das folhas soltas de papel, para impedir que se espalhassem, ou que fossem levadas pelo vento. Em 14 de setembro de 1874, o escriturário Ahandjabar Hirulami pensou: “Que tal se alguém inventasse uma maquinazinha de prender folhas de papel?” E inventou.

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