domingo, 9 de março de 2008

0124) A arte do trocadilho (14.8.2003)



(Ilustração: Brock David)

O trocadilho é um desvio verbal em que uma palavra é alterada, ou mais de uma palavra são justapostas, de modo a fazê-las assumir novos sentidos, por associação sonora. 

Há inúmeros tipos e variadas técnicas de trocadilho. A qualidade de um trocadilho deve ser medida, a meu ver, pela relação complexidade/simplicidade. Um bom trocadilho tem uma idéia complexa, mas é rapidamente entendível; e vice-versa. 

O espírito de um trocadilho está no som, e não na grafia das palavras, mesmo quando ele é comunicado por escrito. 

Um caso de trocadilho involuntário foi o que vi uma vez numa enorme livraria: uma senhora entrou e perguntou ao funcionário “onde era a seção espírita”. Pela cara perplexa que ele fêz, é claro que ouviu “sessão”. Foi um trocadilho involuntário de parte a parte.

Grandes trocadilhistas são Guimarães Rosa, Paulo Leminski, Glauco Mattoso, Oswald de Andrade... 

O melhor tratado científico sobre o trocadilho é O Chiste e suas relações com o Inconsciente, de Freud. Como a quase totalidade dos exemplos é em alemão, a necessidade de traduzir e explicar a múltipla significação de algumas palavras tira um pouco do prazer da leitura, porque o bom do trocadilho é o pequeno susto quando percebemos que estávamos “lendo errado”, e que existe um duplo sentido naquela frase. 

Perguntaram uma vez a Emilio de Menezes: “Qual é a diferença entre o homem e a mulher?”, ao que ele respondeu: “Eu não concebo.” A sutileza surge neste caso do duplo sentido de uma palavra, e não da junção de duas. 

Misturando duas, temos o chamado “portemanteau”, ou cabide, onde se “pendura” uma palavra na outra, misturando-as. Quando Carlos Drummond usou a palavra “monstruário”, estava seguindo uma regra básica do trocadilho: fundir duas palavras usando a parte mais característica de cada uma. O trocadilho entre “mostruário” e “monstro” é quase inevitável, e daí decorre uma coisa interessante do trocadilho: ele é mais uma descoberta do que uma invenção. É uma associação entre palavras que estão ali, disponíveis, esperando apenas o instante em que alguém perceba que é possível juntar aqueles dois termos. 

Já vi discussões e brigas intermináveis sobre “Fulano que furtou a idéia de Sicrano”, quando para mim era evidente que não houve furto: a idéia estivera lá a vida toda, à vista de quem a pudesse ver.

O melhor trocadilho é o que é feito num repente, de improviso. Uma vez minha mãe pegou uma maçã na mesa e reclamou que ela estava com uma banda estragada, e eu falei: “Pois é... Metade má, metade sã.” 

Outra vez, fui no Bar Canarinho, na feira, ver uma cantoria com Lourival Batista, que andava apoiado num bastão. Uma daquelas mocinhas de minissaia perguntou: “Seu Louro, pra que essa bengala?”, e ele disse: “Isso é coisa pra quem não gala bem...” 

O trocadilhista é como Romário, tem que estar sempre pronto, porque o passe perfeito, ou a furada do zagueiro, pode surgir a qualquer instante.





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