sábado, 8 de março de 2008

0105) O plágio inconsciente (23.7.2003)



Comentei recentemente alguns casos em que um autor reproduz trechos da obra de outro autor, pensando que ele próprio criou aquilo. Muita gente torce o nariz diante dessa hipótese: “Tá maluco! Como é que um cara lê uma coisa, e depois escreve, e não percebe que aquilo é o mesmo texto que ele tinha lido?” 

Parece incrível, mas acontece muito. O exemplo que citei, da canção “Yesterday” de Paul MacCartney, ilustra este processo de quando alguma coisa brota da nossa mente “parecendo uma coisa pronta”. 

MacCartney passou meses mostrando a melodia nova a todo mundo: “Você conhece isso? É parecido com alguma coisa?” Ninguém (na época) percebeu a leve semelhança com “Answer me, my love”, uma canção gravada 12 anos antes por Nat King Cole.

Tenho poemas que escrevi num estado quase sonambúlico: levantei da cama, peguei o lápis e o papel, e joguei tudo aquilo ali na página, sem saber de onde veio, nem quem mandou. Acabei publicando como coisa minha, mas nunca perdi aquele vago receio de que um belo dia alguém chegue e diga: “Mas rapaz, tu tá maluco? Isso aqui é de Fulano de Tal, lembra que eu te emprestei esse livro, há 27 anos?”

O nome científico disto é “criptomnésia”, ou “memória oculta”. Lemos algo, aquilo fica escondido, e acaba emergindo mais cedo ou mais tarde – e, pior, emergindo num momento em que os abalos sísmicos da inspiração artística abrem fendas nas couraças da consciência, e deixam emergir a lava borbulhante das coisas ocultas, das coisas pseudo-esquecidas, das coisas que por falta de espaço jogamos naquele porão que tem o tamanho do interior de um planeta. 

O exemplo clássico do “plágio inconsciente” é citado por Carl G. Jung em seu livro O Homem e os Símbolos, páginas 37 e 311. Refere-se a um trecho do Assim falava Zaratustra de Nietzsche (cap. 11), onde este escreveu:

“Nesta época em que Zaratustra residia nas ilhas Happy, aconteceu de um navio ancorar na ilha onde fica o vulcão fumegante e a tripulação descer à terra para caçar coelhos. Ao meio-dia, no entanto, quando o capitão e seus homens se haviam reunido novamente, viram, de repente, um homem que vinha pelo ar em sua direção e uma voz que dizia nitidamente: ´É tempo, é mais que tempo!´ Mas quando a figura aproximou-se deles, passando rápido como uma sombra em direção ao vulcão, reconheceram com grande espanto que era Zaratustra... ´Vejam!´ disse o velho timoneiro, ´vejam Zaratustra que vai para o inferno!´”

Jung prova que um trecho semelhante (ilha vulcânica, descida para caçar coelhos, vultos voando no céu rumo ao vulcão) aparecia num livro publicado 50 anos antes, livro que Nietzsche (segundo sua irmã) lera aos 11 anos de idade. 

Não é difícil crer que uma cena impressionante como esta tivesse marcado a memória do garoto, e emergido na idade adulta, durante o momento febril da criação poética. O que parimos nesses momentos de exaltação criadora é certamente, sempre, filho nosso. Só que às vezes o pai é um livro alheio.






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