domingo, 9 de março de 2008

0128) Uma biografia de Guimarães Rosa (19.8.2003)

Existem umas 200 biografias de Machado de Assis, nenhuma de Guimarães Rosa. Por que será? Temos fascículos ou livros didáticos com resumos da vida do autor, e só. Precisaríamos de uma biografia pesquisada, trabalho profissional, como o de Fernando Morais sobre Assis Chateaubriand, os de Ruy Castro sobre Nelson Rodrigues e Garrincha, ou (para ficarmos num exemplo doméstico) o de Fernando Moura e Antonio Vicente sobre Jackson do Pandeiro.

Não que eu tenha ilusões de que biografias sirvam para revelar “quem foi, de fato, Fulano de Tal”. Toda vida humana, até a de Zezim das Couves, é irredutível a palavras. Sempre que leio uma biografia, fico pensando nos acessos de desespero e nas crises de depressão que o biografado teria, se lhe dessem a chance de voltar à vida e ler o que escreveram sobre ele. “Não foi nada disso!” seria com certeza seu desabafo mais frequente. Mas, paciência. Fazer o quê? Morreu, lascou-se. A vida continua, e a crítica literária também. E há um setor da crítica, que tem lá sua importância, onde se investiga a cronologia de uma vida em paralelo à cronologia da gestação e criação da obra.

A vida de Guimarães Rosa permanece em aberto, esperando quem sabe a vinda de um “brazilianist” que tenha o pique do destemido John Baxter, o cara que já biografou Luís Buñuel, Federico Fellini, Stanley Kubrick, Woody Allen e Steven Spielberg. Ou de Jeffrey Meyers, que já contou as vidas de Scott Fitzgerald, Edgar Allan Poe, Hemingway, D. H. Lawrence e Joseph Conrad. E o momento seria agora, em que muitos dos seus contemporâneos ainda estão vivos, além de familiares, como suas filhas Vilma e Agnes.

Tolkien, o autor de “O Senhor dos Anéis”, afirmou certa vez: “Uma das minhas opiniões mais sólidas é a de que o estudo da biografia de um autor é uma maneira totalmente inútil e falsa de abordar sua obra.” E ainda assim, a biografia dele escrita por Humphrey Carpenter é uma aula de como mostrar a relação entre vida e obra, sem as interpretações gratuitas ou as generalizações apressadas em que biógrafos mais ingênuos (ou menos escrupulosos) incorrem com facilidade. A biografia literária que Emir Rodriguez Monegal fêz sobre Jorge Luís Borges é, também, um primor de reconstituição do ambiente cultural e literário que formou o escritor. O biografado entra nela quase como um coadjuvante. O personagem principal é a Literatura, através dos escritos de Borges e do mundo literário de que ele fêz parte.

Guimarães Rosa foi médico rural e do Exército, trabalhou no antigo Serviço de Proteção ao Índio, foi diplomata na Alemanha nazista e na Colômbia, ajudou a demarcar as fronteiras do Brasil, flertou com o Ocultismo, estudou dezenas de línguas, ocupou numerosos cargos oficiais, teve uma vida bem documentada, correspondia-se com Deus e o mundo (no sentido real e no metafórico). Tudo isso se filtrou para os seus escritos, mas a história dessa complexa alquimia ainda está esperando para ser contada.

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