domingo, 9 de março de 2008

0123) Os pobres (13.8.2003)

Falei dias atrás que os ricos são generosos. Mais generosos ainda são os pobres, e não falo dos mendigos ou miseráveis; falo dos pobres, os que conhecem a angústia e a responsa de possuir alguma coisa. Um rico pode dar-nos de presente uma BMW ou uma casa de campo sem que isto abale o seu saldo médio; já um pobre, quando reparte seu almoço, está nos dando metade do que tem. A concentração de valor nas posses de um pobre é uma coisa que até assusta, porque um pires quebrado talvez só possa ser reposto no ano que vem, e se o leite que está no fogo derramar, babau. Um cara que mora num barraco nas Malvinas está, do ponto de vista dele, mais cercado de preciosidades insubstituíveis do que o zelador do Louvre.

A literatura de esquerda contribuiu muito para criar uma imagem idealizada dos pobres, através da repetição de verdades parciais como “todo pobre é explorado”, “todo pobre é honesto”, “todo pobre quer melhorar de vida”, e assim por diante. Pobre não é tão simples assim; até por uma questão de loteria genética, qualquer pobre é tão complexo e contraditório quanto um playboy de F. Scott Fitzgerald ou uma marquesa de Proust. Seria extremamente educativo se pudéssemos criar um Museu da Imagem e do Som só com depoimentos de brasileiros de esquerda que, nas décadas de 1960-70, largaram seus apartamentos de classe média para trabalhar junto ao Povo, e acabaram descobrindo que o Povo não era nada do que tinham imaginado nos livros.

Os ricos, quando querem aventura e adrenalina, vão escalar o Vesúvio ou caçar rinocerontes em Uganda. O pobre produz a mesma adrenalina encarando o transporte, o batente, o patrão, as contas no fim do mês. Uma vez eu conversava num táxi sobre esses assuntos gerais – falta de grana, falta de trabalho, despesas acumuladas – e o taxista disse: “Pois olhe, nesses últimos dez anos eu só conheci duas situações: cabeça dentro dágua, cabeça fora dágua, cabeça dentro dágua de novo...” Vida de pobre é uma decisão de campeonato por dia. São três horas de ida, oito de trabalho, três horas de volta, e ao adormecer ele pensa: “Obá! Nem fui demitido hoje!” Enquanto ele mantiver a cabeça fora dágua, tem todos os motivos para comemorar.

O sujeito que se mantém honesto quando pobre dificilmente deixa de sê-lo se enriquecer; por isso a indústria da propina e do suborno é tão maléfica quanto a da droga. Subornar um guarda com 10 reais é como levar uma mulher para a cama por 10 reais; depois que ela aceita, daí para a frente é só questão de discutir preço. O cara embolsa a grana, mas deixa de ser pobre, começa a virar miserável. O miserável é o pobre que perdeu os valores, perdeu o rumo, perdeu o sentido, o planejamento, a esperança. Um miserável é como o time que percebe que perdeu a decisão do campeonato, e agora só pensa em acabar o jogo com um sururu. Um miserável é capaz de matar para tirar um real de alguém. Um pobre não; mas é capaz de morrer pra defender o derradeiro real que traz no bolso.

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